Compreender a própria sexualidade ajuda a desenvolver ferramentas para entender e acolher o próprio corpo e se proteger
A forma como a sexualidade é compreendida e dialogada entre as pessoas varia de acordo com culturas, gerações e dinâmicas familiares, afirmam os especialistas neste tema por vezes tão delicado. Independentemente dos contextos particulares, o que se sabe é que um ambiente em que há abertura e tranquilidade para falar sobre esse assunto tende a ser um ambiente saudável para o desenvolvimento integral das crianças, conforme os estudiosos.
É assim na casa de Benjamin, de 5 anos. Ele estava com a mãe, Bruna Stefani, 33, quando Amélie nasceu. Mas, mesmo tendo assistido ao nascimento da irmã na sala de parto do hospital, ele quis, um dia, saber: “De onde vêm os bebês? De onde a Amélie saiu?”. À época, Bruna ainda não sabia a melhor forma de responder à dúvida do filho, mas tinha em mente que precisava ser verdadeira: “Veio da ‘tcheca’ da mãe. Falei assim. Mas sei que o certo é falar ‘vulva’”.
Bruna, aos poucos, pretende deixar de apelidar as partes do corpo humano quando falar sobre elas com Benjamin — e, futuramente, com Amélie. “Tenho estudado. Não vou te falar que tô maratonando o Instagram da psicóloga de educação sexual infantil, mas, quando vejo que ela postou alguma coisa, me interesso. Ela bate muito na tecla de que a educação sexual é que vai diminuir os abusos”.
Leiliane Rocha, citada por Bruna, se apresenta nas redes sociais como psicóloga especialista em sexualidade. No Instagram, tem mais de 210 mil seguidores e mais de 700 publicações sobre educação sexual. Numa das mais recentes, escreve: em educação sexual, “o termo ‘sexual’ não se refere a sexo e, sim, a sexualidade. São coisas bem diferentes. O foco da educação sexual é proporcionar à criança um desenvolvimento saudável e adequado da sua sexualidade e ensiná-la a se proteger das violências sexual, psicológica, física etc.”
Quando criança, irmã de três meninos e uma menina, Bruna, consultora e coach de estilo, não sabia muito sobre sexualidade. Aprendeu em casa que “sexo só depois do casamento”. E apenas isso.
“(A falta de diálogo) Acabou gerando muitas coisas ruins. Cada um (dos cinco irmãos) descobriu o sexo de maneira diferente e não foi com meus pais, foi na rua. Pra alguns, isso teve consequências graves”, recorda a consultora.
Bruna compreende que os pais foram criados sob óticas mais restritivas e repletas de pudores. Não os culpa pela falta de diálogo sobre sexualidade — que já sabe ir muito além do tema “sexo”. “Sei que minha mãe fez o melhor, ela não tinha nenhuma orientação sobre, como eu estou tendo agora”, reconhece. Bruna quer, por isso, estudar para ser a melhor e primeira fonte de informação para os filhos. “Pra que não aconteça nenhum tipo de abuso sexual com eles, ou, se vier a acontecer, eles me contarem imediatamente. Quero ser base de apoio”.
Nesse processo, Bruna conta com o esposo, o engenheiro de energia sustentável Thomas Kraft, 43, que recebeu educação sexual tanto em casa quanto na escola, na Alemanha. “Ele conversa muito comigo sobre isso. No sentido de que, quanto mais você sabe sobre um assunto, menos comete erros. Erros, que digo, de silenciar (a criança) ou de não saber como informar (o que ela perguntar)”, compartilha.
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Medo
A agente de saúde Maria das Graças da Silva Alves, 59, criou três filhas sozinha. Na infância delas, o maior medo de Graça era que, enquanto estivesse no trabalho, alguém aproveitasse sua ausência em casa para abusar sexualmente das meninas. Na primeira menstruação da primogênita, Graça chegou a pensar que o pior tivesse acontecido. “Ela menstruou com 7 anos. Fiquei louca. Fui pro hospital porque pensei que alguém tivesse entrado em casa e feito algo com ela. Lá, a médica constatou que não tinha acontecido nada”.
Por terem idades próximas e não terem a mãe perto sempre, as três meninas (Adriana, Andréa e Adeline, hoje com 42, 41 e 38 anos, respectivamente) cresceram compartilhando prioritariamente entre si as descobertas da sexualidade como sangramentos mensais, mudanças no corpo, amizades e namoros. A mais velha engravidou aos 14.
“Não deu tempo falar com a primeira, mas, da segunda até a terceira, comecei a explicar mais como era o mundo”, explicou Graça. Em nenhum momento, porém, a mãe as repreendeu. Apenas orientou que, quando as filhas fossem se relacionar amorosamente e sexualmente com alguém, se cuidassem e cobrassem do outro cuidado, também. Para evitar gravidez e Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).
