Cinemas em Fortaleza perdem quase metade do público em seis anos

Pandemia e concorrência com streamings continuam prejudicando bilheterias, dizem especialistas

Escrito por Luciano Rodrigues , luciano.rodrigues@svm.com.br
Sala de cinema
Legenda: Prestígio dos cinemas em Fortaleza, cada vez mais vazios, evidenciam crise no mercado ao redor do mundo
Foto: Shutterstock

O hábito de ir ao cinema no Brasil para acompanhar diferentes títulos e histórias está cada vez mais escasso. A atividade vive um declínio sem precedentes, potencializado por fatores que incluem a pandemia e a concorrência do streamings. Em Fortaleza, conforme apontam dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o tombo chega próximo à metade do público longe das salas.

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O órgão disponibiliza semanalmente dados atualizados sobre o mercado do cinema no Brasil, com comparativo que remonta a 2018. Ao longo de seis anos, a capital cearense viu minguar a quantidade de espectadores e a arrecadação, mesmo com bilhetes mais caros.

Os dados são referentes ao resultado parcial do primeiro semestre. Nas 25 primeiras semanas de 2018, 2,073 milhões de pessoas foram aos cinemas em Fortaleza. No mesmo período de 2024, são 1,182 milhão, queda de 43%.

Se o público cai, a arrecadação também despenca. Na comparação entre os dois períodos em Fortaleza, o tombo neste ano foi de 28,6%: no primeiro semestre de 2018, o valor conquistado com a venda dos ingressos foi de R$ 31,41 milhões. Já entre janeiro e junho de 2024, as cifras foram de R$ 22,44 milhões.

Já o preço médio dos ingressos passou por alta de 25,2% em seis anos na cidade. Em 2018, um espectador desembolsava, em média, R$ 15,15. Neste ano, o valor está em R$ 18,98.

Panorama preocupante em todo o Brasil

Apesar de os resultados de Fortaleza apresentarem preocupação, a queda de público, em termos percentuais, foi somente a 17ª do Brasil dentre as capitais. Salvador foi a cidade com a maior redução de espectadores ao longo do período, segundo a Ancine: tombo de 56,2%, saindo de 2,3 milhões de pessoas (2018) para somente 1 milhão (2024).

Belém (−55,4%), Boa Vista (−51,8%) e Cuiabá (−50,1%) também observaram reduções de mais da metade do público no comparativo entre os dois anos. A menor retração foi em Aracaju, com queda de 21,4% entre 2018 e 2024.

As cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, as maiores em população e também em número de bilhetes comercializados, também sofreram tombos expressivos. Na capital fluminense, a queda foi de 44,8% (de 7,6 milhões no primeiro semestre de 2018 para 3,2 milhões no mesmo período de 2024). Já no município paulista, −38,2% em seis anos: de 10,4 milhões para 6,4 milhões.

O cenário nacional indica que desde 2018 há uma redução no número de ingressos vendidos. De janeiro a junho daquele ano, foram comercializados 84,5 milhões de ingressos; já no primeiro semestre de 2024, o número ainda se aproxima de 50 milhões, com 49,7 milhões de entradas compradas. 

Como resultado, uma queda considerável na arrecadação: 23% a menos. Em 2018, os valores obtidos com a comercialização de ingressos ultrapassaram a marca de R$ 1,26 bilhão nos seis primeiros meses do ano. Em 2024, por sua vez, as cifras conquistadas até o momento são de R$ 972,69 milhões.

O que está por trás do declínio do público nos cinemas de Fortaleza?

Para entender toda a questão da queda acentuada dos complexos cinematográficos, é preciso, antes de mais nada, que a exibição dos filmes nos cinemas é somente a ponta do iceberg: até que o espectador se acomode na poltrona, um grande e denso mercado está por trás, como explicam as especialistas ouvidas pelo Diário do Nordeste.

A prova fundamental é que a lógica da exibição do mercado do cinema segue o propósito máximo do lucro: oferta e demanda, como explica Bete Jaguaribe, professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Cinema do Dragão do Mar
Legenda: Cinema do Dragão do Mar é um dos dois únicos em Fortaleza a não estar dentro de shoppings centers
Foto: Luiz Alves/Agência Diário

Em Fortaleza, a questão também fica evidente pela localização das salas. Com somente duas exceções (Cine São Luiz e Cinemas do Dragão do Mar, ambos equipamentos do Governo do Estado), os cinemas na capital ficam inseridos dentro de shoppings, o que também contribui para afugentar o público e encarecer o ingresso.

