Legislativo Judiciário Executivo

'Verdadeira enganação', diz secretário de Habitação de Fortaleza sobre 'papel da casa' entregue por Sarto

O ex-prefeito José Sarto e o ex-secretário de Habitação negam qualquer irregularidade na entrega

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
Homem de terno cinza e gravata vermelha com óculos fala durante reunião, gesticulando com a mão.
Legenda: Secretário de Habitação de Fortaleza na gestão Evandro Leitão (PT), Jonas Dezidoro critica atos da gestão anterior, do ex-prefeito José Sarto
Foto: Divulgação/Prefeitura de Fortaleza

A entrega do "papel da casa" em nove comunidades de Fortaleza pela gestão do ex-prefeito José Sarto (PDT), entre os meses de agosto e setembro de 2024, motivou a abertura de dez procedimentos no Ministério Público do Ceará (MPCE) para apurar "se o processo ocorreu de forma regular" e garantir "transparência, legalidade e títulos juridicamente válidos e registrados". 

Dentro do processo aberto pelo MPCE, a atual gestão da Prefeitura de Fortaleza, a partir da Secretaria Municipal de Habitação, informou que a entrega não cumpriu a legislação sobre regularização fundiária.  Ao PontoPoder, o atual secretário de Habitação de Fortaleza, Jonas Dezidoro é ainda mais crítico. "Foi um documento completamente descabido, (...) uma verdadeira enganação", resume. "É lamentar, porque é um processo tão sério, que leva tanta segurança jurídica, que a gente lamenta muito esse tipo de postura".

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Por sua vez, o ex-prefeito José Sarto e o ex-secretário de Habitação Carlos Kleber negam qualquer irregularidade e reforçam que o documento entregue às comunidades segue o que é descrito nas leis que tratam de regularização fundiária. 

O caso envolve ainda vereadores de Fortaleza, que têm criticado os documentos entregues como "papel da casa" pela gestão passada. Adriana Geronimo (Psol) é uma das autoras da denúncia feita ao Ministério Público, enquanto o vereador Marcos Paulo (PP) tem levado o assunto para a tribuna da Câmara Municipal, já que atua em uma das comunidades afetadas, o Conjunto Palmeiras II. 

Nos meses de agosto e setembro, o ex-secretário de Habitação de Fortaleza Carlos Kleber fez entregas de "títulos de legitimação fundiária", que foram divulgados como "papel da casa". O ex-prefeito José Sarto não participou dos atos de entrega, realizados durante o período eleitoral. 

Contudo, o título de legitimação fundiária não equivale ao 'papel da casa'. "A matrícula (do imóvel) é que tem um apelido carinhoso de 'papel da casa'", explica o presidente da Comissão de Acompanhamento de Regularização Fundiária, Urbana, Rural e Conflitos Fundiários da OAB-CE, Edwin Bastos Damasceno. 

A matrícula é expedida apenas após a emissão da Certidão de Regularização Fundiária (CRF) e do registro dela em cartório. Para chegar a esse ponto, o "núcleo urbano informal", segundo define a legislação, precisa passar por todo o processo de regularização fundiária. 

No entanto, os títulos foram emitidos sem a finalização desse processo — em alguns casos, a regularização ainda estava nos estágios iniciais, conforme documentos apensados aos autos do procedimento no Ministério Público. 

O que diz a gestão Sarto?

Ao PontoPoder, Carlos Kleber admite que "os títulos não conferem a outorga do direito real de propriedade, mas sim o reconhecimento dos requisitos para que, no momento do registro, seja conferido". Ele afirma, no entanto, que os documentos são válidos, por serem parte do processo de regularização e serem de competência do Executivo municipal. 

"Daí, portanto, a validade dos títulos entregues que, além de reconhecer o cumprimento dos requisitos legais, tinham a função de proteger as famílias de turbação de suas posses por parte das organizações criminosas, fazendo um congelamento dos dados coletados pela equipe técnica de campo e dando ampla publicidade, de forma a impedir comercialização indevida e, em última análise, atos criminosos contra as famílias beneficiárias de serem expulsas de suas residências".
Carlos Kleber
Ex-secretário de Habitação de Fortaleza

"Infelizmente muitas pessoas desconhecem o procedimento complexo da Reurb e acreditam que o simples fato de ser 'dispensável' a apresentação do Título no momento do registro em Cartório ele não existe, o que é um absurdo", completa. 

O ex-secretário informou ainda que "o Ministério Público, em nenhum momento, afirma que existem irregularidades" e disse ainda não ter sido intimado a se manifestar no procedimento, "persistindo a construção de uma narrativa por parte de quem fez a denúncia e que certamente não prosperará, pois acredito na seriedade e na competência do Ministério Público".  

