Cearense desenvolve jogo avançado sozinho apenas com recursos gratuitos da internet

Ícaro Soares levou três anos para criar o “Quimeras”, dedicando-se de 8 a 16 horas por dia no desenvolvimento do game

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Ícaro Soares e seu "Quimeras": para o desenvolvedor, jogo pode ser encarado como um trunfo no Brasil, vide o modo como foi feito
Foto: Arquivo pessoal

Feito muitas pessoas no alvorecer da vida, Ícaro Soares também passou a infância entre jogos. Era o único passatempo para o menino que foi, em meados dos anos 2000. Embora sob a preocupação dos pais – cuja ordem dada ao miúdo era de apenas duas horas por semana diante dos eletrônicos – ele encontrou, naqueles fantásticos universos animados, um refúgio.

O apreço culminou na formação realizada tempos depois, em Jogos Digitais – curso técnico de uma faculdade privada de Fortaleza. Mas se materializou, de verdade, há apenas três anos, quando o estudante cearense, 25, começou a desenvolver o próprio game, intitulado “Quimeras”.

Por enquanto, apenas o trailer do jogo está disponível, mas já é possível saber detalhes da concepção da empreitada, atestando o quanto o projeto é avançado. Na contramão do que geralmente acontece no mercado, Ícaro construiu, sozinho, história, cenários, personagens, animações e música, tudo por meio de uma forma de programação própria e utilizando apenas softwares gratuitos disponíveis na internet.

“Eu tenho uma formação universitária, mas todo o conhecimento que aprendi para desenvolver esse jogo veio da internet, mais precisamente do YouTube, de cursinhos que eu fazia”, conta.

Dedicando-se de 8 a 16 horas por dia em estudos e posterior trabalho no projeto, ele aprendeu a como fazer modelos 3D, desenhos, texturas, além de todo o arsenal necessário para dar vida à ideia. 

“Por incrível que pareça, para fazer um jogo você não precisa de nenhuma tecnologia que já não se consiga na internet. No meu caso, utilizei apenas softwares, não usei equipamentos externos – a exemplo de roupas de sensores ou ter que visitar um local em busca de referências. O fato de tudo ter sido feito assim talvez seja o que as pessoas mais gostem de ouvir”, percebe.

Legenda: Processo de concepção gráfica da personagem Lana
Foto: Reprodução

Desejo de sobrevivência

Em linhas gerais, “Quimeras” conta a história de dois personagens: Noah, um recruta traído por uma organização corrupta, capaz de transformar pessoas em indivíduos com habilidades sobre-humanas (as quimeras, do título); e Lana, uma criança de 12 anos que, diferentemente das outras, era a única que conseguia sobreviver a fatores naturais, característica sem precedentes em nenhum outro ser.

A história é ambientada em 2497. Nessa época, a humanidade vive em uma forte estrutura, uma espécie de arca, na zona abissal do oceano, de modo a se proteger de uma chuva de meteoros – esta com a mesma intensidade da que causou a extinção dos dinossauros, há 65 milhões de anos.

No jogo, o acontecimento já era previsto um século antes, o que otimizou a preparação de todos para o ocorrido. Contudo, quando finalmente a chuva veio, restou a pergunta: como a humanidade vai voltar para a superfície diante das escassas condições para a vida?

“Assim, surgiram várias ideias. Uma delas era de combinar DNA humano com DNA de animais para preservar essa existência. Vieram inúmeros testes e alguns seres conseguiram se transformar em animais – chamados, inclusive, de quimeras; outros, não conseguiram, o animal era que os controlava, então viravam aberrações. Esses monstros são, inclusive, inimigos no jogo”, detalha Ícaro.

Dentro desse contexto, Noah treina Lana, mostrando a ela o caminho para que se torne a quimera escolhida. Conforme o desenvolvedor, o jogo  – recomendado para maiores de 14 anos – bebe de várias fontes, desde produtos no mesmo segmento, a exemplo do game “Resident Evil”, até filmes como “Tropa de Elite” (2007) e “Logan” (2017).

Não à toa, o projeto envolve os mais diversos gêneros do universo gamer, como “Hack and Slash” (tipo de jogo que enfatiza o combate corpo-a-corpo), tiro em terceira pessoa, exploração, ação, aventura e, principalmente, resolução de enigmas envolvendo conhecimentos de Física e Química.

Legenda: Processo de concepção gráfica do personagem Noah
Foto: Reprodução

Jogo enquanto arte

Cada um desses detalhes, segundo Ícaro, vai ao encontro de dois objetivos principais da empreitada. Um deles é a necessidade de mostrar ao público e também à indústria de desenvolvimento que os jogos precisam ser encarados como arte.