Graça não teve, na própria infância, a mínima orientação sobre a descoberta da sexualidade. “Fui me descobrindo só, e as coisas que aprendi foram com colegas de colégio. Meus pais nunca tiveram coragem de falar comigo sobre, achavam que era uma coisa vergonhosa”. Graça engravidou de um amigo da escola e deu à luz a sua primeira filha aos 17 anos, depois de casar com o rapaz. “Éramos obrigados a casar porque tínhamos engravidado”, lembra.
Educação para prevenir violência sexual
Graça é defensora do ensino sobre sexualidade na escolas. “Educação sexual não ensina a fazer sexo, ensina a conhecer o próprio corpo”, compreende. Para ela, isso é importante porque, uma vez que as crianças aprendam os próprios limites e os limites alheios, vão entender que não se deve invadir o corpo de ninguém nem deixar que ninguém invada o seu.
“Muitas mães solteiras passam o dia trabalhando e têm que deixar os filhos com os tios, padrastos, avós, irmãos. A criança tendo noção de onde pode e onde não pode ser tocado, serve até como um aviso”, entende.
Bruna Stefani também acredita que o assunto deva ser abordado nas escolas, na educação formal. “Quanto mais falar, melhor. Eu sou negra e, durante muito tempo, me falaram: ‘não fala sobre racismo, as pessoas se incomodam. Racismo não existe, não vamo falar sobre isso’. Durante muito tempo, me calei e até acreditei mesmo que não houvesse racismo, por mais que tivesse sofrido na pele a vida inteira. Tudo o que você esconde, não fala, gera uma série de consequências como o abuso sexual. Ninguém fala, como a criança vai saber?”, provoca.
“Muitas questões poderiam ser resolvidas se a gente resolvesse falar mais sobre elas”, concorda a psicóloga e pedagoga Eveline Câmara. Para a profissional, o ideal, também, seria escola e casa atuarem de maneira complementar. “A escola tem a importância dela, mas é preciso que o trabalho feito lá seja estendido pra casa. Porque a expertise que têm os profissionais que estão na escola, de repente, os pais não têm”, justifica a profissional.
Na prática, Eveline propõe diálogo mais frequente entre família e escola. E não apenas para tratar de questões relacionadas à aprendizagem formal. “Esses pais vêm com uma visão muito construída socialmente, imersos em preconceitos. Se houvesse mais reuniões, se os pais tivessem mais acesso, interesse em entender e ver o que os filhos estão fazendo…”, sugere.
A obstetra e ginecologista Aline Veras destaca outra importância do papel escolar. “A maioria dos casos de abuso sexual infantil acontece dentro de casa ou de ambientes familiares. A escola se torna frequentemente um espaço de detecção desses casos de abuso. Tem papel importantíssimo na prevenção à violência sexual. Não é possível, para a proteção das nossas crianças, que a educação sexual seja restrita ao ambiente familiar”.
Mencionando o recente caso de uma menina de 10 anos vítima de estupro no Espírito Santo, o psicólogo especialista em Terapia Familiar Sistêmica, Álvaro Rebouças, também considera urgente a inclusão da educação sexual no currículo de ensino formal, até para dar às crianças as ferramentas que elas precisam para proteger os próprios corpos, na falta de apoio familiar — por negligência ou vulnerabilidade.
“Uma família vulnerável é aquela que não tem recursos para lidar com algumas situações. Quando você compara a outras famílias que têm esses recursos, vê por que algumas conseguem lidar melhor do que outras. A menina foi abusada, o abuso foi de longa data, não houve intervenção e, quando se soube, ela já estava grávida”, observou o especialista. “Não estou romantizando famílias vulneráveis, estou falando de uma desigualdade que existe e que acarreta justamente essa diferença no acesso a recursos” como conhecimento.
Violência sexual contra crianças e adolescentes
Em 2019, o Disque Direitos Humanos registrou 17 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. O mesmo balanço, divulgado em maio deste ano pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, identificou que a violência sexual acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito.
Em 40% dos casos denunciados, a violência é cometida por pai ou padrasto. As vítimas costumam ser, em 46% dos casos, meninas adolescentes, entre 12 e 17 anos.
Como identificar se uma criança está sofrendo abusos sexuais?
Ouça o relato dela
Se você construiu uma relação de confiança com a criança e orientou a ela relatar todo e qualquer toque indevido, ela vai procurar você e contar o que aconteceu. É importante estar disponível para ouvir e acolher esse relato sem violentar ainda mais a criança com críticas.
Fique atento aos sinais
Alguns sinais não verbais podem ser observados. Não necessariamente significam que a criança está sofrendo abuso sexual, mas, geralmente, indicam que algo está errado com ela — e pode ser um abuso sexual. A criança pode se apresentar, por exemplo, mais retraída, arredia, agressiva ou ansiosa. Além disso, pode ter dificuldade para dormir, hiperestimulação genital ou receio ao toque e transtornos alimentares como anorexia ou compulsão alimentar.
Fontes: Álvaro Rebouças, psicólogo especialista em Terapia Familiar Sistêmica | Aline Veras, ginecologista e obstetra, integrante do Coletivo Rebento - Médicos e Médicas em defesa da Ética, da Ciência e do SUS.