Moradora do Bom Jardim faz curso, ajuda a restaurar prédio histórico e vira funcionária do local
A chance de atuar na recuperação do imóvel da segunda metade do século XIX, no Centro, veio em um curso da Escola de Artes e Ofícios.
No primeiro cômodo de um dos sobrados mais altos da Fortaleza antiga - prédio com três pavimentos -, na Rua Major Facundo, no Centro, a historiadora e produtora cultural Georgia Viana aponta nas paredes o trabalho que executou. Está lá, evidente. Entre 2006 e 2007, em um projeto de restauração, ela e um grupo de estudantes e técnicos trouxeram à tona desenhos que estavam encobertos por camadas de pinturas na sala do prédio de traços neoclássicos.
O trabalho minucioso, executado por Georgia junto aos colegas, garante, desde então, a diversas gerações o contato com as marcas históricas do Sobrado Dr José Lourenço.
O imóvel, que hoje é um equipamento cultural do Governo do Estado, pertenceu ao médico José Lourenço de Castro Silva (1803-1874) e na história acumulou usos diversos: moradia, bordel, consultório médico, oficina de marcenaria, junta comercial e até sede do Tribunal de Justiça do Ceará.
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No dia a dia, cerca de 12,6 km separam a moradia de Georgia, no bairro Bom Jardim, na periferia da Capital, da edificação histórica no Centro, que desde 2007 é seu local de trabalho. O percurso diário mistura distintas paisagens e constata a diversidade da cidade.
Esses elementos, diz Georgia, no processo de formação a fizeram aprender a redescobrir o patrimônio material e imaterial das áreas menos nobres. Por isso, a defesa das “riquezas ignoradas” é permanente, conta ela.
O Sobrado, segundo estimativas do poder público do Ceará no processo de tombamento do bem, foi erguido na segunda metade do século XIX, provavelmente entre 1845 e 1874. Mas não há uma comprovação precisa sobre o exato ano da construção. Erguido na antiga Rua da Palma (atual Major Facundo) foi um dos primeiros prédios da cidade a ter 3 andares.
Atualmente, o prédio está fechado em reforma, e pertence ao Governo do Estado. Ele foi completamente restaurado entre os anos de 2006 e 2007, após sofrer um grande processo de deterioração. Na edificação, tombada em 2004 pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult), Georgia viu literalmente as portas se abrirem para ser “guardiã do patrimônio e da memória”.
Trajetória de formação
Natural da cidade de Pentecoste, Georgia hoje com 38 anos, recorda quando chegou em Fortaleza, aos 12 anos. Trazida pela mãe, junto a 5 irmãos, veio “em busca da sobrevivência”. Na Capital, duas irmãs de Georgia, trabalhadoras do serviço doméstico “em casas de família", aguardavam o grupo. O Bom Jardim foi o local de morada naquela época e lá segue até hoje.
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A chance de alterar a própria trajetória veio por volta dos 20 anos, quando concluiu o Ensino Médio, em uma das escolas públicas do bairro. Georgia, naquela altura fazia atividades diversas para ter renda, como a venda de artesanato e trabalhos de costura com a mãe e as irmãs, e também participava de projetos sociais no Bom Jardim.
Com o Ensino Médio concluído, soube por um colega da existência da Escola de Artes e Ofícios. O equipamento é uma instituição localizada no Jacarecanga e administrada desde 2006 pelo Instituto Dragão do Mar, em contrato de gestão com a Secult.
No local são ofertados, dentre outros, cursos de conservação e restauro, oficinas e minicursos de gravura e artesanato (bordado, cerâmica), sobretudo, para jovens estudantes de escolas públicas, a partir de 18 anos, ou em situação de vulnerabilidade social.
“Eu não sabia de muita coisa. Quando a gente tá na sala de aula, a gente estuda uma história que é nossa, mas, muitas vezes, acaba não tendo esse pertencimento. O meu contato com o Sobrado e outras experiências me fizeram despertar, naquela época, que essa é nossa história, nossos antepassados”.
Ela também relembra o processo: “Eu me inscrevi, passei pela primeira seleção e não conhecia a escola (de Artes e Ofícios). Lá eu descobri o que era o patrimônio, que até então era super vago para mim. Eu vinha para o Centro, por exemplo, e eu não sabia nada sobre o patrimônio. Vinha só fazer compras com minha mãe e voltava rapidinho para o meu bairro. E quando eu vim, depois que eu já era aluna da escola, eu tive outra visão”, destaca.
