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Qual o lugar do Brasil na guerra entre Rússia e Ucrânia e por que isso tem gerado tensão diplomática

Governo brasileiro tem tentado manter neutralidade para ter lugar como ‘mediador da paz’, mas declarações acabaram gerando desgaste com Kiev e aliados

Escrito por Luana Barros , luana.barros@svm.com.br
Guerra Ucrânia e Rússia
Legenda: Guerra entre Ucrânia e Rússia começou em fevereiro de 2022, quando houve a invasão russa ao território ucraniano
Foto: AFP

O rompimento da barragem da usina hidrelétrica de Kakhovka, localizada no sul da Ucrânia, em região agora controlada pela Rússia, acabou gerando uma nova tensão na relação diplomática entre o Brasil e a Ucrânia. No mesmo dia em que ocorreu a catástrofe, a embaixada ucraniana no Brasil reclamou do silêncio do governo brasileiro e disse quer "um maior apoio nas situações críticas". 

A declaração do Itamaraty viria apenas um dia depois, no dia 7 de junho, quando, por meio de nota, foi relatada a "consternação" com a notícia do rompimento da barragem e feito pedido para "apuração de responsabilidades no episódio por entidade internacional isenta e independente". O posicionamento é distinto do adotado por Kiev, que responsabiliza a Rússia pela destruição da estrutura, no que caracterizou como "crime de guerra" e "ecocídio".

O Brasil não foi o único país a adotar um tom cauteloso neste novo incidente da guerra entre Rússia e Ucrânia — iniciada em fevereiro de 2022, após a invasão russa ao território ucraniano. Outras nações como o Reino Unido e a Índia adotaram discurso semelhante ao do Ministério de Relações Exteriores brasileiro. 

Contudo, o mais recente posicionamento da diplomacia brasileira soma-se a declarações anteriores dadas pelo presidente Lula (PT) e que desagradaram tanto a Ucrânia como nações aliadas ao país, como os Estados Unidos e a União Europeia, algo que pode continuar a aumentar a pressão para que o Brasil assuma uma posição mais contundente quanto a de qual lado está no conflito.

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Algo econômica e politicamente desinteressante para o Brasil, que possui parceiros comerciais importantes de ambos os lados e tem uma tradição diplomática de "não comprar conflito externo", lembra a professora de Direito Internacional Privado da Universidade de Fortaleza, Marina Cartaxo. 

Por isso, a tentativa de se colocar enquanto um país 'mediador' e que poderá contribuir para as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia — um cenário difícil, visto que os dois países "não querem conversar sobre paz", conforme o próprio Lula ressaltou após a reunião do G7 realizada no Japão, em maio

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Por que manter a "neutralidade" no conflito? 

O conflito entre a Rússia e a Ucrânia passou por duas gestões federais no Brasil — a de Lula e a do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — e a professora Marina Cartaxo lembra que, em nenhuma das administrações, existiu "um discurso desalinhado da Rússia".

Apesar de ter apoiado duas resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) contra as ações russas, inclusive documento, de fevereiro deste ano, no qual se condena a invasão territorial da Ucrânia e se exige a imediata retirada das tropas russas, o Brasil não aderiu, por exemplo, a sanções impostas por outros países ocidentais contra a Rússia.

Lula
Legenda: Junto ao presidente da República da Finlândia, Sauli Niinistö, Lula reforçou posição de "neutralidade" quanto a guerra
Foto: Divulgação/Ricardo Stuckert

No começo de junho, Lula voltou a reforçar que o país quer "se manter neutro" quanto ao conflito, inclusive como forma de participar de uma futura negociação pela paz. "O Brasil faz parte de um grupo de países que querem se manter neutros para construir a possibilidade do fim da guerra", disse o presidente brasileiro no último dia 1º, durante visita do presidente da Finlândia, Sauli Niinistö, a Brasília. 

Contudo, a posição de neutralidade quanto ao conflito não é exclusiva do Brasil. É o que explica o doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), Gustavo Oliveira, cuja pesquisa tem como foco a guerra entre Ucrânia e Rússia. 

