Aliança, jogo do bicho e punição: como sobrevive e quais as fontes de renda da facção GDE no Ceará
A facção cearense se aliou ao grupo carioca Terceiro Comando Puro, após intensificação dos ataques do Comando Vermelho. Um delator da GDE, que acabou assassinado em agosto deste ano, revelou detalhes do funcionamento da organização criminosa no Estado
Sufocada pela facção carioca Comando Vermelho (CV) em Fortaleza, em ataques intensificados em setembro deste ano, a organização criminosa cearense Guardiões do Estado (GDE) se aliou ao Terceiro Comando Puro (TCP), de origem carioca, e conta com fontes de renda diversas do tráfico de drogas para sobreviver.
Uma fonte da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), que preferiu não se identificar, afirmou à reportagem que "a GDE não acabou. Está acontecendo uma espécie de associação". "Imagina uma organização que passa por uma crise financeira e precisa de aporte de outra (organização), para seguir no mercado", comparou.
A facção Guardiões do Estado perdeu territórios importantes para o tráfico de drogas, na disputa com o Comando Vermelho em Fortaleza, como o bairro Vicente Pinzón e a região do Lagamar. E precisou do apoio de criminosos de outro estado, para não ser extinta. "Esse aporte vem em forma de apoio com armas e estímulo ao tráfico de drogas. É o que vem sendo oferecido pelo TCP", aponta.
Segundo a fonte, o Terceiro Comando Puro "quer se expandir frente ao seu maior rival, o Comando Vermelho". Os dois grupos travam uma disputa antiga no Rio de Janeiro. "O TCP se vale da capilaridade que a GDE tem no Ceará e promete o que a GDE precisa neste momento: sobrevivência", completa.
Dezenas de membros da GDE "rasgaram a camisa" da facção, em Fortaleza, no último mês. Alguns aderiram ao Comando Vermelho, na "guerra" entre as duas facções, com medo de terem o território tomado e de serem mortos. Outros ingressaram no TCP, como alternativa de sobrevivência ao ataque do CV.
A fonte afirma que esse convite para mudar de facção "nem sempre é tão amistoso. Em alguns locais, acontece uma adesão mesmo, mas em outros tem uma espécie de coerção, principalmente, com as áreas cujas lideranças estão presas e sendo 'convidadas' a mudar de lado nas alas carcerárias".
Porém, nas próximas semanas, irá chegar um momento que "requer mais atenção das autoridades: a manutenção da territorialidade". "É a hora em que os 'acordos' são postos à prova", alerta o investigador.
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Fontes de renda da facção
Antônio Euden da Silva Lucas foi assassinado a tiros, ao sair de uma clínica médica no bairro Sapiranga, em Fortaleza, no dia 27 de agosto deste ano. Três meses antes do crime, sob a identificação sigilosa de 'Testemunha X', ele revelou à Polícia Civil do Ceará (PCCE) detalhes do funcionamento da facção Guardiões do Estado.
seria o rendimento mensal da GDE no Ceará, segundo Antônio Euden, que afirmou ter integrado o Conselho Final da organização criminosa. Ele havia "rasgado a camisa" da facção e tinha sido decretado de morte, quando procurou o 2º Distrito Policial (2º DP).
Conforme o depoimento, a exploração do jogo do bicho virou a principal fonte de renda da facção cearense - acima do tráfico de drogas. O faturamento mensal variava de R$ 150 mil a R$ 200 mil, mas podia chegar até a R$ 300 mil.
"Os donos de bancas que operam em áreas controladas pela facção realizam pagamentos mensais para permissão de funcionamento. Os valores variam conforme o número de bancas, podendo alcançar até R$ 300 mil mensais por banca. Controle rigoroso e hoje é uma das principais fontes de receita da organização", descreveu a Polícia Civil, em um relatório.
