Mulheres apostam no potencial criativo da Praia de Iracema como forma de empreender e resistir

Em meio às transformações, a Praia de Iracema é reocupada com atividades culturais. Na Rua dos Tabajaras, mulheres comandam bares, lojas e outros empreendimentos e contam os desafios da empreitada

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: Nélida Aires, Silvânia de Deus, Manuela do Vale, Clarisse e Thaís Costa: Mulheres que comandam negócios na Rua dos Tabajaras
Foto: Camila Lima

Fortaleza é terra de encontros. Lugar de sol, de mar e de acolhimento. Quem passa por aqui, tem parada obrigatória: a Beira Mar. Localizada no bairro Praia de Iracema, os arredores do ponto turístico contam muito da história da Capital cearense. Apesar de toda a construção afetiva do local e da exuberante paisagem, determinados pontos foram, por alguns anos, esquecidos.

Entretanto, a charmosa Rua dos Tabajaras, por exemplo, reúne um comércio vivo e diverso com histórias de quem há anos vê as transformações do local, assim como outras que chegaram há pouco tempo, mas já contribuem para um olhar mais cuidadoso com o espaço. E, além desse apreço pela rua, há mais um detalhe em comum: são as mulheres que comandam boa parte dos empreendimentos do local.

Com o trabalho das mulheres que estão lá há mais tempo, a rede de empreendedorismo cresce tecida a partir da representatividade. Uma puxa a outra, que impulsiona outra. A Rua dos Tabajaras mostra ainda que esse elo feminino vai além do exemplo e dessa comunidade de apoio.

"A nossa relação com as outras casas é do sutil à parceria de trabalho mesmo. A gente empresta liquidificador, caixa de som e, quando precisa, toma uma ducha no restaurante vizinho depois do banho de mar", conta Thaís Costa, de 32 anos, produtora do Café Couture, espaço em atividade desde 2017.

Ao lado das irmãs Clarisse, 30, e Nélida Aires, 32, o trio viu na Praia de Iracema o charme de um lugar que reúne públicos de todos os estilos, idades e lugares. E é na varanda do Café que eles se encontram. "O acolhimento nessa rua é único, as pessoas de Fortaleza gostam de uma varandinha, de conversar na calçada, é um costume nosso", explica Nélida sobre a escolha do lugar.

Legenda: Thaís Costa, Clarisse e Nélida Aires, em ordem, apostam em uma programação que contemple mulheres
Foto: Camila Lima

Além de ser ponto de encontro noturno com programações musicais de terça a domingo, o espaço foi uma maneira de elas incentivarem o protagonismo feminino com um quadro de funcionários formado majoritariamente por mulheres. Inspiradas no próprio trabalho, já que Clarisse e Thaís são musicistas, as três fizeram ainda um mapeamento de artistas mulheres em Fortaleza para dar espaços a elas nos palcos.

Apesar dos desafios, especialmente os infraestruturais da rua, as meninas consideram um privilégio poder trabalhar na região. "Outro dia, tomei banho de mar, água de coco e vim no Café fazer o que eu tinha para fazer. Você ter uma praia massa pertinho, ter uma cidade com clima bom, acolhedor e me sentir parte, poder fazer essa coisas antes de vir paro trabalho é bom demais", afirma Clarisse.

Reocupar

Em uma tarde na Rua da boemia, é possível conhecer ainda outras histórias, como a de Silvânia de Deus, de 50 anos, que resiste desde 1999 na região. Além de morada, a casa de número 660 é espaço de manifestação cultural com o Ateliê da Sil, que abriga peças de autoria dela e de outros designers cearenses, e também o restaurante de Rosele Tejada, o Ventana. Como a própria designer fala, "é, ao mesmo tempo, cria e criador desse lugar".

A trajetória de Silvânia com a moda começou ainda na infância vendo a mãe transformar tecidos e linhas em roupas que eram encomendadas pela vizinhança do bairro Carlito Pamplona, onde moravam. Aos 12 anos, produziu a primeira peça. "Eu era muito exigente, chata mesmo e não queria usar o que mamãe fazia".

Foi assim que Silvânia se encontrou. Estudando Pedagogia e trabalhando como professora, mal sabia ela que o deságue da veia criativa viria por outra profissão. Com o incentivo do marido, já falecido, que viu o potencial artístico dela, decidiu apostar na carreira como designer.

