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Deputados do Ceará enviam verbas milionárias para cidades em que tiveram menos de 0,3% dos votos

O Diário do Nordeste levantou números que revelam a rota das emendas no Estado e como as decisões políticas afetam a distribuição do recurso público

Escrito por Wagner Mendes, Igor Cavalcante e Luana Barros ,
Arco de Nossa Senhora de Fátima, em Sobral
Legenda: O envio de recursos nem sempre segue uma lógica. Há municípios, como Sobral que, apesar de ter um deputado federal da cidade, recebeu menos recursos do parlamentar do que locais em que o total de votos foi menor
Foto: Divulgação

Em ano pré-eleitoral, deputados federais do Ceará transferiram valores milionários em emendas individuais a cidades em que praticamente não receberam apoio popular. São casos em que o parlamentar não obteve sequer um voto ou que os sufrágios não representaram mais de 0,3% dos votos totais conquistados pelo legislador. 

Os dados que chamam atenção são resultado de um cruzamento de informações disponíveis na Câmara dos Deputados e no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) realizado na última semana de novembro. O Diário do Nordeste confrontou números que revelam a rota das emendas no Estado e como as decisões políticas afetam a distribuição do recurso público.

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Essa reportagem integra a série “Rota das Emendas”, que busca seguir os caminhos dos recursos enviados por parlamentares cearenses aos municípios do Estado. No ano de 2021, cada deputado federal teve direito a decidir como R$ 16,2 milhões do dinheiro público seria usado.

Análise das emendas dos 22 deputados federais cearenses para este ano aponta, por exemplo, que o deputado federal Heitor Freire (PSL) destinou mais de 90% do valor das emendas que tem direito (R$ 14,8 milhões) ao município de Granja. Até o mês de novembro, foram pagos R$ 9,4 milhões. Segundo o deputado, o valor teve como destino obras de infraestrutura e saúde. 

Lá, Freire recebeu 58 votos em 2018 — representando apenas 0,06% dos 97.201 votos obtidos pelo parlamentar na eleição passada. O valor alto de recursos vai para a prefeitura comandada pelos Aldigueri, a prefeita Juliana Aldigueri é esposa do deputado estadual Romeu Aldigueri (PDT), então aliados do governador Camilo Santana (PT).

Em julho deste ano, o deputado gravou um vídeo nas redes sociais ao lado de Romeu anunciando os investimentos no município.

Procurado, Heitor afirmou que o critério para o envio de emendas é a necessidade do município. "Eu acredito que as cidades do interior estão mais vulneráveis do que a Capital. Por isso, a maior parte das minhas emendas vai pra lá. Para Fortaleza, as emendas individuais eu destinei de forma genérica para o Estado e, em fevereiro, vamos direcionar para os municípios, e Fortaleza sempre será contemplada, como faço desde o início do mandato”, declarou.

Veja como deputados destinaram emendas

Estratégias

Para o cientista político da Universidade Federal do Ceará Cleyton Monte, o que explica a aplicação dos recursos em regiões comandadas por não aliados na eleição anterior é o interesse em ampliar a base.

"Ele (deputado) tem que ampliar a base e, para ampliar, tem que usar a moeda que ele tem disponível, que são as emendas. No geral, o deputado envia recurso para o município que ele quer ter uma visibilidade, dar um apoio a uma liderança, a um vereador, a um prefeito", pontua. 

A prática foi identificada também com Pedro Bezerra (PTB), que transferiu R$ 4 milhões à administração de Caucaia — segundo maior colégio eleitoral do Ceará — para investimento na saúde. Na cidade, o então candidato somou 220 votos — 0,18% do total.

Mesmo tendo conquistado a maior parte dos votos em Juazeiro do Norte, o deputado não destinou emendas à cidade. Lá, o pai dele, ex-prefeito Arnon Bezerra (PTB), foi derrotado na disputa pela reeleição no ano passado. Venceu o pleito o opositor Glêdson Bezerra (Podemos). Em 2020, quando Arnon era prefeito, o deputado enviou R$ 4,8 milhões.

