Veterinária conta rotina desgastante no atendimento a animais no Sul: 'Chegam cerca de 100 por dia'

Mirele Fuhr diz que os voluntários não tinham ideia de como começar, o que fazer, como formar hospitais de campanha e conseguir receber os resgatados

Legenda: Animais resgatados ficam em abrigos ou galpões em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul
Foto: Reprodução/Mirele Fuhr

"A gente achou que já no sétimo dia a maioria [dos animais encontrados] estaria morta, mas não. Eles estão chegando. Quando um barco chega, tem de 8 a 10 resgatados, são cerca de 100 por dia". O relato é da neurofisiatra gaúcha, Mirele Fuhr, que está no Rio Grande do Sul ajudando no resgaste dos animais.

Os médicos veterinários voluntários contam que enfrentam, agora, um cenário de maior gravidade no estado de saúde dos animais resgatados, com a superlotação dos abrigos, a falta de medicamentos e de profissionais voluntários, golpes de criminosos que desviam suprimentos comprados, etc. 

"Eles estão chegando hipotérmicos, com lacerações por tentar escapar e se machucar em alguma grade, em algum carro que esteja embaixo d'água. Chegam já com leptospirose. Alguns animais eram de rua, ficavam em periferias e já tinham doenças como cinomose, tumores e a gente também está tendo que tratar. Então, não são só questões referentes a enchente. A gente está lidando hoje com o caos de pacientes que já não estavam bem".
Mirele Fuhr
Neurofisiatra

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Superlotação de abrigos, galpões e hospital veterinário de campanha

Mirele Fuhr diz que os voluntários não tinham ideia de como começar, o que fazer, como formar hospitais de campanha e conseguir receber os resgatados. "E a gente nem imaginava um número específico de animais".

"Se a gente for analisar que cada família resgatada, tem, em média, um pai, uma mãe, dois ou três filhos, alguns sem filhos. Enquanto isso, a grande maioria dessas pessoas tinham em torno de três, quatro, seis, sete animais. Então, o que está chegando pra gente, às vezes é sete vezes o número do que chega pro abrigo de pessoas. Isso nos assustou muito e a gente segue se assustando porque seguem sendo resgatados animais ainda em cima do telhado, ainda vivos".
Mirele Fuhr
Neurofisiatra

Mirele está atuando em Novo Hamburgo, cidade mais ao norte do estado, que segue recebendo alerta de evacuação por conta da elevação do Rio dos Sinos. A situação dos abrigos é alarmante, descreve. "Já estamos com todos os abrigos lotados, seguimos abrindo abrigos. Em Canoas [outra cidade atingida], tudo lotado nos galpões, nos abrigos, só no auditório da Universidade do Vale do Rio dos Sinos tem mais três mil cães lá". 

Animais Rio Grande do Sul
Legenda: Cachorros com bom estado de saúde ficam dentro de gaiolas para controle nos abrigos
Foto: Reprodução/Mirele Fuhr

Necessidade de profissionais da saúde para dividir atendimentos

"Basicamente, o que a gente mais precisa hoje é de gente pra ajudar. Precisamos de veterinários vindo de fora, precisa de enfermeiros veterinários, estudantes de veterinária, todo mundo que sabe um pouco de veterinária, que pode ajudar pelo menos na parte de enfermagem, de aplicar medicação, de segurar cachorro, de ajudar nas feridas, ajudar nos exames, tudo isso é ajuda porque a gente está cansado já".
Mirele Fuhr
Neurofisiatra

Ainda segundo o relato da médica, ajudas financeiras são essenciais para comprar suprimentos que possam garantir a sobrevivência dos animais. "Ajudei na logística, decidi sair pra comprar lençol térmico e capas térmicas pra conseguir pegar esses cães hipotérmicos. Secador, micro-ondas, muita gente doou essas coisas, mas segue faltando porque segue tendo pacientes novos". 