Legenda: Silvânia de Deus mora na Rua dos Tabajaras e mantém um ateliê e loja colaborativa no mesmo imóvel
Foto: Camila Lima

Inventiva e inovadora, ela coleciona no currículo momentos importantes para a moda cearense, quando foi a primeira mulher, por exemplo, a compor o time de estilistas da primeira edição do Dragão Fashion Brasil (DFB), em 1999. Foi na ocasião, inclusive, que lançou a sua marca autoral.

Desde que essa nova onda feminina foi crescendo, Silvânia diz se sentir mais forte.

"Acontece uma irmandade, uma sororidade, uma facilidade de conexão e isso tudo gera mais engajamento, mais unidade, coletividade para a realização. Para mim, trouxe muito mais potência ter elas comigo".

E considera ser fundamental que esse protagonismo seja colocado em voga. "Acho que a amplitude dessa força pode reverberar de forma muito positiva, trazendo mais beleza, mais zelo. Sinto isso na simplicidade do cotidiano lá, a gente coloca plantas, cuida das árvores".

A designer viu os diferentes ciclos do coração litorâneo de Fortaleza e foi a partir dessas movimentações que Silvânia viu a oportunidade de criar a cidade que queria. Eventos culturais, ocupação da rua e abertura das portas da casa. Assim, Silvânia resiste e nasce o Fuá da Sil, em 2014.

Desde então, a designer convida a população de Fortaleza a ver com outros olhos a P.I. Na última edição, que aconteceu neste sábado (14), ela lançou coleção e também o Movimento Iracemar. "Surge desse meu olhar atento de o tempo inteiro chamar atenção para o cuidado com os nossos espaços, tentar mostrar o que é invisível que são as histórias dos moradores", explica.

E de onde vem tanto amor pela região? "A Praia de Iracema tem uma associação muito forte com a cultura, com a arte, sempre foi casa de muitos ateliês criativos. O bairro comunga muito com a minha própria história, reforça muito essa veia criativa que eu tenho e que levo para o meu trabalho", declara.

Tradição

Ao lado da sócia Lúcia Neves, Beatriz Castro, de 59 anos, há 24 comanda a loja Ethos, que nasceu do desejo das duas de fazer roupas que aproximam as pessoas. A aposta é em peças únicas de tecidos naturais e bordadas à mão, elementos típicos regionais. A marca nasceu em 1993, mas somente em 1996 passou a ocupar o casarão amarelo da década de 1940 nos Tabajaras, onde anteriormente moraram os pais de Beatriz.

Legenda: á quase 25 anos com marca na Praia de Iracema, Beatriz Castro resiste em meios às mudanças
Foto: Camila Lima

Essa relação afetiva da designer com a região vem desde o nascimento, já que a mãe deu à luz na casa que, atualmente, é o Centro Cultural Belchior, localizado na Rua dos Pacajus, paralela à dos Tabajaras. Vendedora de bolos, a avó de Beatriz também morou na vizinhança. "A minha relação com a Praia é muito forte, eu nasci aqui e morei até os 11 anos. Depois, me mudei para a casa da Rua dos Tabajaras. Minha relação afetiva com esse lugar é muito grande, minha vida toda foi aqui", afirma a designer.

Há mais de 20 anos no local, Beatriz viveu diferentes fases da P.I, apelido carinhoso que ganhou da juventude que frequenta o local. "Pegamos aquele auge da Praia de Iracema, com muita movimentação, muitos restaurantes e galerias de arte, foi uma época muito boa", lembra.

O declínio, de acordo com ela, começou em 2004, quando restaurantes começaram a fechar e a frequência a mudar. "Antes quando era mais movimentado, a gente ficava até 22h na loja, tinha muito movimento de turista, de passante".

Apesar disso, a vontade de permanecer foi maior. "É o maior luxo que eu posso ter, trabalhar com vista para o mar. Como eu vou sair daqui?". A tal paisagem privilegiada é da janela da sala em que as peças ganham corpo e onde Beatriz posa para as lentes da equipe da reportagem.

