Idosos do Lar Torres de Melo contam histórias da infância enquanto são desenhados por ilustradora

No ciclo de 2019 que se encerra, eles mergulham em lembranças e ressignificam etapas da vida enquanto são desenhados pela ilustradora cearense Raisa Christina

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Seu Elcias Albuquerque Cosmo é um dos retratados em cores por Raisa Christina
Foto: Foto: José Leomar

A gente já nasce feito desenho. Alguém imaginou, antes mesmo que viéssemos ao mundo, como seriam nossos olhos, orelhas, boca. Fizeram retratos de nós. Fomos aguardados com as tintas da criatividade.

Não à toa, também somos chegados a desenhar quando crianças. Inventamos nossos próprios universos e, neles, colocamos as tonalidades que julgamos ser as mais adequadas para as coisas que, por vezes, nem sequer sabemos nomear em pouca idade. O céu, assim, pode ser cor-de-rosa; as árvores devem ser laranjas; a grama, azul-anil.

A memória, então, não tem cor específica: é um emaranhado delas. Assim também são os ciclos de nossa vida. A cada ano que passa, fica mais difícil eleger um pigmento específico para as saudades que carregamos, as dores, as alegrias, os amores. É risco grande, inclusive, chegarmos à velhice e ainda não sabermos identificar esses tons. Mas é importante continuar a desenhar a existência porque ela própria é, em si, uma grande aquarela. A única que temos.

Legenda: O desenho com pastel oleoso sobre papel craft traz, em nuances coloridas, as marcas do rosto de quem se dispõe a contar a própria história para Raisa Christina. A ilustradora, a partir de escuta atenta, mergulha em memórias cheias de afeto e saudade
Foto: Foto: José Leomar

Raisa Christina recorda de quando ouvia histórias, ainda pequena, e rabiscava na mente o rosto dos personagens, os lugares, as mobílias, nesse colorido exercício de invenção. "O desenho estava ali antes de ser essa marca gráfica num papel", observa a ilustradora cearense.

Neste ano, estendendo o raio de alcance do ofício, ela criou um projeto cujo objetivo é fazer com que pessoas de Fortaleza contem suas histórias enquanto traça um retrato de quem está ali à frente, a rememorar a vida.

Após ouvir causos de amor e despedida - foram essas as temáticas trabalhadas em outros momentos de 2019 - ela decidiu, a convite do Verso, selar mais um intervalo temporal sabendo as lembranças de infância dos idosos do Lar Torres de Melo.

"Acho que eles têm um tempo da narrativa, e é bonito perceber o instante em que a história está chegando, mas ainda está longe. Por vezes, recordam de coisas que nem sabiam que lembravam, e isso é valioso para mim", diz.

Munida dessa vontade e simples ferramentas - pastel oleoso (semelhante a giz de cera), papel e ouvido atento - Raisa conheceu as quatro histórias que apresentamos agora, de Elcias Albuquerque, Maria de Jesus Oliveira, Maria Clese de Queiroz e Roberto Maia.

São relatos das minúcias que a infância de outrora tinha. Neste mais um ano que se encerra, eles emergem como testemunha viva de que os ciclos de nossas estradas merecem ser revisitados para que se iniciem outros com o mesmo vigor do que já passou e ainda faz parte de nós.

Legenda: Seu Elcias traz no relato fatos ricos em detalhes, tais como a primeira paixão, a primeira professora, e os brinquedos que mais gostava na infância
Foto: Foto: José Leomar

Locomotiva

O tempo de criança de Elcias Albuquerque Cosmo tem o som de apito de locomotiva. Quando o tio veio da Itália após a Segunda Guerra Mundial, trouxe um trenzinho de metal que se tornou um dos objetos favoritos do garoto que hoje possui 78 anos.