"Perdemos nossos cinemas de rua e fomos ver cinema nos shoppings. Uma realidade complexa, que envolve desde interesses imobiliários urbanos, que deslocam as práticas sociais dos centros históricos, até as questões de segurança. Deixamos de viver as cidades para nos enclausurarmos nos shoppings. É a chamada experiência “pós-moderna” que esvazia a convivência urbana e enclausura o cidadão em determinados espaços fechados", observa a especialista.

Economia cultural

De acordo com Samantha Capdeville, professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), por se tratar de uma "economia em cadeia", que movimenta direta e indiretamente outros setores, o custo cinematográfico do ingresso tende a ficar mais elevado e, consequentemente, selecionar o público-alvo consumidor.

"O cinema custava antigamente o preço de uma passagem de ônibus. Hoje passa dos R$ 30 em shoppings, impossibilitando uma família de ter esse tipo de entretenimento nos fins de semana, principalmente quando somado a este valor tem transporte e lanche. Isso faz com que se vá menos ao cinema e a escolha pelo filme a ser visto vai depender muito do investimento deste na sua divulgação. Muitos dos filmes brasileiros de alta qualidade nem ficamos sabendo que está em cartaz. Quando descobre, já saiu", avalia a professora.

Como em todo e qualquer mercado, o menor faturamento traz prejuízos, como desemprego no setor, menores investimentos privados, aumento do desejo de manter filmes americanos mais tempo em cartaz. No entanto, devemos nos lembrar que o cinema não se resume ao mercado e a valores financeiros, mas é um altíssimo capital cultural e não podemos pensar que só possa existir um cinema que dê lucro, pois é a expressão da cultura de um país.
Samantha Capdeville
Professora de Cinema e Audiovisual da UFC

Para Bete Jaguaribe, sobretudo nos últimos seis anos, a pandemia e o desenvolvimento mais acelerado dos streamings desencadeou o declínio do cinema em todo o mundo.

Streaming Netflix
Legenda: Streamings como a Netflix concorrem com o cinema. Pela praticidade, tem sido cada vez mais populares em detrimento das salas cinematográficas
Foto: Olivier Douliery/AFP

"Os analistas identificam ainda o impacto da Covid. O isolamento na pandemia criou novos hábitos de aproveitamento do audiovisual, com o público se aproximando muito dos streamings. A queda no consumo de cinema no circuito de salas é identificada em todo mundo, e não ocorre somente em Fortaleza", pontua.

O CEO da Centerplex Cinemas, Márcio Eli, empresa que administra os complexos no Grand Shopping Messejana e Via Sul Shopping, evidencia que existe uma menor presença de títulos atraentes no mercado, o que prejudica a atração de público para as salas.

De acordo com o gestor cinematográfico, em comparação com 2023, o mercado do cinema nos dois complexos em Fortaleza teve público e arrecadação 21% menores.

"A bilheteria, tanto nacional quanto internacional, tem enfrentado desafios devido à escassez de títulos atraentes que levem o público aos cinemas. Esta falta de filmes atrativos é um reflexo das recentes greves de roteiristas, atores e atrizes de hollywood, que resultaram em mudanças nas datas de lançamento", pondera.

Do 'Barbenheimer' aos streamings: a concorrência estrangeira nos cinemas do Brasil

Ainda de acordo com a Ancine, 90% de todos os ingressos vendidos em Fortaleza até o momento em 2024 são para filmes do exterior. O principal dos títulos é Divertida Mente 2, que já levou mais de 147 mil espectadores para os cinemas desde a estreia, há 15 dias.

Barbenheimer
Legenda: Fenômeno "Barbenheimer" invadiu salas de cinema de todo o Brasil, em claro processo de valorização do cinema internacional
Foto: Louise Dutra/Infografia

Mesmo com diversas políticas públicas de incentivo à produção audiovisual no País, o cinema nacional ainda patina. A recuperação lenta após a pandemia, sobretudo em 2023, puxado pelo fenômeno das estreias simultâneas dos títulos internacionais "Barbie" e "Oppenheimer", aponta que a cultura brasileira está relegada a segundo plano.

