Primeiras-damas e técnicas: o que Janja e Lia Freitas têm em comum na atuação junto aos governos
Apesar de se afastarem de perfil tradicional da primeira-dama, com uma atuação mais profissional, ambas ainda convivem com as contradições do cargo
"De manhã, de tarde e, às vezes, até a noite": assim tem sido a rotina de reuniões da primeira-dama do Ceará, Lia Freitas, desde o início da gestão do governador Elmano de Freitas (PT). À frente do Grupo de Trabalho de Combate à Fome - uma das principais promessas de campanha do governador -, ela tem feito encontros em diversas frentes para estruturar uma "política única" para garantir a segurança alimentar no Ceará.
Uma rotina mais tradicional de primeira-dama, por vezes encarada como uma figura que apenas acompanha a agenda do marido governador, está distante do dia-a-dia de Lia. "Temos também acompanhado, mas pouco", admite. A agenda conjunta costuma ser naquelas relacionadas ao combate à pobreza ou pontuais, "em que ele quer que, no futuro, a gente tenha participação", explica.
Se no Estado, a atuação da primeira-dama tem ocorrido em paralelo à agenda do chefe do Executivo, com foco em um programa específico dentro da estrutura do Governo, a nível federal, o cenário é outro. Rosângela Silva, mais conhecida como Janja, é presença frequente ao lado do marido, inclusive em agendas de Estado.
Ela esteve na primeira reunião ministerial do Governo Lula e também participou da caminhada entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal no dia seguinte dos atos terroristas que depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília, além de ter um gabinete no Palácio do Planalto.
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"Ressignificação do lugar de primeira-dama"
Se as rotinas das primeiras-damas Janja e Lia são diferentes, à primeira vista, a postura é semelhante. Professora de Serviço Social no campus de Iguatu do Instituto Federal do Ceará (IFCE) e pesquisadora focada no primeiro-damismo, Moíza Medeiros cita que ambas estão "trabalhando para a ressignificação desse lugar de primeira-dama".
Para entender a mudança nesse significado, é necessário entender como a simbologia em torno da primeira-dama foi construída. Medeiros cita como primeiro exemplo de primeira-dama ‘tradicional’ Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas - presidente do Brasil entre 1934 e 1945 e novamente entre 1951 e 1954.
Darcy Vargas fundou a Legião Brasileira de Assistência, criando uma tradição na qual as primeiras-damas passaram a atuar na assistência social, principalmente a populações vulnerabilizadas e empobrecidas - em um período em que as políticas sociais na área eram raras ou inexistentes.
"Todas as primeiras-damas se envolveram de algum modo com a questão da assistência social, mas muito com o papel caridoso, em uma perspectiva de amor, de preocupação com o povo mais empobrecido", elenca. A continuidade dessa atuação acabou tornando-se "uma marca do assistencialismo no Brasil", completa a pesquisadora.
Ela cita sucessoras de Darcy Vargas, como Sarah Kubitschek, e mesmo primeiras-damas mais recentes, como Ruth Cardoso e a própria Michelle Bolsonaro com tendo uma atuação centrada em programas solidários e de voluntariado.
"(Mas) O que a gente vem percebendo, nos últimos anos, (é que) as primeiras-damas vêm tentando mudar essa cara assistencialista do seu papel na política. (...) Vem com uma visão diferente. Não de fazer meramente assistencialismo, mas de criar uma política pública. Já vem com um debate um pouco mais crítico, uma formação mais profissionalizada".
Perfil técnico e de articulação
Lia Freitas, se posiciona exatamente neste lugar citado por Moíza Medeiros.
"Eu me vejo como uma primeira-dama extremamente técnica, extremamente de bastidor, que opina se necessário for, mas de fazer, eu sou muito de fazer. Tarefa dada é tarefa cumprida".
Ela cita, inclusive, a ex-primeira-dama Onélia Santana, que hoje comanda a Secretaria de Proteção Social do Governo do Ceará, como alguém que deixou um legado quanto esteve neste papel. "Temos tido uma trajetória diferente, talvez, de outros Estados, com mulheres mais atuantes e mais técnicas", argumenta Lia.
Lia considera a trajetória de 18 anos no serviço público, além da formação como administradora e o mestrado em Planejamento e Políticas Públicas como ferramentas para alcançar as metas que se propõe na atuação como primeira-dama. "Eu me vejo realmente com esse perfil de execução", resume.
Esse resumo é semelhante ao que Janja fez de si: "Eu sou uma pessoa que é propositiva, que não fica sentada, que vai e faz", disse na primeira entrevista após a eleição de Lula, em novembro, para a TV Globo.