"Eu brincava muito com ele. E, às vezes, quando ia para a casa do meu avô, ficava na beira dos trilhos observando o trem de verdade passar. Era daqueles maria fumaça. Chegava a me pendurar e ia até uma determinada estação. Quando o trem voltava, em algum ponto eu me atirava e caía bolando na areia", ri o motorista aposentado.

Residente, à época, no bairro Carlito Pamplona - quando ainda se chamava Brasil Oiticica - Elcias também guarda na ótima memória, capaz de lembrar diminutos detalhes de cenários, paisagens e ruídos, o movimento de soltar raia, brincar de bila e até da primeira paixão, quando pequeno. Chamava-se Cacilda.

"Nunca esqueci dela. Na Igreja, tinha aquela menina bem bonita, morena clara. Me apaixonei. Mais tarde, ela terminou casando com um amigo meu e, apesar de gostar de escrever, nunca escrevi sobre isso. Tô contando pra você agora", diz, olhando para Raisa.

Também descreve para a ilustradora, fiel confidente naquele instante, sobre a primeira professora, Silvia Helena Pinto Nogueira, hoje nome de um colégio no bairro José Walter; e dos momentos vivenciados no interior do Estado, quando passava férias em Trairi e Ipu. Em um dos municípios, no sítio da família, ajudava a moer cana para fazer rapadura e alfenim; em outro, desfrutava das cachoeiras, do banho no rio.

Cada uma dessas recordações vem sempre acompanhada de muitas figuras, como a dos primos, amigos e parentes. Da mãe, de quem ele sente mais saudade, mulher que cuidava do filho único para que sempre estivesse "limpinho e bem educado".

Legenda: Como exercício de fabulação, o desenho sintetiza os sonhos e realidade de Seu Elcias
Foto: Foto: José Leomar

"Ela não deixava meu cabelo crescer nem eu ficar com as perninhas sujas. Estava todo tempo cuidando de mim. E até hoje todos que gostam de mim fazem o mesmo", garante, mencionando os cinco filhos e a rede de companheiros do lar que atualmente mora.

"Tive, então, uma infância muito alegre. Na semana, ficava com as minhas amizadezinhas. Depois, ia para a casa dos meus tios, encontrar primos, todos da minha idade. Vivíamos bem, como até hoje".

Barro

Maria de Jesus de Souza Oliveira também guarda boas recordações dessa época. Tão bem pintadas, as unhas dela pouco parecem com aquelas do tempo de menina. É que, pelo cedo contato com a argila, as mãozinhas tinham a nudez da simplicidade.

"Eu tinha umas panelinhas de barro que ganhei de minha tia. Fui criada por ela, e sempre trazia essas coisas pra gente. Daí que fazíamos um guisado à base de plantas pra preparar comida de mentirinha para as nossas bonecas".

A refeição com sabor de fantasia era servida em móveis de caixas de fósforo, e as magras bonequinhas ganhavam, a cada desejo de mudança da garota, diferentes olhos, cabelos e roupas. Dona Maria aprendeu a costurar exatamente para fazer esses arranjos no visual das companheiras de pano.

"Ficava tudo muito lindo. Ah, que saudade...", suspira a senhora, com tamanhinho ainda de criança e trajada com vestido azul, combinando com a leveza da infância.

Legenda: Maria de Jesus de Souza Oliveira recorda dos parques e da quermesses na Parangaba, ao passo que também das brincadeiras envolvendo barro
Foto: Foto: José Leomar

Ao passo que cheia de ternura, a atmosfera daquele período também era agitada. Mesmo asmática, a pequena, hoje com 64 anos, não parava. Brincava de pular corda, carimba, ciranda e tinha paixão por andar de ônibus. Ia e voltava nos coletivos a sentir a brisa no rosto, percebendo o movimento.

"Um dia, o motorista ia parando o ônibus, quando eu pulei. Pelo impacto, dei um jeito na perna. Quando cheguei em casa, mancando, meu tio perguntou: 'Que foi isso que tu tá caxingando da perna?'. Respondi que tinha sido brincando, na escola", lembra, às gargalhadas.