"Há pouco investimento na comercialização dos filmes nacionais, principalmente na distribuição e exibição. Temos diversas políticas públicas para produção, novas e crescentes políticas para a etapa de desenvolvimento, mas a etapa de distribuição, importantíssima para a concorrência com os filmes internacionais, tem pouco recurso público. Há poucos editais para investimentos em distribuição que permita uma ampla divulgação dos filmes que estão em cartaz", lamenta Samantha Capdeville.

Acabamos nos tornando cada vez mais colonizados e desconhecendo nossa verdadeira cultura, os diversos Brasis, além de permitir que nossos recursos sejam destinados ao cinema estrangeiro, entre tantas outras coisas.
Bete Jaguaribe
Professora de Cinema e Audiovisual da Unifor

Cota de tela

Entrou em vigor no mês passado a prorrogação da chamada "cota de tela": complexos cinematográficos brasileiros são obrigados a ter entre 7,5% a 16% de sessões dedicadas a filmes nacionais. A lei, sancionada no início do ano pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, prorroga a determinação até o fim de 2033.

"Há fortes políticas públicas para investimento no cinema em todas as suas etapas, incluindo a exibição, com a cota de telas, em todos os países do mundo, ao reconhecerem a importância do cinema para a cultura e a economia, mas no Brasil, os investimentos ainda são muito modestos em comparação até mesmo com a Europa. Para cada real investido em um filme, o Estado recebe outros R$ 5", reflete Samantha.

Chicó e João Grilo
Legenda: Chicó e João Grilo na primeira foto divulgada de O Auto da Compadecida 2, continuação cinematográfica que deve estrear em dezembro de 2024. Produções nacionais precisam seguir uma cota mínima de exibição nos cinemas brasileiros
Foto: Conspiração Filmes/Divulgação

A professora Bete Jaguaribe ainda critica a presença massiva do cinema internacional, sobretudo o chamado mainstream, oriundo sobretudo dos Estados Unidos, amplamente difundido e globalizado, mas que além de trazer prejuízos econômicos à produção brasileira, ainda tem baixo apelo cultural no País.

"O circuito de exibição nacional é dominado pelos americanos. Sempre foi assim. Não somos donos de nossas telas, que sempre foram ocupadas majoritariamente pelo cinema dos EUA. É trágico. (…) Cinema é uma questão de soberania nacional. Um país que abre mão de seu próprio cinema abre mão de sua cultura, e isso nunca terminou bem", dispara.

Como auxiliar na retomada dos bons números do cinema?

Ambas as especialistas avaliam que hoje o cinema se tornou um programa caro, de baixa acessibilidade à população em geral. Para isso, é preciso fazer o caminho inverso dos últimos anos e tratar as salas como promotoras fundamentais da cultura nacional.

"É preciso investir na formação de profissionais da área, formação de público por meio de escolas e cineclubes, investir em alfabetização audiovisual para que tenhamos um público com senso crítico, capaz de entender o que é um bom filme, investir em políticas públicas de produção, mas também em políticas de distribuição e exibição com investimentos na divulgação dos filmes", almeja Samantha Capdeville.

Já Bete Jaguaribe acende as luzes das salas cearenses: a especialista destaca o alcance de produções nacionais, como "Motel Destino", dirigida pelo cineasta Karim Aïnouz e rodado completamente em paisagens do interior do Ceará. O filme concorreu na Mostra Principal do último Festival de Cannes, na França, um dos mais prestigiados do cinema mundial.

Legenda: Cineasta Karim Aïnouz define o filme como um thriller erótico que é, antes de tudo, uma história de amor
Foto: Divulgação

"O cinema do Ceará, em termos de qualidade de produção, já mostrou sua potência estética. Acabamos de participar da Mostra Principal do ultimo Festival de Cannes, com o filme “Motel Destino”, dirigido por Karim Aïnouz, com uma equipe toda cearense. Um filme criado e feito no Ceará. Outros filmes vêm ganhando destaque em muitos festivais nacionais e internacionais, nos últimos anos", arremata.

A reportagem entrou em contato com a Kinoplex, administradora dos cinemas do North Shopping Fortaleza e Iguatemi Bosque, e com a Cinépolis, que gerencia os cinemas do North Shopping Jóquei, RioMar Fortaleza e RioMar Kennedy, mas até o fechamento do material, não obteve retorno.

 

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