Maus-tratos e abusos sexuais: o cárcere privado de mulheres em uma clínica no Interior do Ceará
"Passava a mão no meu corpo, segurava minha perna, tocava nas partes íntimas por cima das roupas". Vítimas relatam o que vivenciaram no abrigo até o dia 12 de agosto de 2021, quando o diretor da unidade foi preso após denúncia
Mãe de quatro filhos, e hoje viúva. Elizângela (nome fictício), casou jovem. Era um relacionamento próspero, até a última gravidez. Daí veio uma sequência de tortura psicológica dentro de casa com a acusação de que o último filho era de outro homem. A pressão era tamanha sob a mulher que, em 2017, ela teve diagnóstico de esquizofrenia. Foi levada pela irmã a uma clínica de reabilitação no Crato, interior do Ceará.
Um ambiente iluminado e amplo. Ali seria um recomeço para Elizângela, que em breve estaria pronta para rever as crianças. Mas não. Na clínica, novas sessões de tortura psicológica. A cada alta para casa e novo processo de internação parecia que as coisas pioravam. Calada, introspectiva, a mulher demonstrava aos poucos que algo diferente se passava ali. Foram quatro internações até ela conseguir entregar um bilhete dizendo: "eu estou sofrendo abuso sexual".
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A frase revelada no pedaço de papel culminou em uma investigação da Polícia Civil do Ceará. No dia 12 de agosto de 2021, Fábio Luna dos Santos, diretor da clínica, foi preso. A captura resultado de uma ida dos investigadores ao local constatou que ela e outras 33 mulheres estavam aprisionadas em celas, sem condições sanitárias e com traços de maus-tratos.
Por trás das paredes daquela clínica, dentre as grades que mais pareciam uma prisão, as vítimas contam em detalhes abusos sexuais e a rotina de sofrimento vivida. A reportagem conversou com duas delas e parentes, sob condição de não terem suas identidades reveladas. Nos autos com pedidos de indenização por danos morais acompanhados pelo Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Ceará, mais histórias corroboram que aquele ambiente era cercado por violência física e psicológica.
"SÓ PAROU QUANDO OUVIU O PORTÃO BATENDO"
Os atos de violência eram constantes e começaram ainda em 2017, segundo Elizângela. Logo na primeira internação, em um dia que ela colhia frutas, Fábio se aproximou e propôs que fizessem sexo oral um no outro. Então saiu dali rindo. Como quem tivesse feito uma piada. Episódios como este se repetiram com mais gravidade com o passar dos meses. A cada ida de Elizângela ao Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) acompanhada pelo diretor da clínica, um novo crime sexual.
"Passava a mão no meu corpo, segurava minha perna, tocava nas partes íntimas por cima das roupas. Aí veio um fim de ano, de 2018 para 2019. As outras mulheres dormiram e ele veio para a minha cama. Tocou nos meus seios e só parou quando ouviu o portão batendo. Fiquei com medo, era um terror paralisante, porque eu sabia que todas as outras mulheres da clínica estavam dormindo dopadas com medicação", contou.
Toda vez que ele passava a mão em mim eu dizia: para, não quero. Mas ele ficava dizendo por aí que eu consentia. Pessoas como ele entram na nossa vida para fazer o mal, mas Deus é mais forte e eu me mantenho de pé"
A irmã de Elizângela destaca que Fábio chegou a dizer que ela não poderia interromper a internação, porque Elizângela estava em crise delirando e com reações agressivas. Mas a família optou por acreditar no bilhete e relatar o caso à Delegacia da Mulher e a um médico psiquiatra.
OBSERVADA PELAS CÂMERAS
Os relatos de demais mulheres mantidas em cárcere na clínica no Crato indicam que diversas delas eram vítimas de crimes sexuais. Outra resgatada fala que quando lavava os pratos, Fábio chegava por trás, a agarrava e roçava a genitália em suas nádegas: "Ele dizia que eu era a mais bonita da casa e queria pegar nos meus peitos".
Andreza (nome fictício) recorda da vez que ela dormia e foi acordada pelo diretor a chamando para descarregar as compras da feira. Quando ela foi até o carro, ele a agarrou dizendo: "você está muito boa", conforme depoimento da vítima aos investigadores.
Eu acredito que era observada nua pelas câmeras espalhadas na clínica. Lembro ainda de uma vez que o senhor Fábio mandou que eu me despisse na frente de todas as outras mulheres e com uma mangueira me deu um banho de água fria"
Consta nos autos que as vítimas chegaram a ser levadas a igrejas da cidade na tentativa de vincular o que Fábio fazia a um discurso religioso de proteção, como forma de manutenção da dominação das vítimas. Quando familiares questionavam se havia algo de errado acontecendo, a desculpa era que não se tratava de um problema de saúde, mas sim algo espiritual.
"Os relatos são uníssonos no sentido da precariedade do atendimento em saúde. Algumas nunca foram atendidas por psiquiatra dentro do estabelecimento, outras dizem que foram atendidas poucas vezes. Não havia atendimento psicológico ou psiquiátrico regular. Relatam que o Sr. Fábio dizia que o atendimento psicológico quem fazia era ele mesmo. O estabelecimento utilizava-se dos equipamentos do município, e muitas vezes, apenas quando era solicitado pelas vítimas. Nos deslocamentos para o CAPS, o Sr. Fábio aproveitava-se para praticar atos de abuso sexual, ameças e chantagem contra as vítimas. Outra situação relatada era que as altas das pacientes eram dadas pelo Sr. Fábio, que ao que tudo indica, não tinha habilitação técnica para tanto", de acordo com trecho do processo.
Há relatos das vítimas contando que já foram mordidas por cachorros, que eram utilizados para evitar que elas saíssem do estabelecimento.
INVESTIGAÇÃO
A delegada Kamila Brito, titular da Delegacia de Defesa da Mulher de Crato (DDM), recorda a importância do bilhete da vítima para que a Polícia tivesse conhecimento do que se passava no local. Kamila conta que a investigação deste caso ainda indicou uma série de outros maus tratos.
"Aquelas mulheres viviam trancadas. Faziam as necessidades fisiológicas em baldes. As condições eram sub humanas, ainda mais para pessoas com deficiência mental. Elas tinham até mesmo o cabelo cortado contra vontade própria. São relatos absurdos e tristes", disse a delegada.
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Também conforme a policial, em depoimento, Fábio Luna dos Santos disse aos investigadores que trancafiar as pacientes era normal, e que ele fazia aquilo para segurança das mulheres, para que elas não cometessem suicídio. Já sobre os crimes sexuais, Fábio negou à Polícia ser autor dos atos.
Ele teria dito aos policiais civis que as internadas tinham a libido alta e que ele era assediado todos os dias, porque "acreditavam serem casadas com ele". A Polícia Civil indiciou o homem por abuso sexual, maus-tratos, apropriação indevida de benefícios e cárcere privado, ainda no mês de agosto.
Dias depois do inquérito finalizado, o Ministério Público do Ceará (MPCE) ofertou denúncia, segundo a delegada. A mãe dele, que também atuava na clínica, também chegou a ser indiciada por maus-tratos, mas segue em liberdade.
A Defensoria Pública permanece acompanhando o caso por meio do Nudem, prestando assistência jurídica e com apoio do setor psicossocial às vítimas. A clínica, que tinha alvará de funcionamento em dia, não voltou a operar desde o dia do flagrante. A defesa do réu não foi localizada.