Restauração do Sobrado
Com início em 2006, a formação para qual Georgia foi selecionada, curso de Conservação e Restauro do Patrimônio, teve duração de 1 ano e 2 meses, segundo ela. “E antes de terminar, tinha que ter uma parte prática. Tinha uma empresa que já estava trabalhando na restauração do prédio (Sobrado Dr. José Lourenço) e do Museu da Indústria. Fizemos uma visita técnica e voltamos para a aula”, conta.
Na época, o prédio estava totalmente destruído. Era momento de restaurá-lo em busca da preservação dos detalhes originais. “A Escola fez uma parceria com a empresa e eles aceitaram receber todos os alunos”, relata ela. Os trabalhos foram divididos em marcenaria, alvenaria e pintura. Georgia ficou no terceiro grupo.
Nesse processo ela atuou na raspagem das paredes e na descoberta de pinturas ocultas em sucessivas camadas. O resultado do processo trouxe à tona as pinturas que hoje podem ser conferidas no primeiro cômodo do casarão. Ela também trabalhou na restauração de azulejos que compõem a estética da edificação.
Georgia conciliava a empolgação com as difíceis batalhas. À época, a mãe estava com câncer e ela relata: “Foi muito difícil. Eu acordava 4h30 da manhã, pegava o ônibus às 5h. Ia para o Siqueira, Parangaba, e vinha para o Centro. Nesse momento a escola me deu essa força”. Antes do fim da restauração, em 2007, a mãe de Georgia faleceu. A entrega do equipamento ocorreu em 31 de julho de 2007.
Em meio aos percalços e ao luto, Georgia foi selecionada pela Escola de Artes e Ofícios para ser estagiária e atuar como mediadora no equipamento recém restaurado. “Comecei a trabalhar no dia 31 de julho de 2007. Em 2008, terminou o convênio com os alunos e eu fui chamada para trabalhar de carteira assinada (no Sobrado Dr. José Lourenço)”.
Desde então, ela se formou no curso de História e já são 16 anos trabalhando no equipamento que ela viu renascer e contribuiu com o processo. “Hoje, eu sou responsável pela conservação do espaço tanto arquitetônico como daquilo que é exposto. Eu monto e desmonto exposições. Sou ministrante de oficinas e produtora cultural”, destaca.
Como reconhecimento, ela reforça que “eu via a cidade de outra maneira. A escola me influenciou muito. Até hoje. Me deu um norte e eu me apaixonei pela área. A escola me fez abrir os olhos para ver o patrimônio, ver que no meu bairro tem esse valor que eu não sabia. E isso me faz me reafirmar como uma moradora de comunidade que reconhece esse valor”.
Impacto da Escola
A coordenadora pedagógica da Escola de Artes e Ofícios, Francineide Chaves, destaca o quanto o equipamento tem contribuído tanto para a formação de jovens e também para a inserção dos mesmos no mercado de trabalho.
“Ajuda no desenvolvimento das potencialidades artísticas, para as habilidades dos alunos e também com relação à parte cognitiva e à autoestima. Muitos desses alunos, chegam sem perspectiva. Eles começam a se descobrir capazes de desenvolver atividades, capazes de criar. A partir disso, procuram desenvolver uma atividade, uma profissão que dê um retorno também monetário”.
Ela também argumenta que muitos jovens que têm oportunidade de participar de alguma formação no equipamento, fazem cursos iniciais e depois “vão se aprofundar”, e, em diversos casos, ingressam no ensino superior.
Germana Vitoriano, diretora do Sobrado Dr. José Lourenço, afirma que a parceria com a Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho para a preservação do imóvel foi "um marco" na história do Sobrado e, acredita, também na vida dos alunos que atuaram sob o comando do professor Domingos Linheiro.
E foi muito significativo termos mantido parte desses alunos, atuando como mediadores no atendimento ao público. E isso só foi possível por conta de um programa de estágio da Escola, que nos deixou um dos melhores frutos, Geórgia Mara, nossa querida guardiã, um 'patrimônio' do equipamento.
A gestora destaca a importância da conservação do edifício para os diversos usos que ele teve ao longo de mais de 170 anos. Para ela, o prédio "guarda e irradia histórias e memórias de diferentes épocas da cidade".
Sua preservação e tombamento como patrimônio cultural estadual possibilitam um conhecimento maior sobre arquitetura, patrimônio, identidade, além de vislumbrar práticas sociais, costumes, hábitos e cotidiano vivenciados ao longo desse tempo.
A atual função do imóvel como equipamento cultural, segundo a diretora, amplia ainda mais as possibilidades de conhecimento.