Quem passa por lá e se depara com a Casa Azul, não perde um clique na frente da fachada turquesa, com portas e janelas de madeira. Além de abrigar as marcas de Lidierre Galdino, 28, e de Thiara Farias, 29, o local conta com três espaços para hospedagem. Antes de apostar no espaço físico, Lidierre vendia as peças da Pump no ambiente online. Foi quando surgiu o convite de Thiara, da Flor Brasil, para ocuparem o casarão, que ainda é composto por uma terceira marca.

"Ela queria dividir comigo e ficamos apaixonadas pelo lugar. A Thiara queria muito um negócio na praia, e eu achei que daria muito certo. Apesar de vendermos produtos diferentes, nossas marcas têm a mesma cara", conta Lidierre. A Pump trabalha com roupas autorais e com uma pegada solar, enquanto a Flor Brasil é marca de beachwear, ambas inauguraram no local em julho de 2019 e que surgiram a partir da inspiração de ver outras mulheres.

Força feminina

"Cada vez mais mulheres estão alcançando lugares mais altos, além de elas estarem conseguido alcançar a independência financeira, tem a questão da representatividade. Eu me inspirei em diversas outras mulheres empreendedoras, especialmente na minha mãe", conta Lidierre.

Para ela, essa maioria feminina vem da vontade delas de obterem uma outra fonte de renda ao mesmo tempo em que conquistam a oportunidade de trabalhar com o que realmente desejam.

Legenda: Lidierre Galdino e Thiara Farias lideram marcas que funcionam na Casa Azul
Foto: Helene Santos

Assim como Silvânia, as duas também realizam eventos para ocupar a Rua dos Tabajaras. Em pelo menos dois sábados de cada mês, elas promovem o Zuada na Casa Azul, que começa no horário do pôr do sol, com programação musical comandada por DJ's locais, além de outros empreendedores do local com comidinhas e bebidas.

"A gente está tentando realmente criar esse movimento que veio para ficar, porque queremos que as pessoas venham e conheçam e, quando você se une com as outras pessoas para fazer isso acontecer, a trajetória se torna mais fácil", explica Thiara.

Uma casinha rosa e de muro baixo chama a atenção de quem passa. Sob o comando de Manuela do Vale, 42, o restaurante Mar de Rosas reúne elementos característicos da culinária local com o sabor da comida caseira. Desde que decidiu focar na carreira como empreendedora, a publicitária de formação sempre viu na praia um refúgio.

"Quando eu penso na minha velhice, eu só penso na praia, de estar próxima da praia, aí surgiu a oportunidade de montar o restaurante aqui e achei que era conveniente com o meu momento, com a fase da minha vida", conta sobre o começo do Mar de Rosas que surgiu em 2019.

Legenda: A casinha que abriga o restaurante de Manuela do Vale tem a arquitetura da região preservada
Foto: Camila Lima

Preocupada em preservar as características da arquitetura local, Manuela, apesar de ver com bons olhos o fenômeno de reocupação, teme pelas proporções que o crescimento sem planejamento pode acarretar na região. Mesmo assim, comemora o moviment. 

"Para as pessoas andarem por aqui é importante que tenham opções, você pode ir à praia, depois dar uma olhada nas lojas, senta ali e toma um açaí, vem e almoça, faz compras no supermercado".

Ela lembra com carinho da relação que mantém com a Praia de Iracema, que frequenta desde a infância. "Quando tinha alguma ocasião especial, eu e minha família vínhamos para comemorar em um restaurante que tinha aqui. Na adolescência, vivi nos bares, na ponte metálica", diz.

Cultura

O presidente do Instituto Cultural Iracema, Davi Gomes, reconhece a importância da participação feminina nesse movimento de reocupação, "é muito massa essa ocupação que está sendo feita principalmente por mulheres, isso traz um protagonismo muito bacana para o bairro, a gente precisa disso. Para além de todos os preconceitos, é um bairro plural, diverso, que aceita todos os gêneros, as cores, classes sociais e é isso que tem acontecido, esse espírito novo".

O Instituto é uma associação civil, sem fins lucrativos, que trabalha há quase dois anos para desenvolver a região em diversas áreas com ações urbanísticas em parceria com a Prefeitura de Fortaleza.

Com uma identidade e história muito próprias, Davi afirma ainda que o bairro é um espaço propício para o surgimento de novos empreendimentos autorais. "Tudo o que envolve moda, sustentabilidade, bares, restaurantes, hostels, encontra espaço, essa cadeia da economia criativa é o que tem vindo para cá".

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