Sem acesso à rede elétrica, projetos com investimentos de R$ 115 bilhões ficam travados no Ceará
Operador Nacional do Sistema Elétrico já teria negado pelo menos três iniciativas de produção de hidrogênio verde e uma de data center

A falta de previsibilidade de ligação na rede elétrica nacional pode fazer com que o Ceará perca grandes investimentos de geração de hidrogênio verde (H2V) e de instalação de data centers. A medida, inclusive, pode retirar o Brasil do protagonismo da corrida global que visa uma transição energética verde.
Isso porque o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) negou acesso de pelo menos quatro empreendimentos à rede elétrica. São eles os projetos de H2V da Fortescue, Voltalia e Casa dos Ventos, além do projeto de data center, também da Casa dos Ventos. Somadas as quatro iniciativas podem chegar a R$ 115 bilhões (usando como base o investimento divulgado pelas empresas no lançamento dos projetos).
Veja também
Veja projetos que já tiveram ligação da rede negada:
- Voltalia: empresa francesa prevê investimento de US$ 3 bilhões — aproximadamente R$ 17 bilhões.
- Fortescue: empresa australiana prevê investimento de R$ 20 bilhões
- Casa dos Ventos (H2V): US$ 5 bilhões — aproximadamente R$ 28 bilhões
- Casa dos Ventos (data center): R$ 50 bilhões
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Conforme o professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC) Raphael Amaral, são necessários estudos técnicos de viabilidade para saber os impactos que estes grandes empreendimentos vão trazer à rede nacional.
Ele comenta que possivelmente é necessário construir linhas de transmissão e subestações no sistema para poder abrigar estes investimentos.
"Só que o problema é que demora muito. Até que se faça os estudos, saia edital de leilão, de construção de linhas de transmissão, e que tudo esteja pronto, é na ordem de 7 a 8 anos. Eles precisam dar aos investidores a segurança, mas o poder público trabalha com o prazo de 2032 e as empresas com 2029. Aí está o impasse".
Caso de negativa da Fortescue
A negativa do ONS ocorreu ainda no mês de janeiro, mas veio à tona somente nesta semana, puxado pelo caso da Fortescue. Segundo o country manager da empresa no Brasil, Luís Viga, a desaprovação, no primeiro momento, foi uma surpresa para o mercado. Assim, rapidamente, a empresa buscou diálogo com os governos federal e estadual para que "rapidamente, os projetos voltem a ter possibilidade de conexão (com a rede elétrica)".

As tratativas resultaram em uma reação imediata do Ministério de Minas e Energia (MME) com a determinação da elaboração de estudos para ampliar a rede de transmissão em 4 gigawatt (GW), em uma área que abrange Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte.
Esse trecho é onde tem o nó dessa parte do sistema elétrico. Então, já está sendo feito esse estudo pelo Ministério de Minas e Energia, pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), para aumentar a transmissão e poder acomodar esses projetos de hidrogênio verde".
Corrida contra o tempo
Perguntado sobre o prazo estipulado para este estudo e construção da nova linha de transmissão necessária, Viga diz que "aí está o grande desafio". Isso porque o MME colocou um prazo para concluir essa linha de transmissão até 2032. Contudo, a indústria precisa que tudo esteja ligado e funcionando em 2029.
"Só assim poderemos manter os cronogramas. Então, estamos fazendo um esforço agora dentro do ministério (MME) para reduzir esses prazos para chegar em 2029", diz, Viga, lembrando que os governos federal e do Ceará tem se empenhado em encontrar maneiras para diminuir o tempo dos estudos técnicos.
"Até a iniciativa privada está ajudando nisso, dando algumas informações sobre plantas de hidrogênio verde para tentar que alguns processos sejam mais rápidos. Estamos tentando encontrar uma solução. A boa notícia é que existe uma mobilização grande para tentar resolver. Precisamos resolver, porque sem conexão também não tem planta e atrasar a conexão, atrasa a decisão de investimento", reforça o executivo.