"Vários países do chamado Sul Global têm adotado posição parecida com a do Brasil, de condenar as ações russas de ataque à soberania e à integridade da Ucrânia. Portanto há uma condenação nesse sentido, mas (também posição) de não aderir às visões (das potências ocidentais) sobre o conflito. (...) Ao mesmo tempo, são países que querem manter a sua relação com a Rússia". 
Gustavo Oliveira
Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP)

No caso do Brasil, essa manutenção de relações possui motivação econômica, já que ambos os países são parceiros comerciais, embora a balança de exportações seja favorável à Rússia. Enquanto, em 2021, apenas 0,6% das exportações brasileiras feitas tiveram como destino a Rússia, o país é o sexto de quem o Brasil mais compra produtos. 

Tanto nas importações como nas exportações, dominam produções ligadas ao agronegócio. Dos US$ 5,6 bi que o Brasil importou da Rússia, cerca de 60% era de fertilizantes, o que torna o nosso país quase 'dependente' da produção russa, conforme aponta Gustavo Oliveira. 

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Marina Cartaxo lembra ainda que existe uma forte parceria entre Rússia e China - embora esta última não esteja manifestando publicamente alinhamento ao governo russo na guerra contra a Ucrânia. Algo que influencia a moderação de discurso do Brasil, que tem na China a maior compradora de seus produtos, com destaque, novamente, ao agronegócio. 

Interesse geopolítico pela descentralização

E se existe o impacto das relações comerciais bilaterais, há também um pensamento sobre como a geopolítica se organiza a nível mundial, após o fortalecimento, nas últimas décadas, de uma colaboração — comercial ou não — entre nações do "sistema periférico". 

"O Governo Lula, e nesse ponto tem um lado muito positivo, conseguiu alinhar e tem um diálogo bem desenvolvido com o que a gente chama de sistema periférico, ou seja, os países que não estão dentro do circuito Estados Unidos-Europa. Um sistema de colaboração econômica que traz bons frutos para o Brasil", explica. 

Esse "estreitamento comercial" ganha ainda mais força com o surgimento do BRICS - organização de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul com foco no desenvolvimento econômico. Além disso, o Brasil passa a estabelecer parcerias comerciais com outras nações periféricas, algo que o faz ser menos dependente das chamadas potências ocidentais, com destaque para os Estados Unidos. 

BRICS
Legenda: Formada por Rússia, Brasil, China, África do Sul e Índia, o BRICS surgiu em 2009
Foto: Instituto Lula

"Para manter o Brics forte, alguns alinhamentos políticos têm que ser feitos e é exatamente esse alinhamento político que o Governo Lula está querendo fazer", pondera Cartaxo.  

A descentralização comercial e política — estabelecendo uma geopolítica onde há mais de um polo de poder, em vez de uma concentração em uma ou algumas 'potências — é mais interessante para o Brasil, inclusive como forma de "conservar autonomia estratégica", como explica Oliveira, além de uma visão geopolítica compartilhada com a Rússia. 

"No sentido de ter a Rússia como um potencial parceiro no sentido de construção de uma ordem que seja menos dependente, menos submetida aos interesses das potências globais. Creio que por isso, o Brasil não vai assumir um alinhamento mais forte (em relação a guerra entre Rússia e Ucrânia)", finaliza o pesquisador.

Tensões diplomáticas enfrentadas pelo Brasil

A neutralidade da diplomacia brasileira — ou, pelo menos, a falta de assertividade nas condenações contra a Rússia -, no entanto, tem desagradado o outro lado do conflito, que deve intensificar a pressão ao governo brasileiro. 

Apesar da Ucrânia estar no centro do conflito — e da boa relação do país com o Brasil, inclusive por ter uma comunidade ucraniana forte em solo brasileiro —, não é Kiev que possui o maior poder de pressionar o Estado brasileiro por um posicionamento contundente. 

