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Com salários acima do teto, TCE alerta prefeituras no Ceará sobre pagamentos por plantões médicos de 72 horas seguidas

TCE Ceará identificou um servidor em Farias Brito e dois em Catunda a partir de inspeção em folha de pagamento de março de 2024

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
Médico
Legenda: Servidores municipais com remuneração acima do teto em Catunda e Farias Brito são médicos
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Médicos plantonistas de duas cidades cearenses tiveram uma carga horária de trabalho árdua, para dizer o mínimo. Registros da frequência quantificaram plantões médicos de 72 horas seguidas de trabalho em unidades de saúde. A escala — até perigosa — de serviço teria se repetido por duas ou até quatro vezes em um mesmo mês. 

Os casos aconteceram nos municípios de Catunda e Farias Brito. É o que mostra o relatório final da inspeção do Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE), realizado em junho de 2024 a partir das folhas de pagamento de março do ano passado. 

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A fiscalização demonstrou que as prefeituras das duas cidades descumpriram o limite máximo das remunerações de servidores municipais — cujo teto, previsto na Constituição Federal, é o valor do salário do prefeito. No total, 11 prefeituras tiveram esse problema identificado nas folhas salariais. 

Contudo, a observação das fichas de frequência e das escalas dos profissionais — todos médicos — revelou outros problemas nas cidades de Catunda e Farias Brito, como plantões de 72 horas seguidas — que se repetiram ao longo do mês — e discrepância entre as horas trabalhadas pelos profissionais que receberam acima do teto e os demais médicos contratados pela prefeitura. 

Mais horas trabalhadas

O TCE Ceará identificou três profissionais que receberam acima do teto remuneratório em Farias Brito, que é R$ 15 mil. Os salários foram de R$ 17,1 mil; de R$ 23,4 mil; e o maior deles de R$ 31,9 mil — pouco mais que o dobro do limite permitido. 

O Diário do Nordeste optou por não citar o nome dos servidores, já que o TCE Ceará não indica nenhuma irregularidade na conduta deles. A obrigação de respeito ao teto remuneratório é da gestão municipal, conforme cita o relatório da Corte. 

"Vale destacar que os valores remuneratórios pagos correspondem, naturalmente, à contrapartida pelos plantões realizados. Portanto, a municipalidade deve montar sua estratégia de atuação na área da saúde observando rigorosamente as escalas de plantão, de forma a garantir que a prestação de serviços esteja em conformidade com o teto remuneratório, evitando assim eventuais situações de enriquecimento sem causa". 
TCE Ceará
Em relatório final após inspeção da folha de pagamento da Prefeitura de Farias Brito

Após a identificação do desrespeito ao teto remuneratório, o TCE Ceará enviou um relatório preliminar à Prefeitura, que pode se manifestar. Na justificativa, a gestão pontua que os profissionais são médicos e receberam pelos plantões realizados durante o mês de março. Foram enviadas, ainda, as escalas médicas cumpridas pelos profissionais. 

"Com base na escala enviada para o mês de março, (...) percebeu-se uma distribuição desequilibrada das escalas de plantão", detalha o relatório final da inspeção do Tribunal. Segundo o documento, os três profissionais citados prestaram, somados, 588 horas de plantão, enquanto os outros 8 médicos contratados pela Prefeitura fizeram, juntos, apenas 300 horas. 

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Outra discrepância notada pela unidade técnica responsável pela fiscalização foi a diferença nas horas trabalhadas pelos profissionais no Hospital Geral de Farias Brito. Enquanto os médicos — que receberam salários abaixo do teto — tiveram uma jornada média de 37,5 horas na unidade, os três profissionais, com remuneração superior ao valor permitido, trabalharam uma média mensal de 196 horas. 

Portanto, o Tribunal pontua que a Prefeitura de Farias Brito precisaria não apenas aplicar o teto constitucional à remuneração dos servidores, mas também "distribuir os plantões de forma equilibrada e razoável entre os prestadores". 

Plantão de 72 horas trabalhadas

O TCE Ceará também recomenda à Prefeitura de Farias Brito, no relatório final, "a regularização das escalas de plantão para a quantidade de horas máximas recomendadas". O motivo disso é a carga horária de um dos servidores, cujo pagamento em março ficou acima do teto remuneratório. O profissional recebeu, naquele mês, cerca de R$ 31,9 mil. Parte dessa remuneração era referente aos plantões médicos, alguns deles com cargas horárias acima das recomendada por diversos Conselhos Regionais de Medicina pelo país. 