Investimento mantido "por enquanto"
Sobre como isso impacta no investimento programado para essa planta no Ceará, o executivo da Fortescue no Brasil afirma que "por enquanto a nossa decisão de investimento está mantida".
"Os nossos prazos estão mantidos, porque a gente acredita que dá para resolver. Mas tem que ter bastante trabalho para fazer isso".
Questionado se a empresa já imaginava a possibilidade da negativa do ONS para o projeto, após o setor ter conquistado o marco regulatório (Lei nº 14.948/2024, que regulamenta a produção, comercialização e uso do hidrogênio verde no Brasil, sancionada pelo presidente Lula em agosto de 2024), Viga comenta que se sabia da possibilidade.
"Sabíamos que para a quantidade de projetos, não existe país no mundo que ia conseguir absorver a quantidade de conexão assim, de uma hora para outra, para 2029. Porém, no caso da Fortescue, achávamos que hoje, então numa posição mais avançada, teríamos acesso a essa conexão, mas não foi o que aconteceu", comenta.
Saiba mais sobre o projeto australiano no Pecém
Com investimento previsto de R$ 20 bilhões e capacidade de 1,2 gigawatt (GW) de eletrólise, a planta da Fortescue encontra-se em fase avançada de engenharia e estruturação de custos. A empresa australiana de mineração e energia renovável, informa já ter 70 pessoas trabalhando no projeto no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp).
"Somos a única empresa com gente trabalhando na área, com pessoas também ali das redondezas contratadas para fazer esse serviço, a gente está a todo vapor. Mas claro, temos que resolver esse problema (da negativa do ONS)", diz Luís Viga.
Voltalia prevê início das operações até 2032
Questionada sobre a negativa do ONS e os próximos passos, a empresa francesa Voltalia, por meio de nota da assessoria de comunicação, informa que "reforça seu compromisso com a geração de energia renovável no Brasil".
"A companhia ainda não tomou uma decisão final, mas segue em negociações com potenciais compradores de hidrogênio. O início de operação dos projetos está previsto para 2031 ou 2032, a depender da realização de reforços de linha de transmissão no sistema elétrico do país".
A investidora ainda reforçou, no texto, que "segue confiante no potencial da região, que dispõe de abundantes recursos naturais, e no papel estratégico do Brasil para oferecer energia a custos competitivos".
O que diz o Ministério de Minas e Energia
Questionado sobre as negativas, o Ministério de Minas e Energia (MME) afirma que desde o início desta gestão, está comprometido em estabelecer uma segurança energética no Nordeste e no restante do país. "Prova disso são os leilões de transmissão realizados nos últimos dois anos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Sobre o estudo em curso na EPE, o órgão afirma ser voltado à ampliação da capacidade de conexão de grandes cargas na Região Nordeste e tem previsão de ser divulgado em dezembro deste ano.
"Assim, a EPE identificará solução indicativa para o aproveitamento racional e planejado da rede na região Nordeste face ao potencial prospectivo de projetos nessa região".
Além desse estudo, a empresa estaria conduzindo outros para indicar obras de expansão do Sistema Interligado Nacional (SIN), apontando volume de investimentos dos leilões para os próximos anos.
Destaca-se na região Nordeste: "Estudo de expansão das interligações regionais – Parte III - Expansão da Capacidade de exportação da região Nordeste" e "Estudo prospectivo para inserção de cargas de hidrogênio na região Nordeste".
Por meio da assessoria de comunicação, o ministério ainda informa que a previsão é de que as indicações feitas nos estudos da EPE façam parte dos leilões de linhas de transmissão que acontecerão em 2026 e 2027.
Sem respostas
O Diário do Nordeste questionou o ONS sobre os motivos das negativas para a ligação dos projetos de hidrogênio verde e de data centers no Ceará e quantos seriam os projetos desaprovados pelo órgão até agora, contudo, não houve resposta. Quando houver pronunciamento, esta matéria será atualizada.