“Esse é um jogo que conta uma história, algo que faz você reconhecer, ‘valeu cada segundo na construção do projeto’”, diz. “Eu sempre pressiono muito nessa tecla: jogo é arte. O mercado de games no Brasil precisa ter conhecimento dessa verdade. Não é para a gente fazer um jogo simplesmente para orçamento ou coisa parecida. Jogos, assim como um livro, um filme ou uma música, são algo que deve ser levado a sério”.

O segundo ponto de atenção diz respeito ao próprio estilo do game. De acordo com o estudante, apesar de abraçar tantas referências, a iniciativa instaura algo novo, sobretudo por incorporar, aos enigmas, teorias verídicas da ciência. Em semelhante movimento, também permite que, mesmo quem tenha pouco conhecimento em programação, se lance nesse universo criativo.

Legenda: Ícaro Soares construiu, sozinho, cenários, personagens, animações e música do jogo
Foto: Reprodução

“O software que eu utilizei para programar foi o Unreal Engine, da Epic Games. E o tipo de programação que fiz nesse jogo não foi programação em códigos (Java ou C++), mas uma exclusiva dele, chamada Blueprints, que é uma programação visual”, dimensiona. “O fato de não ter nenhuma programação codificada é incrível porque, assim, permite que você programe o que quiser sem ser programador”.

O próprio Ícaro não se enxerga nesse posto. Ao rememorar o período das aulas em Jogos Digitais, ele diz ter sido reprovado quatro vezes em Introdução à Programação justamente por não conseguir passar das lições básicas exigidas pela disciplina. “Por muito tempo, eu achava que não tinha nascido para programar – tanto, que, quando entrei para o ramo de jogos, queria ser, na verdade, animador 3D”, lembra.

“No primeiro ano do projeto, eu não sabia de absolutamente nada de programação. Ainda era dependente de pacotes comprados pelo pessoal de fora. Só que, quando eu ficava estudando, há dois anos, percebia que estava sabendo de muita coisa, mas, por ser dependente desses pacotes, não conseguia entender a lógica de programação deles. Um certo acidente no trajeto do jogo me fez perder todos os arquivos e eu tive que me reinventar”, completa.

A partir desse novo ponto de partida, Ícaro compreendeu que não se tratava de desconhecimento na lógica de programação de sua parte, mas de um ímpeto para desenvolver algo cujo controle era assumido totalmente por ele.

Teia de desafios

Tocando toda a iniciativa sozinho, o cearense sublinha que os desafios foram plurais. Dois deles se sobressaem: a dificuldade em reparar os erros, quando havia algum no processo de compilamento do jogo; e quando necessitava aprender algo novo, interagindo as funcionalidades de um software com outro de modo a dar celeridade na construção da ideia.

“Como game developer, quero encorajar as pessoas, mostrando que, apesar das limitações, é possível criar algo desse nível. Posso dizer que fui apenas alguém com uma ideia. Quando você é assim, não tem um objetivo central se não para você mesmo. Só que vários desafios me ocorreram com o passar do tempo e me fizeram criar alguns objetivos centrais. Dentre eles, pretendo que jogadores se sintam confortáveis com um jogo diferenciado desse”, enfatiza.

Legenda: Foi o Unreal Engine, da Epic Games, o software utilizado por Ícaro Soares para programar o jogo
Foto: Reprodução

Neste momento, no intuito de controlar a ansiedade para os próximos passos do projeto, Ícaro está escrevendo um livro sobre a empreitada e também desenvolvendo outro jogo, mais simples de elaborar se comparado ao primeiro – apesar de, conforme fala, ainda ser considerado um game avançado. Ele deve estar disponível ao público daqui a aproximadamente quatro meses, e herda o estilo dos famosos jogos da Nintendo.

Por sua vez, a previsão para que o “Quimeras” chegue ao público depende muito da formação de uma equipe, algo que Ícaro deseja muito. Acompanhado de pessoas que entrem em sintonia com o projeto, ele poderá otimizar os outros pormenores da ação – dentre eles, a correção de bugs, como são conhecidas as falhas no código de um programa, capazes provocar mau funcionamento; e a inclusão de vozes aos personagens.

“Esse jogo é um trunfo no Brasil. Ele consegue provar, sim, que uma pessoa sozinha pode criar um game que é uma verdadeira arte, e aprendendo apenas pela internet. Espero que isso inspire os gamers e mostre a todos que brasileiros também têm o seu caminho na concepção de grandes jogos”, conclui.

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