Em quatro blocos de plantões, ele trabalha 36 horas consecutivas. Em um quinto plantão, a jornada foi ainda maior: 72 horas de trabalho seguidas. As entidades de classe recomendam — ou mesmo proíbem — plantões superiores a 24 horas.

No documento, são citadas resoluções ou pareceres do conselho de estados como São Paulo, Rio Grande do Norte, Mato Grosso e Pernambuco. O Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará (CREMEC), no entanto, não possui norma quanto ao limite permitido para jornadas. O Conselho Federal de Medicina também não. "(Isso) não significa que nenhum limite deva ser observado", continua o relatório da Corte de Contas. 

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O problema também é encontrado na Prefeitura de Catunda. Em março de 2024, dois servidores tiveram pagamentos acima do teto remuneratório, que também é de R$ 15 mil. O primeiro recebeu R$ R$ 38,3 mil, enquanto o segundo obteve R$ 18,9 mil. 

O profissional que recebeu o salário mais alto realizou 12 plantões de 24 horas durante o mês de março. Esses plantões foram feitos em quatro blocos, todos eles de 72 horas seguidas. Após o cumprimento da carga horária, o médico ainda ficou de "sobreaviso" por 8 horas. Ou seja, este servidor "teria prestado pelo menos 72h ou 80h ininterruptas de serviço em plantão, por quatro vezes no mês de março de 2024", diz o relatório.

A informação foi obtida por meio das escalas médicas e das fichas de frequência enviadas pela Prefeitura ao TCE Ceará. 

O segundo profissional também fez jornadas de 72 horas, embora tenham sido menos frequentes. Por duas vezes, o médico trabalhou essa carga horária em março — no total, foram nove plantões feitos por ele. "A situação em relação à quantidade de plantões e a prestação ininterrupta de plantões sucessivos não se verifica quanto aos demais plantonistas", completa o relatório final do Tribunal.

"Ora! Admitir a prestação de 72h ou 80h seguidas de plantão médico, no mínimo, caracteriza jornada excessiva e coloca em risco a prestação do serviço, a saúde do profissional e do paciente. Eventual inexistência de normatização específica do Ceará sobre o limite de horas ininterruptas de plantão não significa que nenhum limite precise ser observado, por ser uma questão de segurança".
TCE Ceará
Em relatório final após inspeção da folha de pagamento da Prefeitura de Catunda

Plantões com carga horária superior a 24h ou 48h só devem ocorrer em "situações excepcionais", como "substituir outros médicos faltosos e não deixar os pacientes desassistidos" e não como "medida ordinária de prestação de serviço". O TCE Ceará pontua ainda que o limite de jornada semanal de trabalho de profissionais da saúde é de 60 horas, segundo o Superior Tribunal de Justiça.

São feitas, portanto, duas determinações à Prefeitura de Catunda: a primeira de que a gestão respeite o teto remuneratório. "Enquanto a segunda, por sua vez, reclama a regularização das escalas de plantão para a quantidade de horas máximas recomendadas, distribuindo os plantões entre os prestadores. A redistribuição dos plantões servirá, também, para que as respectivas remunerações sejam readequadas conforme o teto, além de resguardar a saúde do profissional e dos pacientes", completa. 

Resposta

Após o resultado preliminar da inspeção do Tribunal, as gestões municipais puderam se manifestar no processo. Os achados quanto à carga horária dos profissionais não são citados, porque o TCE Ceará pontua o problema apenas após a resposta dos gestores — quando foram enviadas as escalas de plantão e as frequências dos médicos. 

Sobre o pagamento acima do teto remuneratório, a Prefeitura de Farias Brito argumentou que existe jurisprudência que afirma que "plantões médicos poderão extrapolar o teto dependendo das circunstâncias do caso concreto". O fundamento seriam os "princípios da dignidade da pessoa humana, direito à saúde e interesse social". 

Cita ainda que um dos servidores, além de plantonista, atua no Programa Saúde da Família e que o Supremo Tribunal Federal teria entendimento de que o teto remuneratório incidiria sobre os cargos separadamente — e não na soma dos valores. 