A reportagem também tentou contato com a Casa dos Ventos para ter mais detalhes sobre a negativa do órgão federal e quais os próximos passos da empresa com relação aos investimentos dos projetos no Ceará, mas não obtivemos retorno até a publicação do material. O espaço segue aberto.
Ceará tenta construir a própria linha de transmissão, diz governo
O secretário de Desenvolvimento Econômico (SDE), Domingos Filho, destaca que desde o início do ano, já sabendo das negativas do ONS, o governo estadual vem trabalhando para resolver esse impasse.
"O governador Elmano (de Freitas) está inovando e propondo ao Governo Federal fazer uma linha de transmissão, diante dessa dificuldade apresentada e para que as empresas que querem investir no Ceará tenham essa segurança".
Ele confirmou que o investimento seria, segundo estudos, em torno de R$ 600 a R$ 700 milhões e sairia dos cofres do estado.
"Pode ser do tesouro, pode ser uma parceria público-privada (PPP), pode ser um empréstimo internacional, isso não é problema. O modelo de financiamento será estudado pelo estado a partir da autorização do governo federal para poder realizar essa obra que sabemos ser estratégica para o futuro da economia do Estado", salienta Domingos Filho.
Sobre o recebimento desta resposta se é viável o Ceará pegar para si essa responsabilidade da União, o secretário diz que não foi dado um prazo formal pelo Ministério de Minas e Energia.
"Foi formulada a proposta e eles (MME) estão lá avaliando, mas estamos otimistas. Até porque, o estado vai fazer o que era obrigação do Governo Federal e doar ao Governo Federal. O governador propôs essa situação, de fazer a linha de transmissão, justamente para acelerar o processo de estruturação da transmissão de energia no Estado".

Como é o trâmite para construir uma linha de transmissão
O planejamento e a regulamentação de linhas de transmissão de energia são atribuições do Governo Federal. Cabe ao ministério de Minas e Energia (MME) planejar a expansão do sistema e definir se há necessidades de novas linhas para garantir o fornecimento de energia no País.
Em esforço conjunto, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) estipula as normas para a construção das linhas, fiscaliza o cumprimento dessas regras e promove leilões para conceder a operação das estruturas.
Já o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) fica responsável por coordenar a operação do sistema, viabilizando equilíbrio entre a oferta e a demanda de energia.
Após esse trâmite, são as empresas privadas vencedoras dos leilões que constroem as linhas de transmissão, a partir dos leilões promovidos pela Aneel. As vencedoras investem na construção das linhas e na manutenção durante o período da concessão.
"Podemos perder a chance de transformar os projetos em notas fiscais"
Diretora-executiva da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV), Fernanda Delgado vê com muita preocupação as negativas do ONS para os projetos de energia renovável. Ela comenta que as desaprovações do órgão federal não são uma prerrogativa do H2V.
"Todos os projetos que precisam se ligar à rede estão sendo barrados por uma questão técnica. Porém, estes estudos precisam ser feitos com mais agilidade".
Ela comenta que quando os projetos de H2V foram surgindo havia uma disponibilidade de ligação.
"Porém, depois do apagão de 2023, o ONS tomou uma medida bastante conservadora e retirou essa previsão. Por isso os projetos, não só de H2V, como todos os outros que precisam se ligar ao sistema de energia, foram negados".
Fernanda lembra que a indústria não contava em ter que lidar com mais esse tempo de se fazer um estudo para ter essas ligações. Inclusive, as negativas atrasam a possibilidade das empresas em se beneficiarem do Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC), que possui incentivos de até R$ 18,3 bilhões.
"Tudo isso leva um tempo que a indústria não tem. Podemos perder a chance de transformar os projetos em notas fiscais por um descasamento de medidas e entendimentos. O protagonismo do Brasil e do Ceará está ameaçado", reforça.