Para além da rotina de casa e colégio, todos os anos havia períodos de visitar os parques e participar das quermesses ocorridas no bairro Parangaba, na Capital. Era quando se perdia, observando as luzes dos postes, dos brinquedos, e saía feito as primas, todas vestindo a mesma roupa.

"Perguntavam se éramos gêmeas. Morríamos de rir", detalha. "Tenho sempre muito o que contar daquela época - do medo de água, das tertúlias na praia, do andar de bicicleta. Do quanto tudo foi maravilhoso".

Legenda: "A senhora se reconheceu no desenho", perguntou Raisa. Dona Maria de Jesus afirmou, em tímido sorriso, que sim
Foto: Foto: José Leomar

Árvores e açude

Do contexto da cidade para a vida no campo. A fazenda do avô de Maria Clese de Queiroz Jucá ficava entre Quixadá e Choró. Assim, foi no sertão cearense que a auxiliar administrativa aposentada curtiu alguns dos melhores anos da vida.

"Subia em árvore, comia fruta tirada do pé e me banhava no açude da propriedade. Aproveitei muito", diz, ao constantemente arquear as sobrancelhas e não segurar o movimento do rosto. Era difícil encarar Raisa para a artista desenhá-la.

Legenda: Maria Clese de Queiroz tinha, na fazenda do avô, o refúgio para interagir com familiares vivenciar experiências diferentes daquelas na cidade
Foto: Foto: José Leomar

"Não tô conseguindo ficar parada, tá dando até coceira", confessa, entre tímidas risadas. "Mas quero contar que passar a infância no interior é ótimo porque a melhor coisa que tem no mundo é a gente morar no mato. Tudo é divertimento devido à ausência do movimento da cidade".

Junto às primas, dona Clese fazia a máxima ser autêntica ao conseguir ir além desse panorama. Ultrapassando as vivências de pé no chão nos terreiros abertos, de largos e belos campos, ela também aprendeu atividades como bordado, crochê e tricô, que ainda hoje, com muito gosto, faz, num exercício de mergulho em si.

"E sabe do que eu também gostava bastante? Das comidas que minha mãe e minha tia faziam. Era de um tudo, e cada coisa melhor que a outra. Nas festas, por exemplo, sempre havia leitão assado, e a gente amava. Apesar de não ter aprendido a cozinhar, trago essa memória aqui".

Igualmente, permite se avizinhar à mente o fato de, em suas palavras, ser danada, mas, ainda assim, manter supremo respeito pelo avô, homem muito querido, cuja imagem sempre vem a cada recordação ao mencionar distintos acontecimentos.

"O que mais lucrei na vida foi com a minha infância. Porque, depois de adulta, começaram os problemas de saúde. Então, gosto de saber que já andei de jumento, trepei em árvore e continuo fazendo minhas estripulias".

Recentemente, incluiu mais um tijolinho nesse edifício de pequenas grandes conquistas da vida. Sobrevoou Fortaleza de helicóptero, desejo bonito de observar de cima a cidade que admira. À época do passeio, também desejou descer de tirolesa e voar de paraquedas. Hoje, contudo, desistiu de realizar estes dois últimos: prefere ficar mais no chão, junto às raízes dos passos dados.

Legenda: Com Raisa Christina, Dona Clese conversou sobre sonhos e possibilidades
Foto: Foto: José Leomar

Álbum

Feito dona Clese, Roberto de Souza Maia também é grato ao passado. Sente orgulho de muitas coisas na vida. Mas gosta de deixar claro, sobretudo, que é sagitariano (apesar de não saber bem as características do signo); que o último sobrenome descende de rica linhagem, a qual atribui à milenar civilização maia; e do álbum que carrega sempre consigo, a tiracolo embaixo do braço.