A unidade técnica do TCE Ceará, no entanto, não acatou os argumentos. No relatório final, é enfatizado que o valor recebido pelos salários são "contraprestação efetiva do trabalho", portanto  "integram a remuneração bruta do servidor público e devem, juntamente com o salário base, as gratificações e os adicionais, respeitar o teto
constitucional". Sobre o caso do servidor, o TCE informou que considerou as remunerações "isoladamente" e que houve excedente no salário do servidor. 

O PontoPoder entrou em contato com a Prefeitura de Farias Brito na última segunda-feira (20). Foi indagado se as recomendações do TCE Ceará foram atendidas e também a razão para a carga horária dos profissionais citados. Quando houver resposta, a reportagem será atualizada. 

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No caso da Prefeitura de Catunda, a gestão informou ao TCE Ceará que os salários superiores ao teto remuneratório são de "profissionais médicos plantonistas contratados através de processo seletivo para contratação de pessoal para atender demanda excepcional e temporária". Em resposta, o TCE Ceará reforçou os problemas encontrados. "Não há qualquer ressalva apta a justificar a inobservância do teto constitucional remuneratório para as referidas situações", reforça o relatório final.

Ao PontoPoder, a Prefeitura de Catunda informou que "todos os plantões pagos aos profissionais de saúde referem-se à efetiva prestação de serviços, sem qualquer prejuízo ao erário municipal".(veja nota completa no final) 

A gestão municipal reforçou ainda a dificuldade "em atrair e manter profissionais de saúde em localidades afastadas". No caso de concursos públicos, exemplifica, as vagas acabam "não preenchidas ou, quando há aprovados, observa-se uma permanência reduzida". 

Por isso, a gestão afirma que "tem se visto obrigada a recorrer a contratos de natureza temporária e excepcional" e, nesse cenário, os plantões médicos tem se mostrado "a única alternativa viável". "Contudo, isso apresenta outro desafio: poucos profissionais se dispõem a atuar em apenas um plantão por vez, o que exige a realização de múltiplos plantões por alguns médicos para atender a população de forma contínua e eficiente", argumenta.

"Sobre as questões tratadas na representação do Tribunal de Contas do Estado (TCE), cabe destacar que o município tem implementado as devidas adequações conforme as orientações recebidas da Corte de Contas. (...) Por fim, é importante sublinhar que estamos no início de um mandato, com pouco mais de 20 dias de gestão, e que todos os esforços estão sendo direcionados para corrigir distorções e melhorar a administração pública em benefício da população".
Prefeitura de Catunda

A reportagem reforçou o questionamento sobre os motivos para a realização de plantões de 72 horas mais de uma vez por mês, já que são contraindicados por entidades de classe, e também se essa carga horária continua a ser aplicada. Quando houver retorno, a reportagem será atualizada.

Confira nota completa:

Prefeitura de Catunda

Inicialmente, é importante contextualizar a realidade enfrentada por municípios do interior do Ceará, particularmente no que diz respeito à contratação de médicos. É de conhecimento geral a dificuldade em atrair e manter profissionais da saúde em localidades afastadas, especialmente em concursos públicos. Na maioria das vezes, tais certames resultam em vagas não preenchidas, ou, quando há aprovados, observa-se uma permanência reduzida destes profissionais.

Diante dessa realidade desafiadora, a administração municipal tem se visto obrigada a recorrer a contratos de natureza temporária e excepcional, conforme permitido pela Constituição Federal, para assegurar o atendimento das demandas básicas de saúde da população.

No caso específico dos médicos, a contratação por regime de plantões tem se mostrado a única alternativa viável. Contudo, isso apresenta outro desafio: poucos profissionais se dispõem a atuar em apenas um plantão por vez, o que exige a realização de múltiplos plantões por alguns médicos para atender a população de forma contínua e eficiente.

Nesse contexto, sopesando os princípios constitucionais e buscando sempre privilegiar o interesse público, o município tem adotado medidas no âmbito da reserva do possível, com vistas a equilibrar a garantia de serviços essenciais e o cumprimento das normas legais. Sobre as questões tratadas na representação do Tribunal de Contas do Estado (TCE), cabe destacar que o município tem implementado as devidas adequações conforme as orientações recebidas da Corte de Contas.

Ressaltamos ainda que todos os plantões pagos aos profissionais de saúde referem-se à efetiva prestação de serviços, sem qualquer prejuízo ao erário municipal. Por fim, é importante sublinhar que estamos no início de um mandato, com pouco mais de 20 dias de gestão, e que todos os esforços estão sendo direcionados para corrigir distorções e melhorar a administração pública em benefício da população.

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