Em turnê pelo Brasil, Ney Matogrosso critica onda conservadora: 'Nós estamos regredindo muito'

Em entrevista exclusiva, o cantor defende a liberdade na criação artística, diz que não precisa do governo para promover seus shows e fala sobre a turnê "Bloco na Rua", que chega em Fortaleza neste sábado (24)

Escrito por Rômulo Costa , romulo.costa@verdesmares.com.br
Legenda: Na nova turnê, cantor recorda canções do próprio repertório e dá sua interpretação pra músicas conhecidas na voz de outros artistas
Foto: FOTO: MARCOS HERMES

Quando Ney Matogrosso colocou seu “Bloco na Rua” pela primeira vez, era janeiro de 2019, pouco tempo depois da troca do governo brasileiro. Logo surgiram opiniões de que o cantor fazia um espetáculo mais engajado politicamente. Em entrevista exclusiva por telefone, Ney diz que não é bem assim.

Apesar de não poupar críticas à atual conjuntura brasileira e cobrar liberdade para as artes, o artista fez questão de dizer que não faz um show para o Planalto. “Fiz para o meu prazer de cantar”, ele demarca ao dizer que se tem um toque político é pelo lado humano, não pelo partidário.

Aos 78 anos, o cantor ainda esbanja vigor no palco. É o mesmo Ney de sempre, que conquistou o público pela ousadia e a autenticidade. Marcas que estão na nova turnê que o cantor apresenta no Centro de Eventos neste sábado (24). Confira a entrevista: 

Qual foi a proposta que você quis trazer nesse novo show?
O conceito foi cantar só músicas que eu gostasse, independentemente de terem sido gravadas por alguém. Tem gente que não canta músicas que já foram gravadas, eu não tenho esse problema. Fui cantando tudo o que eu gostava e que eu gostaria de cantar dessa vez. Esse roteiro estava pronto há mais de dois anos. As pessoas pensam que eu fiz para o governo do Brasil. Não fiz pensando em ninguém. Fiz para o meu prazer de cantar.  

Só tem uma música inédita no show?
Só uma, que é a música de uma peça de teatro.

Como você chegou nessa música?
O Dan Nakagawa (compositor paulista de ascendência nipônica) é um amigo. Já gravei músicas dele. Ele escreve peças e faz as músicas da peça também. Fui ver uma peça e essa música (“Inominável”) era uma das que estavam na peça. Gostei muito dela.

As pessoas dizem que é um show político pensando no novo governo?
Sim, mas eu fiz esse roteiro há mais de dois anos. Não existia essa possibilidade no panorama do Brasil há dois anos atrás.

Como você recebe essa associação?
Eu até entendo que eles achem isso, mas não é político-partidário. É uma coisa humana.

Se existe uma atitude política é uma atitude humano-política, não é partidária.
 

Essa atitude está no seu trabalho há anos.
Sim. Talvez agora isso esteja um pouco mais concentrado e por isso agora apareceu, né?

Você se incomoda que o seu trabalho seja visto como político?
Não, porque as pessoas quando se referem a isso destacam muito bem que não é político-partidário. As pessoas entendem que não é. 

Nesse show, tem músicas de compositores cearenses que já estiveram em trabalhos seus em anos anteriores. Qual é a sua relação com esses compositores?
Eu conheço todos. Sou íntimo do Fagner, era mais íntimo do Belchior, conheço o Ednardo e fui mais próximo dele. Todos eu conheci em uma certa época da minha vida. Talvez no anos 70 eu encontrei e conheci essas pessoas.

Não todos, mas a maioria dos envolvidos aí, como o Fausto Nilo. No meio disso de cantar músicas que foram gravadas por outras pessoas, eu queria regravar músicas minhas, porque é uma coisa que eu não faço muito. Dessa vez eu quis. 