Em despacho datado de julho deste ano, no entanto, o promotor de Justiça Marcelo Yuri Moreira Martins, da 2ª Promotoria de Justiça de Conflitos Fundiários e Defesa da Habitação, fala sobre a emissão "de forma irregular" dos títulos.

"A documentação constante dos autos evidencia que a emissão dos referidos títulos se deu de forma irregular em diversas comunidades, com diferentes estágios de andamento do procedimento do REURB".
Marcelo Yuri Moreira Martins
Promotor de Justiça da 2ª Promotoria de Justiça de Conflitos Fundiários e Defesa da Habitação

Por meio da assessoria de imprensa, Sarto confirma que as entregas foram de títulos de legitimação fundiária, e acrescenta: 

"A expedição do documento é legal e embasada na Lei Federal Nº 13.465 de 2017, no decreto federal nº 9.310 de 2018 e na Lei Municipal LC 334, de 2022. Esse documento é legítimo e é fruto de um trabalho longo e sério da gestão Sarto, prefeito responsável pelo maior programa de regularização fundiária da história de Fortaleza, o Reurb".
José Sarto
Ex-prefeito de Fortaleza

A reportagem reforçou o questionamento quanto ao motivo dos títulos de legitimação fundiária terem sido chamados de "papel da casa". Contudo, a assessoria do ex-prefeito informou que a nota enviada era "o posicionamento oficial do Sarto" e não respondeu a dúvida colocada. 

O caminho da investigação

Estão em andamento, no Ministério Público do Ceará, dez procedimentos administrativos para apurar "se o processo ocorreu de forma regular" e "assegurar transparência, legalidade e títulos juridicamente válidos e registrados às famílias".

O primeiro deles foi aberto ainda em 2024, após o recebimento de denúncia anônima sobre a entrega dos títulos na comunidade Dom Lustosa. Pouco depois, a vereadora de Fortaleza, Adriana Geronimo, também entrou com representação no Ministério Público. 

"A gente recebeu, ainda no ano passado, em meados de setembro, de uma pessoa anônima, que recebeu o papel e achou estranho porque tinha visto um título de regularização fundiária e achou o papel diferente. E aí, enviou para a Comissão de Direitos Humanos", lembra Geronimo.

Ela, que presidia a comissão, recebeu a denúncia e viu que o "papel da casa" tinha apenas "a assinatura do secretário de Habitação", sem nenhuma legalidade. Em publicação nas redes sociais, ela fala que quando denunciou o caso, ainda em 2024, foi "acusada de estar espalhando fake news". "A antiga gestão brincou com um dos maiores sonhos do nosso povo, que é ter o documento que garante o direito ao lar, na tentativa desesperada de se reeleger, transformando esse sonho em pesadelo, enganando milhares de famílias", disse.

Apesar da denúncia inicial tratar apenas da comunidade Dom Lustosa, o escopo acabou sendo ampliado para outras oito comunidades: Conjunto Palmeiras II, Planalto Vitória, Aracapé, Santa Edwirges, Jardim América, Cidade de Deus, Novo Jardim Castelão e Francisco Ivo. 

Para apurar a entrega em cada uma delas, o Ministério Público abriu oito procedimentos administrativos, em julho deste ano. Também foi instaurado procedimento na esfera eleitoral, já que as entregas dos títulos foram realizadas durante a campanha eleitoral de 2024, quando Sarto era candidato à reeleição para a Prefeitura de Fortaleza. 

Prioridade para as comunidades

Ao PontoPoder, Jonas Dezidoro explica que a atual gestão fez uma "força-tarefa" para entender quantos títulos foram entregues e em quais comunidades de Fortaleza. Além das solicitações de informações feitas pelo Ministério Público, o secretário afirma que a Habitafor foi procurada por pessoas que receberam o título de legitimação fundiária. 

"Na cabeça delas, elas tinham recebido o papel da casa. Estavam indo no banco, no cartório e o banco e o cartório e outras entidades começaram a dizer que não era matrícula", disse. "Foi quando isso nos alertou e a gente começou a averiguar e percebeu o que lamentavelmente foi feito pela antiga gestão". 

Ele explica que as comunidades afetadas pelo problema foram colocadas como prioridade para o recebimento do "verdadeiro papel da casa", mas que não há como "precisar o tempo" que o processo de regularização fundiária das comunidades irá levar. 

"Esse programa do Papel da Casa é uma das nossas prioridades e a gente quer de novo dar credibilidade a ele, porque é levar segurança jurídica para as famílias. E a sabe que isso é dignidade, é levar esperança para as famílias. Então, a gente tem priorizado muito isso", garante.

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