Ninguém sabia, mas eu fazia declarações de amor a candidatos na hora de votar

No tempo em que escrever romantismos nas cédulas eleitorais era prática arriscada, mas gostosa

Pode chamá-la de Deise, Francisca ou Luciana. Por via das dúvidas, fiquemos com Deise. Morava naquela casa rosada do Centro, número 74. No melhor estilo “pobre menina, não tem ninguém”. Filha única, órfã prematura de pai e mãe, era daquelas figuras mofinas, quase invisíveis, não fosse um detalhe definidor de tudo o que aconteceria tempos depois: ela adorava o número da própria morada. Setenta e quatro era verbo e santuário. Monumento.

Foram 74 as vezes em que tomou banho de mar, pelinhos da perna arrepiados devido à frieza da água. Na época da escola, chegou a contar: setenta e quatro lápis do Jardim ao Ensino Fundamental II. Setenta e quatro quase namorados – astros de Hollywood estampando as paredes do quarto – e mais 74 vezes em que disse “biloto”, palavra preferida. Setenta e quatro filmes assistidos, canções escutadas, livros conferidos. Coleção robusta a de Deise.

Então não houve surpresa quando, no ano em que se tornaria oficialmente cidadã brasileira – eleições batendo à porta, disputa para eleger o novo governador do Ceará – ela se achegou ao candidato de número… 74. E ele fazia o tipo dela, homem encorpado e seguro. Firme, mas com certa delicadeza nos gestos. Uns olhos sorridentes, aquele cavanhaque, propostas de progresso e ternura. Em pouco tempo, ela listou 74 motivos para adorá-lo. Voto garantido.

No dia de declarar a preferência política, resolveu declarar outra coisa. Era amor o que sentia pelo candidato. Ele precisava saber que ela, Deise, setenta e quatro noites sem dormir pensando no carinho, estava apaixonada e desejava reciprocidade. Recuperar as horas sem sono com madrugadas de deleite. Deixar de ser aquela pobre menina sem ninguém. Era 1998, e as cédulas eleitorais aguardavam, imóveis, os gestos da população. Chegou a hora.

Deise sabia ser arriscada a paixão naquele instante pátrio. Até tentou prometer a si mesma não fazer nada além do “X” no numeral luminoso, 74. Mas não resistiu porque amor é amor, né? Com ele, não se brinca nem se esconde. Pegou a caneta, conferiu os algarismos e as letras referentes ao candidato, e marcou. Um suor frio percorreu a testa, mesários do outro lado aguardando-a concluir. A mão baixou mais um pouco no papel e escreveu:


“Humberto Filho, te amo. Você já é eleito no meu coração. Casa comigo?”


Horas depois, seria Maria Lúcia Vieira quem leria aquela declaração. Certamente não pertenceria a Deise – essa personagem fictícia que criei para falar de uma prática bastante comum no período eleitoral antes das urnas eletrônicas. Mas ela leria mesmo assim porque eram muitas as Deises, Franciscas e Lucianas, bem como Davis, Lucas e Lúcios, que se derramavam em romantismo no instante do voto.

Maria Lúcia é juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará e juíza titular da Vara da Violência Doméstica do Crato. Com 25 anos de magistrada, já viu de tudo nas outrora cédulas de votação – apesar de ter vivenciado apenas uma eleição nesse formato, em 1998. No ano 2000, as urnas eletrônicas já estavam entre nós.

“Naquele período, um dos candidatos era o Tasso Jereissati. Ele era o campeão das declarações de amor – ‘Tasso, te amo’, ‘Te amo eternamente’, ‘Você é o amor da minha vida’, eram muitas. Mas havia bilhetinhos para outros também”, recorda. 

Pequenos protestos igualmente ganhavam a pele das folhas. Gente cobrando melhorias nas cidades, soltando impropérios. Revoltas. Anulava-se o voto, claro – não era permitido nada além do “X” nas cédulas. Mas decerto havia um gostoso frenesi em quem se arriscava para falar do que transbordava o coração. “Eu não sei por que havia essa motivação, não sei o que se passa na cabeça das pessoas para fazer isso. Só Deus sabe”, brinca Maria Lúcia.

“A eleição é um ato solene. Você fica emocionado, queira ou não queira. Depois de enfrentar uma fila, acaba ali sozinho na cabine para decidir o futuro da cidade, do Estado, do País. É natural a emoção”.

Agora já não é mais possível comprovar, no ato, de que modo as declarações ocupavam as cédulas impressas. Os papéis são descartados dentro de um tempo específico após as eleições, evitando o acúmulo de volume em gabinetes.

Ficou a nostalgia.

Ficaram também os amores velados, confissões miúdas. Quem dirá do futuro de Deise? Seu Humberto Filho foi eleito, sentiu pulsar no peito o chamego dela? Como seriam as próximas 74 noites e além? Talvez apenas dar amor já seja um estado supremo de felicidade. Em algum lugar, é o xodó que vence uma eleição.

 

Esta é a história de amor de quem declarava amor nas cédulas eleitorais. O texto é ficcional, com base em relatos que recebemos de membros da Justiça Eleitoral. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.