É lá onde estão vários pedaços de histórias, memórias e vivências que não custam a vir à tona quando a prosa descompromissada com Raisa se inicia, banquinho em frente a ela, manhãzinha ainda.

Legenda: O processo de desenho do rosto de Roberto de Souza Maia
Foto: Foto: José Leomar

“Segundo meus pais, eu era muito paparicado. Tive uma infância muito boa, pois nada me faltava. Logo muito cedo, demonstrei gostar de fazer amizades com as crianças da minha idade. Brincava de amarelinha, saltar corda, jogar bila. Vez por outra, era atingido por algum colega, de brincadeira. Aprendi também a soltar pipa”, enumera numa carta escrita a próprio punho preparada especialmente para o diálogo com a ilustradora. O papel, contudo, logo fica de lado para dar vazão ao que vem do coração de maneira espontânea. E haja revelações para tanta coisa.

Uma das mais fortes são as experiências vivenciadas em Uruquê, localizado entre os municípios de Quixadá e Quixeramobim, sertão central cearense. Nas férias, aproveitava para estar junto aos amigos e irmãos na paisagem árida, perto do calor das aventuras. Caçava, pescava, nadava. Ao mencionar esse último ato, recorda ter aprendido a dar as primeiras braçadas na água em Fortaleza, cidade natal.

“Aprendi a nadar em rio e no mar ao mesmo tempo. Fizeram um quebra-mar no Estoril e a maré conseguia atravessar um pouco. Daí que formava umas piscininhas que não tinham onda, e a gente ficava lá aproveitando. Era bom”, suspira, em tom de reverência.

Talvez venha desse aconchego com o oceano o gosto particular por crustáceos. Adora comer camarão, sururu, caranguejo. São sabores da infância ainda presentes no agora. Assim como a vontade de continuar viajando e desbravando o mundo e o Ceará, realidade antiga, de miúdo atento às coisas maiores do mundo. 

E não só isso: é também afeito a trazer no peito carinhos, afetos materializados em metal. Como quando estampa num pingente, feito relicário, a fotografia de uma das netas, para que sempre ande junto a ele. “Tenho 79 anos bem vividos”, bate no peito. “Agradeço a Deus por chegar neste momento, pois tudo que eu queria fazer, já fiz”. Alguém duvida?

Legenda: Roberto de Souza Maia traz, no semblante, a síntese de "79 anos bem vividos", conforme conta
Foto: Foto: José Leomar

Escuta

Para Raisa Christina, ter contato com cada uma dessas narrativas acendeu fôlego novo. Criança míope, ela lembra de aprender a gostar tanto de conversar com as pessoas – assim como fez com os idosos, bem de perto – porque era a maneira como conseguia enxergar.

“Depois, claro, comecei a usar óculos, mas acho que sempre conectei essa ação de fazer retrato a um momento de conversa. Meu pai trabalha com escrita, e eu o acompanhava no sertão ouvindo causos populares. O desenho se confundiu com aquilo”.

Confessou-nos voltar à rotina diferente, tendo em vista que percebeu ter ouvido pouco os avós, especialmente aquele por parte de pai. “Meu avô ainda está vivo, embora esquecendo de muita coisa. Ele é uma pessoa mais durona, então acho que isso me afastou. Mas caiu um pouco a ficha de que a gente por vezes não tem muita atenção com quem está do nosso lado, e esse processo de escuta é importante para essas pessoas, muito mais do que para nós”.

Legenda: Juntos, Raisa Christina e os idosos do Lar Torres de Melo ressignificam experiências e dão boas-vindas aos antigos e novos ciclos da vida
Foto: Foto: José Leomar

Retratos entregues aos idosos, fotografias feitas, agradecimentos recebidos, emoções compartilhadas. Cada um retorna ao estado inicial das coisas com novas cores no semblante e no papel. Desenham outras maneiras de reiniciar o ciclo que já bate à porta. 

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