Confira as outras fontes de renda da facção:
- Geral da Caixinha: "Responsável por conduzir e cobrar os membros que estão com atraso superior a três meses no pagamento da contribuição mensal obrigatória ('caixinha'), cujo valor inicial base é de R$ 50, podendo variar de acordo com a localização. O total em aberto pode chegar a até R$ 40 mil por mês. Hoje a GDE conta com mais de 2.000 contribuintes da 'caixinha'";
- Geral da Biqueira: "Responsável por arrecadar mensalmente os valores dos 'frentes' dos bairros (responsáveis pela venda de entorpecentes). Cada 'frente' paga de R$ 250 (áreas pequenas) a R$ 500 (áreas grandes), totalizando uma média mensal entre R$ 70 mil e R$ 80 mil. A supervisão fica a cargo do frente de área";
- Punição: "Aplica multas a membros por condutas consideradas indisciplinadas, com valores entre R$ 300 e R$ 1.500, com prazo para quitação. Em casos graves, incluem-se exigências como entrega de veículos roubados e transporte para ações violentas ('guerras') e solicitação por arma de fogo para quitar dívida. Em casos extremos é decretada a punição severa, a morte";
- Caixinha: "Pagamento obrigatório de R$ 50 por membro. A arrecadação total mensal pode variar entre R$ 120 mil e R$ 125 mil";
- Cota: "A cúpula disponibiliza entorpecentes para os 'frentes de área' mediante crédito (fiado), com cobrança semanal e valor acrescido. Os pagamentos são remetidos à cúpula nas segundas ou terças-feiras, sob controle do chamado CSL Final(Conselho Final)";
- Rifa: a organização criminosa também realiza sorteios internos, com prêmios de R$ 5 mil ou produtos desse valor e bilhetes de R$ 100 (com numeração de 0 ao 99). O faturamento podia chegar a R$ 10 mil.
A hierarquia da facção
O depoimento de Antônio Euden da Silva Lucas também revelou à Polícia como se estabelecia a hierarquia da facção Guardiões do Estado e quais as principais lideranças.
Segundo a testemunha, Yago Stefferson Alves dos Santos, o 'Yago Gordão' ou 'Supremo' virou o líder máximo da GDE - que antes era gerida por um Conselho Final, formado por ao menos seis membros, que tinham anéis templários como distinção.
Antônio Euden afirmou que "hoje, o Yago concentra todas as funções da GDE, tais como morte, droga e o recebimento de dinheiro" e que Yago fala que "os membros não são pela facção, mas por ele". Para isso, o 'Supremo' teria colocado pessoas de sua confiança nas funções mais elevadas e na liderança das principais regiões dominadas pela organização criminosa.
'Yago Gordão' é considerado foragido da justiça. Ele tem um mandado de prisão em aberto por sentença condenatória, com uma pena total de 22 anos e 3 meses de reclusão para ser cumprida, pelos crimes de integrar organização criminosa, tráfico de drogas, associação para o tráfico e posse irregular de arma de fogo de uso permitido.
Em maio deste ano, Euden já previa uma união entre GDE e TCP. Segundo o depoimento do delator, "os caras da GDE na Barra do Ceará vai rasgar a camisa e tudo vai virar TCP, que está vindo fuzil e armas para tal empreitada (sic)".
A aliança não seria tão bem vista pelo 'Supremo', naquela época. "O Yago está reestruturando a GDE para evitar perder área para o TCP. O Yago teme perder a GDE para o TCP", antecipou a testemunha.
O delator também detalhou a hierarquia do Tribunal do Crime e dos Quadros Secundários e de Suporte da facção Guardiões do Estado, que definem medidas de disciplina, conduta e organização do grupo criminoso.
Confira os principais setores:
- Esclarecimento: "destinado à mediação de conflitos de menor gravidade, tais quais atrasos de pagamentos, discussões interpessoais, etc. Atua como suporte ao GDL (Geral da Liberdade), em caso de sobrecarga deste";
- Geral da Liberdade (GDL): "responsável por conduzir situações de média gravidade e garantir o controle da disciplina nos bairros. Atua em regime de plantão contínuo";
- CSL Final (Conselho Final): "Instância superior, abaixo somente da cúpula. Decide sobre execuções e ações críticas, além de controlar 80% (oitenta por cento) dos recursos da facção, tais quais armas, drogas, dinheiro e logística";
- CSL Geral (2° CSL): "responsável pela análise de situações graves, com necessidade de autorização do CSL Final (Conselho Final) para execução de medidas extremas. Também atua como gestor do sistema financeiro da Organização";
- Legionário (3° CSL): "composto por quatro membros responsáveis pelo setor financeiro e oito com atribuições diversas. Também atua na triagem de casos graves para o CSL Geral (Conselho Geral), como por exemplo, assassinatos entre os membros";
- Divulgação: "responsável pela veiculação de comunicados internos nos grupos da facção, como salves, decretos, informações de ampliação de área de atuação, etc";
- Fiscalização: "avalia produtos e preços antes da divulgação em grupos internos, garantindo a padronização das postagens. Produção de bens roubados ou furtados (armas, veículos, etc.)";
- CAB (Cadastro, Análise e Batismo): "responsável pelo registro e avaliação de novos membros, com análise prévia de elegibilidade. Envio de fotos e informações, além de 3 referências internas (chamados padrinhos)";
- STF (Setor de Fiscalização de Território): "fiscaliza o cumprimento das obrigações dos membros em cada área, cobra a 'caixinha' e monitora as situações ocorridas no território";
- STG (Supervisão dos STF): "coordena os STFs, atualiza as listas de pagamento da caixinha e supervisiona os mapas por bairro, bem como sua ampliação".
