Gabriela Manssur: "É importante que mulheres rompam o silêncio, denunciem e ocupem espaços de poder"
Promotora de Justiça em SP, Gabriela Manssur atua há quase duas décadas na defesa dos direitos das mulheres e no combate à violência de gênero
"Uma reeducação política para a inclusão": assim a promotora de Justiça de São Paulo, Gabriela Manssur, descreve o cenário ideal para assegurar o fim da violência política de gênero. Com atuação há quase duas décadas na defesa do direito das mulheres, ela admite que este cenário, por enquanto, ainda é uma expectativa e é preciso lidar com a realidade.
Uma realidade que ainda é de violação frequente aos direitos de mulheres, inclusive àqueles que envolvem a participação ativa delas nos espaços de poder.
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E para mudar isso, é necessário que existam espaços onde as mulheres possam denunciar à violência política sofrida - seja para exercer o voto, o direito de ser votada ou para cumprir o mandato eletivo para o qual foram eleitas. Além de punição de atitudes que configuram violência política contra as mulheres - conduta tipificada como crime desde agosto de 2021.
Manssur, que esteve em Fortaleza para participar do Congresso Cearense de Direito Eleitoral, entre os dias 10 e 12 de novembro, foi entrevistada pelo Diário do Nordeste em mais uma edição do Projeto Elas, iniciativa do Sistema Verdes Mares que busca informar, discutir e instigar a reflexão sobre o lugar da mulher na sociedade.
Ela falou sobre o combate à violência de gênero na política, mas também em outras esferas da vida das mulheres - uma luta que inspirou a criação do projeto Justiceiras, canal online para denúncia de violação de direitos das mulheres.
Confira a entrevista completa:
Apesar do machismo nos espaços políticos não ser novidade, o termo violência política de gênero tem ganhado mais projeção agora. Por que a demora em nomear essa violência que ocorre nos espaços de poder?
Já se fala há muito tempo nesse tipo de violência, o que se demorou foi a criação de um tipo penal específico que possa punir condutas como essa. Muitas vezes, as mulheres se sentiam envergonhadas, caladas, silenciadas pela falta de um tipo específico, pela falta de um crime que possa punir as pessoas que cometem esse tipo de crime quando no exercício dos direitos políticos das mulheres.
O direito de votar, o direito de ser votada e também o direito de exercer o mandato político com liberdade, sem nenhum tipo de ataque à sua intimidade ou à sua moral. Os tipos de ataques que vêm para as mulheres são relativos à sua honra, à sua intimidade, à sua posição como mulher e não como profissional. E são essas condutas que, muitas vezes, inviabilizam e criam vários obstáculos para as mulheres poderem ocupar esses espaços de Poder.
A criação dessa lei que tipifica a violência política de gênero é suficiente para combater esses casos? Ou são necessárias mais medidas para proteger essas mulheres?
Nós não podemos só jogar nas costas do Direito Penal a mudança comportamental de uma sociedade que já é estruturalmente machista e que vai repetindo esse comportamento que, muitas vezes, afasta a mulher dos espaços públicos e até do mercado de trabalho. Porém, tendo esse crime, já cria-se, com certeza, um cenário de intimidação a essas condutas e a certeza da punição. Isso faz com que as pessoas repensem as suas atitudes antes de cometê-las.
Para mim, o melhor cenário seria uma reeducação política com inclusão das mulheres, inclusão das pessoas negras, inclusão da comunidade LGBTQIA+, inclusão da sociedade brasileira que se vê representada nos espaços públicos de poder.
Esse seria o nosso cenário perfeito, mas nós temos que trabalhar com a expectativa e com a realidade. E a realidade é que temos que punir essas condutas urgentemente. Eu nunca vi, como promotora de Justiça, que recebe essas denúncias, um número gigantesco de mulheres que sofrem violência política pelo fato de serem mulheres. E hoje, com as redes sociais, isso está muito visível.
As mulheres estão, cada vez mais, se expondo, não de uma forma pejorativa, mas para mostrar a materialização daquilo que a gente fala: o machismo político, o machismo estrutural que afasta as mulheres do exercício dos nossos direitos, seja dentro de casa ou seja no Congresso Nacional.