Por outro lado, os aliados ao governo ucraniano já têm desempenhado este papel. Oliveira considera que a maior fonte de pressão quanto a isto deve ser "do lado ocidental" aliado à Ucrânia. Os países europeus, principalmente os que integram a União Europeia, já iniciaram esse movimento. 

Lula em Portugal
Legenda: Lula acabou não participando de sessão solene da Revolução dos Cravos, em Portugal, após impasse por conta das falas do brasileiro sobre a guerra; presidente esteve no parlamento português em outra ocasião
Foto: Divulgação/ Ricardo Stuckert

Marina Cartaxo cita o episódio em que partidos do parlamento português foram contrários à participação de Lula em sessão solene de comemoração da Revolução dos Cravos, realizada no final de abril. 

O motivo central foi a declaração feita pelo presidente brasileiro, no mesmo mês. Durante visita a Arábia Saudita, Lula afirmou que a decisão da guerra "foi tomada por dois países", atribuindo responsabilidade mútua a Ucrânia e Rússia sobre o conflito que se arrasta a mais de um ano. Disse ainda que tanto a Europa como os Estados Unidos "terminam dando contribuição para a continuidade dessa guerra".

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A declaração gerou reações imediatas e, na sequência, um recuo no discurso. A União Europeia, na época, afirmou que a Rússia é a "única responsável pela guerra". Ressaltou ainda que "Estados Unidos e União Europeia  trabalham juntos, como parceiros de uma ajuda internacional" como forma de ajudar a Ucrânia "em exercícios para legítima defesa". 

Joe Biden e Lula
Legenda: Joe Biden e Lula se encontraram na reunião do G7, em maio; a Casa Branca criticou declarações do presidente brasileiro sobre a guerra Ucrânia-Rússia
Foto: Divulgação/Ricardo Stuckert

A Casa Branca reagiu de forma ainda mais dura, ao dizer que "o Brasil está repetindo a propaganda da Rússia sem olhar para os fatos" e considerando a declaração de Lula "profundamente problemática" e "equivocada".

Poucos dias depois, Lula mudou o tom e reforçou a condenação "à violação territorial que a Rússia fez contra a Ucrânia". A declaração foi feita durante a visita a Espanha, logo após passar por Portugal — onde ocorreu o impasse no parlamento sobre a presença do presidente brasileiro na sessão solene, da qual, por fim, Lula não participou. 

"A pressão que o Brasil está recebendo atualmente para tentar reforçar um diálogo maior com a Ucrânia, para tentar reparar o impacto das falas que o Lula teve no começo da gestão, diz respeito à parceria que o Brasil tem com países europeus, (como) a França, a Inglaterra e Portugal".
Marina Cartaxo
Professora de Direito Internacional da Unifor

"Então, se a Rússia é um parceiro político forte que o Brasil tem, a França também é, Portugal também, os espanhóis e a Inglaterra também são. A gente precisa manter essas parcerias", ressalta. 

Ela lembra que está marcada, para o final de junho, uma visita de Lula à França, onde a guerra deve ser pauta - e a pressão europeia pode ser reforçada sobre o governo brasileiro. "Não sei até que ponto ele vai assumir (um posicionamento), mas vai ser uma pressão", considera. 

E se, por um lado, Cartaxo ressalta que o nível de tensão e a proporção deste conflito no leste europeu está crescendo "de forma tão acelerada, que vai chegar o momento que não vai dar mais para se manter distante", por outro, a diplomacia brasileira possui uma tradição de mediação de paz, com um corpo diplomático "preparado" e "respeitado" no mundo. 

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Algo que reforça a intenção do governo brasileiro de se manter neutro, até que Kiev e Moscou estejam dispostos a dialogar para um acordo de paz. Contudo, um cenário ainda distante, na avaliação de Gustavo Oliveira. 

"É muito difícil que nesse momento vejam algum sucesso nessa iniciativa. Por mais interessante que seja a questão da paz, no momento parece que as protagonistas, Rússia e Ucrânia, estão interessadas em continuar com o (uso) militar para atingir seus objetivos políticos", aponta.

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