Você faz isso depois de "Atento aos sinais", que foi sua maior turnê, com cinco anos. Por que ela durou tanto tempo?
As pessoas não me deixavam acabar. Quando deu dois anos e meio eu pensei que já estava na hora da gente pensar em parar e começou uma procura, uma procura, uma procura... Chegou a cinco anos. Quando completou cinco anos, eu decidi parar porque eu não ia passar dez anos fazendo o mesmo show. 

O show te incomodava já?
Não, não me incomodava. Eu adorava fazer, mas achei que já era muito tempo. Já tinha o novo roteiro e eu queria fazer. Cinco anos tá bom, né? Pelo caminhar da coisa, esse vai longe também, viu?

Você acha que supera o “Atento aos sinais”?
Não sei se supera. Não sei se vai chegar aos cinco anos porque também já estou com 78 anos. Mas ele provoca mais as pessoas do que o “Atento aos sinais”. 

Tem uma explicação para isso? É esse tom de retrospectiva?
Todas músicas são muito conhecidas, e as pessoas talvez estejam gostando de ouvir. Ninguém nunca mais escutou essas músicas. 

Que bloco é esse que você está querendo colocar na rua? O que você quis dizer com isso?
Há muito anos eu quero cantar essa música (“Eu quero é botar meu bloco na rua”, do compositor Sérgio Sampaio, lançada em 1972). Eu tirei o título do show daí, porque ela me insinua alguma coisa em movimento. Eu aproveitei essa hora, misturando coisas que eu cantei com coisas que eu nunca cantei, para cantar.

É como “A maçã”, do Raul (Seixas, ao lado de Paulo Coelho e Marcelo Motta, lançada em 1975). Eu queria cantar essa música há muito tempo. Sempre que eu ouvia, eu pensava: “Que vontade de cantar”.

Legenda: Ney critica onda conservadora, diz que há retrocessos e defende liberdade na expressão artística
Foto: FOTO: MARCOS HERMES

Você sempre repete que não tem medo. Essa palavra entrou no vocabulário de muita gente nos últimos tempos. Como você vê isso?
Quando você fala e se submete a isso, você está fortalecendo o que provoca o medo. Eu acho que a gente não tem que se submeter a isso. Cada um tem que tocar a sua vida independente desse princípio ameaçador, porque você fortalece.

Essa onda conservadora te assusta?
Não me assusta, só acho chata. É careta, é fora de moda, ultrapassada. Nós estamos regredindo muito. 

Em quê?
Em tudo. Educação, saúde... Vamos um por um dos ministérios, todos estão em processo retroativo.

Qual é o papel da arte?
A arte tem que se expressar com liberdade.

Tem que defender sempre a liberdade.

O Governo está em conflito com o cinema, que é uma área que você tem ligação. Você acha que a arte tem conseguido se expressar?
É uma idiotice atacar o cinema, que é uma coisa que gera dinheiro para o Brasil. É uma loucura isso. Faz parte desse retrocesso. 

Você tem medo de que isso avance para outras manifestações artísticas?
Eu não percebo esse movimento. Na verdade, não tenho medo. Não dependo de governo para trabalhar, para fazer meu show. Sempre banquei minhas coisas. O cinema é que é muito mais caro. O cinema depende. Um meio de querer calar é esse. Mas calar o quê? Não tem o que calar.

Tem que deixar as pessoas se expressarem. Não tem porque calar ninguém. É uma coisa moralista. Tudo é focado em Bruna Surfistinha, meu deus do céu! Isso não é todo o cinema brasileiro. E mesmo assim qual é o problema da Bruna Surfistinha? Ela existe. Cada um é dono da sua vida.

Ano passado você lançou seu livro de memórias. Neste ano, o novo show. Como tem sido essa fase da sua vida?
Olho pra ela da mesma maneira como sempre olhei. Quando eu percebi que o show era muito pesado, eu pensei assim: “Ué, você inventou, agora aguenta”. Eu achei que ia dançar menos, que nada. Eu estou dançando mais do que no outro.
 

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