Existem diferenças entre este a violência política de gênero e outros tipos de violência, como a doméstica? E quais são as semelhanças?
Eu não vejo diferença. A similaridade é: somos mulheres e estamos sujeitas a todo tipo de violência. Eu, você, a mulher negra, a mulher pobre, a mulher rica, a mulher que quer ser política e a mulher que está dentro de casa. O que eu vejo diferença é que, quando a mulher ocupa os espaços de poder, ela sofre outro tipo de violência. Não é uma violência física, não é uma violência sexual. Não há nem a necessidade de um contato físico.
Há o ódio e o ataque contra essa essa mulher que está ocupando esses espaços, como se esses espaços não fossem dela e que ela deveria estar na casa dela, lavando roupa, cozinhando comida, mesmo que essa não seja a vontade dela. Se a mulher quer lavar roupa, ser dona de casa e é a vontade dela, ela tem que ser respeitada também, sem ser atacada. Mas se ela quer ir para as ruas, para o parlamento, para o Judiciário, essa vontade tem que ser respeitada. É como se nós não pudéssemos pertencer a esse espaço.
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Se nós estivermos lá, nós temos que aturar como se fôssemos homens, com palavras de baixo calão, com várias ofensas à nossa imagem, como se nós não fôssemos competentes o suficiente. Aliás, eu ouvi, na semana passada, um discurso no seguinte sentido: ‘as mulheres estão ocupando mais espaços, elas estão ficando mais competentes’. Ou seja, a mulher do século passado ou dos anos 2000 era menos competente.
Houve uma evolução cerebral? Ou houve uma conscientização de que as mulheres sempre foram competentes e agora elas estão ocupando esses espaços? Eu não me conformo com esses discursos. Precisamos de mais mulheres no poder e quando o presidente da República falou que quer alguém ‘terrivelmente evangélico’, eu quero mulheres terrivelmente mulheres nos espaços de poder.
De iniciativa sua, o projeto Justiceiras está promovendo a campanha Política de Saia, exatamente com o objetivo de combater a violência de gênero da política. Como funciona essa campanha?
O projeto Justiceiras foi criado durante a pandemia para receber denúncias sobre lesão aos direitos humanos das mulheres. E também para trazer mulheres que são engajadas no tema de violência contra as mulheres e querem ajudar outras mulheres, porque o Poder Público não dá conta. Nós sabemos que a demanda é muito grande e o Poder Público ainda está em bastante descrédito com as mulheres, porque nós pagamos impostos e exigimos também segurança, saúde, dignidade.
Mas o que vamos fazer? Ficar reclamando? Não, nós vamos atuar. Então, chamar essas mulheres para ajudar outras mulheres também foi um dos objetivos do projeto Justiceiras. Com isso, nós agregamos, em um ano e três meses, 8 mil mulheres para ajudar outras mulheres. Psicologicamente, juridicamente, na assistência social e também nas lideranças locais, para a gente encaminhar essas mulheres para os serviços locais necessários de atendimento. Foi uma articulação, um elo entre a sociedade civil e o Poder Público.
Só que isso foi além, nós não só ficamos recebendo as denúncias e fazendo esse apoio às mulheres, como pensamos em capacitação, em sensibilização, em mercado de trabalho, em empreendedorismo e também em exercícios dos direitos políticos. E começamos a receber muitas mulheres que queriam ajudar outras mulheres a se engajar na política, além de denúncias (de violência política). Portanto, nós abrimos o canal do Justiceiras para receber denúncias sobre violações aos direitos políticos das mulheres.
Só que para fazer um trabalho bem feito, nós precisamos medir, pelo menos, um pouco dos números que pintam esse cenário brasileiro das mulheres na política. Então, nós fizemos uma pesquisa - que ainda está em andamento e vai seguir até o final do ano - para sabermos o que a mulher precisa, quem é a mulher que vota, em quem ela vota, em quem ela quer votar, se ela se sente representada.
E retirar os mitos - de que ‘mulher não vota em mulher’ ou de que ‘mulher não apoia mulher’. Muitas vezes esses mitos fazem com que as mulheres fiquem cada vez mais distantes de se verem representadas em um Congresso Nacional, em um parlamento estadual ou municipal, em uma Prefeitura, enfim, em espaços de poder.
