Justiça condena PMs acusados de tortura e omissão contra adolescente durante ação em Fortaleza
Conforme a sentença, um dos agentes de segurança participou da tortura e outros dois foram omissos durante uma abordagem policial violenta em 2018, no bairro Bela Vista
Mais de cinco anos após o crime, três policiais militares (PMs) foram condenados no último dia 16 de fevereiro por tortura e omissão diante da abordagem de um adolescente ocorrida em 2018 no bairro Bela Vista. Na época, o jovem foi agredido, teve um pano colocado no rosto e foi sufocado com água, o que dificultou sua respiração, e o fato foi filmado por um morador, em imagens que circularam as redes sociais e chamaram atenção pela violência.
Jean Claude Rosa dos Santos foi condenado a três anos e quatro meses de reclusão por tortura. Já Carlos Henrique dos Santos Uchoa e José Alexandre Sousa da Costa foram sentenciados a um ano e dois meses de detenção por omissão perante à tortura.
A sentença, assinada pelo juiz de Direito Roberto Soares Bulcão Coutinho, da Vara da Auditoria Militar do Estado do Ceará, foi publicada no Diário da Justiça dessa quinta-feira (7). Todos cumprirão suas penas em regime inicial aberto.
Para Jean Claude, foi definida a perda de cargo, mas ele já se encontra fora dos quadros da Polícia Militar do Ceará (PMCE) desde 2022. A Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD) demitiu o cabo por unanimidade devido aos fatos ocorridos no dia da tortura, que o fizeram "incapacitado de permanecer na situação ativa da Polícia Militar do Ceará".
Segundo a denúncia do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) feita em 2019, ele foi o agente de segurança que atuou jogando água no rosto do adolescente, no intuito de torturá-lo para que ele "se afogasse" e desse informações
No caso do 2º sargento José Alexandre da Costa e do cabo Carlos Henrique dos Santos não foi recomendada a perda dos cargos, "diante da própria natureza omissiva do delito e do fato de ter um oficial como corréu e responsável".
À época da decisão da CGD sobre Claude, foi informado que os outros dois militares só receberam sanção de permanência disciplinar, pois "participaram passivamente das agressões, porque ficaram inertes diante do ato".
Um quarto PM, o tenente Leonardo Jader Gonçalves Lírio, também participou da tortura e foi denunciado pelo MP Estadual, mas a Justiça declarou "extinta a punibilidade" dele, pois ele morreu em 2023, vítima de disparos de arma de fogo durante sua folga.
O Diário do Nordeste solicitou à CGD um posicionamento sobre como fica a situação dos PMs Carlos Henrique e José Alexandre, mas não recebeu resposta até a publicação desta matéria.
Tortura com 'saco d'água'
Os atos de tortura se deram no dia 28 de agosto de 2018, quando uma composição policial foi a um terreno na Bela Vista por conta de uma denúncia de tráfico de drogas e armas escondidas. Durante abordagens, eles acharam 500 gramas de crack e prenderam seis pessoas, mas no decorrer torturaram um adolescente que supostamente teria mais informações.
Segundo a vítima contou em depoimento contido na denúncia, ele estava no local de uma das abordagens, pois "cuidava de uns galos no terreno". Ele foi pressionado a dizer de quem eras as drogas, mas não sabia e foi agredido e torturado com uma técnica conhecida como "saco d'água".
Com um pano no rosto, o jovem foi atingido por jatos de água contida em um vasilhame que seria dos policiais. No local, havia vários policiais e ainda cães farejadores. Para o MPCE, o adolescente não representou risco e nem resistência, devido ao contingente de agentes de segurança presentes.
Na peça acusatória, é descrito que a ação violenta só teria parado após um carro de reportagem chegar ao local. O depoimento da mãe da vítima dá conta que "quando liberaram ele, estava todo molhado, nariz sangrando, os olhos todo roxo, o rosto todo deformado". Laudo do exame de corpo de delito registrou pelo menos 10 lesões no adolescente.
Ainda segundo a mãe, o garoto teria dito: "Mãe, pediram para eu me molhar e quem perguntasse o que foi isso no meu rosto, era pra dizer que foi uma queda, mas não foi queda não, mãe, foi eles". A mulher foi quem levou o garoto ao hospital depois das agressões.
Na condenação dos PMs, o juiz, inclusive, pontuou que "por tudo que dos autos consta, resta suficientemente demonstrado que os denunciados, na qualidade de agentes públicos, causaram sofrimento físico e mental na vítima, ao constrangê-lo com emprego de violência e grave ameaça, a fim de obter informação".
Importante ainda destacar, que a vítima prestou um depoimento coerente, em conformidade com o todos os elementos probatórios produzidos tanto em sede de investigação, quanto durante a instrução processual, depoimento este que apenas confirmou o que é possível visualizar no arquivo de vídeo acostado aos autos. Nesse sentido, a palavra da vítima, em conjunto com as demais provas constantes no processo, é suficiente para demonstrar a prática do delito de tortura por parte dos denunciados, tanto na forma comissiva, quanto na forma omissiva.
Veja também
O que dizem as defesas
Em nota ao Diário do Nordeste, a Associação de Praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (Aspramece), que representa o condenado Carlos Henrique dos Santos Uchoa informou que "fará recursos cabíveis", pois entende que as provas contra o policial "não são suficientes para embasar a condenação".
"Nosso corpo de advogados vai continuar se debruçando sobre o caso em questão, trabalhando para provar a inocência de nosso associado", diz nota.
A reportagem não conseguiu contato com as defesas de Jean Claude e José Alexandre, mas teve acesso ao documento das alegações finais. O advogado deles pediu pela absolvição, e negou prática de tortura.
Conforme a alegação, Jean Claude só agiu para intervir pela maneira com que o tenente Leonardo Lírio agrediu o jovem. A defesa sustenta que o cabo Claude só jogou água no adolescente a mando do tenente e com o intuito de "estancar sangramento e limpar a região facial ferida".
A tese indica ainda que a sequência violenta só começou após o adolescente ameaçar o tenente Lírio e afirmaram que recolheria R$ 50 mil por sua "cabeça". Isso significa que integrantes da facção criminosa do bairro teriam mandado matar o policial.
Sobre José Alexandre, a defesa aponta que durante essas ações o PM estava no local, mas em ligação com sua esposa, "pois tratava de um procedimento cirúrgico que sua sogra precisaria se submeter".
"A gravidade e delicadeza da ligação lhe fizeram se desligar completamente do que acontecia em sua volta, pois o ambiente já estava sob controle dos policiais há algum tempo e não percebeu a ação que ocorria próximo à sua localização no terreno", diz trecho das alegações finais