A articulação com movimentos de Mulheres e da Cultura, por exemplo, tem sido apontada como uma das prioridades por Janja, que também teria sido consultado sobre algumas das escolhas feitas pelo presidente para o primeiro escalão do governo federal e mesmo em decisões da gestão, como se Lula deveria ou não decretar Garantia de Lei e Ordem (GLO) após atos terroristas em Brasília.
A influência de Janja estaria, inclusive, incomodando aliados do presidente Lula, tanto dentro do próprio governo como no Partido dos Trabalhadores. A cientista política Ananda Marques aponta que a postura de Janja vem "testando os limites" do que seria a figura da primeira-dama.
As contradições do lugar de primeira-dama
Mestra em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí e pesquisadora sobre gênero, Ananda Marques ressalta que "toda a interpretação social que temos sobre o que é uma primeira-dama e o que ela deve fazer é algo pautado na cultura".
Portanto, estes limites que estão sendo testados por Janja, por exemplo, não são institucionais, mas culturais.
"Ela está testando os limites da cultura. (...) De como a opinião pública recebe uma mulher que diz: 'olha, eu tenho posições políticas, eu tenho ideias, eu tenho uma opinião, eu tenho o direito de me manifestar politicamente, porque eu sou uma cidadã que está nessa posição aqui, mas que tem direito inerentes à condição de pessoa humana'"
Ela cita a trajetória político-partidária de Janja, que é filiada ao PT desde a década de 1980, e pondera que é necessário refletir sobre até onde as críticas feitas a ela não são uma "tentativa de impor limites aos direitos políticos de uma mulher".
Neste ponto, dois argumentos entram em confronto direto quando se discute este lugar que a primeira-dama tem na estrutura governamental - seja na esfera federal, estadual ou mesmo municipal.
De um lado, ela não foi eleita nem nomeada para o governo ou mesmo "passou por um concurso público para estar ali naquele cargo", conforme pondera Moíza Medeiros. Por outro lado, contrapõe Ananda Marques, as mulheres "ocupam a política não somente votando e sendo votadas".
Se o movimento de mulheres e a nomeação em cargos são caminhos para essa participação, a influência também se apresenta como alternativa. "Existem inúmeros homens que não ocupam cargos no governo e que opinam sobre o governo, que dão conselhos ao presidente e não têm nenhum jornal chamando isso de intromissão", completa.
O 'hibridismo' na primeira-dama
A discussão é complexa, concordam as pesquisadoras. Ao mesmo tempo em que existem avanços - representados por um maior foco na articulação de políticas públicas em vez de uma atuação restrita ao assistencialismo e ao voluntariado -, o próprio lugar de primeira-dama carrega um aspecto tradicional "que não se rompe facilmente", declara Medeiros.
"É um papel meio híbrido ainda dentro desse primeiro-damismo. Na verdade, a gente teria que acabar com essa ideia de que a primeira-dama tem que fazer alguma coisa dentro do governo. (Mas) Nosso povo está pronto para não ter uma primeira-dama atuante? Não", pontua.
Ela cita, por exemplo, Dona Marisa, segunda esposa de Lula e que faleceu em 2017. Primeira-dama durante os dois primeiros mandatos do petista, ela foi criticada por não ser atuante. A nova primeira-dama, Janja, é criticada pelo oposto.
"Na nossa cultura, a gente não está preparado para não ter uma primeira-dama atuante, a gente sempre espera que a primeira-dama vá fazer algo. E dentro de um hall, dentro de uma determinada imagem, de um determinado conjunto de ações", reforça.
E este escopo de atuação que é esperado de uma primeira-dama acaba resvalando exatamente nos estereótipos de gênero, que também perseguem mulheres que, por exemplo, são eleitas para cargos eletivos. "O lugar esperado da mulher na política", conforme resume Marques.
"Um lugar de subserviência, é um lugar de tratar somente de pautas supostamente femininas. (...) Ela é atacada também como um símbolo, como uma representante das mulheres que estão ocupando a política de uma forma que desagrada ao status quo", reforça.
Dentro de uma cultura da primeira-dama atuante e ainda enfrentando estereótipos patriarcais dentro da política, as mulheres que ocupam essa função têm contribuído para a evolução neste papel.
"As primeiras-damas, de modo geral, vem tentando profissionalizar para poder ter mais legitimidade e romperem com esse perfil assistencialistas, mas mesmo elas não tendo perfil assistencialista, é ilógico do ponto de vista da cultura democrática, elas ocuparem uma proeminência muito forte dentro do governo", argumenta Moíza Medeiros.