O “Política de Saias” é exatamente para isso: engajar mulheres para ajudar e orientar outras mulheres a entrar na política. Nós precisamos identificar as grandes lideranças brasileiras, que não sou eu, que já estou em um espaço de poder. É aquela líder comunitária que nasceu líder, que faz um trabalho maravilhoso na sua comunidade, com combate ao tráfico, com saúde para mulheres negras, com inclusão para crianças nas creches e nas escolas. Essa mulher tem que ser uma liderança na política brasileira.
No próximo ano, teremos eleições e teremos candidatas a deputadas, senadoras e mesmo para presidente. Como a Justiça Eleitoral e o próprio Ministério Público Eleitoral podem se preparar para proteger essas mulheres de serem vítimas de violência política?
Exatamente como a gente faz com (outras) violências contra as mulheres: o Ministério Público engajado e comprometido com a sociedade, sensibilizado com a questão da violência política, nunca achando que é ‘mimimi’, sem vitimizar e sem culpar a mulher e especializado para receber essas demandas, que virão.
(Isso) Para que nós tenhamos sucesso ao evitar essas denúncias - que é possível com a prevenção - e também na punição, caso elas cheguem até nós. É preciso grupos especializados, sensibilizados e capacitados, além de instrumentos necessários para que essas denúncias cheguem até nós. É importante que as mulheres rompam o silêncio, denunciem e possam ocupar os espaços de poder.
Ainda temos mulheres que dizem que não existe essa questão de violência por gênero ou que, por exemplo, o feminismo ‘mais atrapalha do que ajuda’. Isso pode atrapalhar essa luta por direitos e por conquistas de espaço?
Isso é masculinização das mulheres que muitas vezes ainda estão presas a estereótipos de agradar aos homens. Então, para agradar aos homens, ela acaba fingindo que não tem nada, que não sente nada ou que nunca sofreu. Podem ter mulheres que nunca sofreram violências e que, portanto, falam que ‘se não aconteceu comigo, não aconteceu com ninguém’ ou que são mulheres que reagiram a uma situação de violência, então ‘comigo não, comigo isso não acontece’. Então, nós temos que ver que são cenários diferentes, mas dizer que não existe violência de gênero, eu quero convidar ela a sentar na promotoria, ver os índices de violência e todos os processos que chegam diariamente ao meu conhecimento.
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Temos tido aqui, no Ceará, discussões, nas casas legislativas, sobre o uso de banheiros por pessoas trans e não-binárias. Para a senhora, como é possível trazer mulheres trans e pessoas não-binárias para essa discussão sobre o combate à violência política de gênero?
Nós temos que ouvir o que elas querem. Elas que são prejudicadas. Nós temos que ouvir o que essas mulheres que sofrem preconceito querem, quais são os espaços dela para que nós possamos chegar em um equilíbrio. Eu sou a favor do equilíbrio, nunca uma imposição radical, nem de um lado nem do outro, porque isso gera discursos de ódio e não se chega a lugar nenhum. Nós precisamos conquistar direitos, precisamos avançar. E o avanço ocorre com o equilíbrio, ouvindo os dois lados.
Agora, nós temos que educar as crianças a conhecerem que existem mulheres trans, para que elas cresçam sabendo disso e respeitando todos esses espaços e que isso não seja uma intimidação a elas. Nós precisamos orientar, desde cedo nas escolas, dentro de casa, nas empresas, na sociedade, na mídia o que é a realidade da diversidade brasileira. Não podemos viver em uma bolha de vidro e impedir, muitas vezes, as pessoas de serem livres e felizes, porque todos e todas nós estamos sob o manto da mesma Constituição, com direitos iguais.
Quando eu falo que precisamos ouvir a outra parte é porque, os casos que recebo não são de pessoas que se sentiram intimidadas ou sentiram afrontadas quando uma mulher trans entra em um banheiro feminino. O que eu escuto é que mulheres trans que estão em banheiros masculinos sofrem violências gravíssimas e nós, como membros do Ministério Público, não podemos fechar os olhos a essa triste realidade. Por que não amparar uma pessoa que está sofrendo violência e pede ajuda do Poder Público, pede ajuda do Estado e pede a evolução da mentalidade das pessoas.