Lavagem de dinheiro da facção
A investigação da Polícia Civil contra a organização criminosa delatada por Antônio Euden da Silva Lucas resultou na denúncia do Ministério Público do Ceará (MPCE) contra 24 acusados, no último dia 5 de setembro.
O objetivo da Polícia foi "rastrear" o caminho do dinheiro da GDE. Os investigadores se depararam com mais um caso em que a organização criminosa se utiliza de "laranjas" para ocultar o recebimento de dinheiro.
teria sido recebido pelo acusado Kaique de Oliveira Silva, entre outubro de 2024 e abril de 2025 (um intervalo de cerca de 6 meses). O valor quase inteiro teria sido enviado por ele para outras contas, segundo a denúncia do MPCE.
Já o investigado Erick André de Oliveira, apontado como uma liderança da facção no bairro Aracapé, na Capital, teria movimentado R$ 561 mil, somente entre o dia 1º de março e 26 de abril de 2025.
23 investigados foram denunciados pelo MPCE pelos crimes de integrar organização criminosa e lavagem de dinheiro. Já Pedro Lucas de Sá Morais foi acusado apenas por lavagem de dinheiro.
Confira a lista de acusados:
- Alan Borges Figueiredo;
- Ana Carla Souza da Silva;
- Anderson dos Santos Pimentel;
- Edilson Guilherme Arruda de Oliveira;
- Elane Soares de Sousa;
- Erick André de Oliveira;
- Everton Muniz de Carvalho;
- Francisco Gervaldo Oliveira Celestino;
- Francisco Saraiva Neto;
- Harisson Sampaio do Nascimento Silva;
- Jefferson Henrique do Nascimento Silva;
- José Honório Diógenes;
- Kaique de Oliveira Silva;
- Kaylane Pinheiro Sales;
- Leomax Xavier da Costa;
- Leonardo Oliveira da Silva;
- Micael da Conceição Brito;
- Miquelvis Breno Lopes da Silva;
- Paulo Henrique Martins dos Santos;
- Pedro Barbosa da Silva Neto;
- Pedro Lucas de Sá Morais;
- Sarah Ingrid Sampaio do Nascimento;
- Stefany Sampaio do Nascimento;
- Suyanne Alves Rodrigues.
O MPCE pediu pela prisão preventiva de apenas oito acusados: Erick de Oliveira, Everton de Carvalho, Harrison do Nascimento, Leomax da Costa, Micael Brito, Miquelvis da Silva, Paulo Henrique dos Santos e Sarah Ingrid do Nascimento. O pedido foi acatado pela Vara de Delitos de Organizações Criminosas, da Justiça Estadual.
No último dia 29 de setembro, a Vara concedeu a prisão domiciliar a Sarah Ingrid, em razão dela ser mãe de uma criança menor de idade. A acusada deve ser monitorada por tornozeleira eletrônica, está proibida de usar aparelho celular ou fixo e pode sair de casa apenas mediante autorização judicial ou em caso de urgência ou emergência médica.
Quanto aos outros 16 investigados, a Justiça decidiu aplicar medidas cautelares, como tornozeleira eletrônica, recolhimento domiciliar noturno, proibição de se ausentar da cidade por mais de oito dias e probição de manter contato com acusados de tráfico de droga ou pessoas que portem armas de fogo.
As defesas dos investigados não foram localizadas para comentar a investigação e a denúncia do Ministério Público. O espaço segue aberto para futuras manifestações.