Animal aguardando atendimento no Rio Grande do Sul
Legenda: Papéis com o histórico dos pacientes ficam fixados nas gaiolas
Foto: Reprodução/Mirele Fuhr

"Quem quiser vir, quem puder vir, seja três, quatro dias, às vezes é uma semana, às vezes é um dia. Quem puder vir, a gente precisa muito. A gente está cansado, nós somos em poucos. Também estamos nos dividindo nos nossos próprios empregos. Já se passou uma semana. A gente está exausto e com medo, nunca passamos por isso antes. Estamos usando toda a nossa energia e toda a nossa adrenalina para conseguir seguir. Mas, se o pessoal conseguir vir, principalmente, veterinários e enfermeiros, quem sabe a consegue montar nossas escalas e dar folga para quem está lá na linha de frente o tempo todos os dias".
Mirele Fuhr
Neurofisiatra

"Não vai ser esse mês que isso vai acabar. Então, além das doações, além do dinheiro, a gente vai precisar de ajuda por mais tempo", ressalta.

Processo de resgate e triagem dos animais

Em Novo Hamburgo, os animais chegam de barco e são amarrados no primeiro local encontrado para evitar fuga, na maioria das vezes é embaixo dos trilhos de trens. Depois, voluntários e alguns veterinários fazem uma triagem. "Ver se está lesionado, se está bem, se é só hipotermia, se tem como ir para um abrigo ou se tem que ir diretamente para os atendimentos". 

Segundo Mirele, a triagem é rápida e básica porque não há muitas pessoas ajudando. O local de atendimento dela é mais específico a cães e gatos. Outros animais são destinados a lugares específicos. "Já vi recolher porquinho da Índia, galinha, papagaio, tem de tudo, mas para gente chega, principalmente, cães e gatos".

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Marcação nas portas dos atendimentos a animais no Rio Grande do Sul
Legenda: Médicos veterinários e voluntários organizam salas para dividir atendimentos prioritários nos abrigos do Sul
Foto: Reprodução/Mirele Fuhr

Golpes na compra e logística de medicamentos

"Nesse meio tempo, a gente encontra pessoas boas e ruins". Um exemplo de boas pessoas, é o grupo de veterinários de São Paulo que ajudou Mirele a conseguir comprar e receber os medicamentos em grandes quantidades. "Eles se prontificaram a fazer um movimento para trazer essa medicação".

Mas, Mirele conta que há também pessoas que começam querendo ajudar e depois dificultam a logística de chegada dos medicamentos. "Tentam aplicar golpes na gente, quando está tudo certo pedem cada vez mais dinheiro para fazer o medicamento chegar. Está bem difícil de conseguir fazer com que essas medicações cheguem para a gente. Aos poucos está chegando, mas sai muito rápido".

"A gente compra com o valor do pix que as pessoas estão fazendo para nos ajudar. A gente conta com a boa ajuda e boa vontade de outras pessoas, outros veterinários. Chega aqui e a gente estoca os medicamentos controlados em locais específicos porque a gente não tem nem um local onde a gente possa deixar chaveado".
Mirele Fuhr
Neurofisiatra

medicamentos para animais no Rio Grande do Sul
Legenda: Os medicamentos e suprimentos para os animais ficam organizados em estantes
Foto: Reprodução/Mirele Fuhr

Problema futuro: o destino dos cães resgatados

Mirele desabafa ainda sobre o medo desses animais não serem adotados. "Muitas famílias não vão poder voltar para os seus lares e não vão mais querer esses cães". 

"A gente tem um problema que preferimos não pensar ainda, mas é se a gente vai conseguir pessoas que façam lar temporário para esses animais. Que adotem, momentaneamente. E se ninguém quiser esses animais depois? Vai ter muito cachorro e gato. Estamos fazendo de tudo para salvar todos. Nem todos estamos conseguindo, alguns tratamentos são muito longos, mas estamos fazendo o possível e o impossível para conseguir manter todos com oportunidade de viver".
Mirele Fuhr
Neurofisiatra

"A gente precisa de toda ajuda, precisamos de tudo, de qualquer pessoa que ajude com qualquer coisa. Precisamos da empatia e hoje o meu pensamento, o que eu preciso é que as pessoas não desistam da gente", conclui.