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Já na pequena cidade de Milhã, tendo conquistado apenas 45 votos, Capitão Wagner (Pros) repassou R$ 3 milhões à Prefeitura. À reportagem, Wagner diz que não faz distinção entre prefeituras aliadas ou de oposição no momento de enviar recursos.

"Nós não temos nenhum problema em destinar emendas para prefeituras adversárias ou de partidos adversários. Já destinei emendas para prefeituras do PDT, do PCdoB, do PSB, diversos partidos. A questão é que em alguns momentos a gente define e os recursos não são executados", lamenta.

Eleito pelo PL, em 2020, o prefeito Alan Macêdo demonstra publicamente afinidade política com governistas no Estado — grupo adversário de Wagner nos últimos anos.

Sem apoio

O "desequilíbrio” na distribuição do dinheiro em relação à quantidade de votos se manteve inclusive em cenários em que o apoio ao então candidato foi praticamente nulo. O deputado federal Vaidon Oliveira (Pros) não recebeu um voto sequer no município de Croatá nas eleições de 2018, mas repassou R$ 1 milhão em emendas individuais. 

Na mesma cidade, Denis Bezerra (PSB) protocolou na Câmara dos Deputados a transferência de mais de R$ 1 milhão. Lá, ele obteve sete votos.

"Busquei equilibrar a distribuição com parte dos recursos destinados às cidades onde recebi boa votação, mas, também, para as cidades que nos procuram e apresentaram as suas demandas e dificuldades. Mesmo com um orçamento considerável, não é possível atender a todos os municípios em um único ano. Os recursos são insuficientes para atender a demandas de todas as cidades ao mesmo tempo, mas as questões sociais têm mais peso nessa decisão, como é o caso de Croatá que possui um baixo Índice de Desenvolvimento Humano", explicou o deputado Denis Bezerra.

Denis justifica o repasse também por relações políticas. "Além disso, apoiei a eleição do prefeito Ronilson Oliveira que tem como vice-prefeito Márcio Onofre, um dos nossos filiados, que vem travando a luta por melhorias no município. São recursos importantes para ajudar no desenvolvimento da cidade, contribuindo para um Ceará ainda mais forte". 

Números levantados via Portal da Transparência também revelam que Júnior Mano (PL) repassou quase R$ 490 mil à Prefeitura de Jucás, onde recebeu seis votos, e R$ 430 mil a Mulungu, quando teve o apoio de 54 eleitores. Ele diz que destinou R$ 2 milhões de emenda de bancada para Fortaleza, cidade onde recebeu mais votos. 

"Destinei, todos os anos, 50% dos valores de emendas de bancada para o Estado, e que está sendo executado no Hospital Universitário e no combate ao Covid. O prefeito de Mulungu é do PL, mesmo partido meu. E temos alinhamentos políticos e mesmos pensamentos de ajudar a população", justificou. 

O cenário se repete com Dr. Jaziel (PL), que repassou R$ 405 mil a Ererê depois de ter recebido apenas 16 votos na localidade. Suplente de deputada, Gorete Pereira (PL) assumiu por quatro meses, tempo suficiente para alocar as emendas individuais, cujo prazo coincidiu com a substituição da deputada Luizianne Lins (PT). A então deputada transferiu R$ 800 mil para Jaguaribe, onde conquistou 41 votos. 

Moses Rodrigues (MDB), que tem base eleitoral em Sobral, priorizou a cidade de Horizonte com R$ 1 milhão. Nezinho Farias (PDT), aliado do governador, é o prefeito no município. Lá, o deputado conquistou 148 votos no município na última eleição.

Em Sobral, Moses faz oposição ao prefeito Ivo Gomes (PDT) e não encaminhou recursos para o município. No ano passado, o pai de Moses, o empresário Oscar Rodrigues, foi derrotado na disputa eleitoral para o atual prefeito.

"Compromissos"

Danilo Forte (PSDB) obteve apenas um voto em Aurora e destinou R$ 1 milhão ao município. Com seis votos em Palmácia, o tucano destinou R$ 1 milhão para Palmácia. Em Barbalha, que recebeu 9 votos, destinou R$ 500 mil. Suplente do ex-deputado Roberto Pessoa (PSDB), Danilo assumiu definitivamente quando Pessoa voltou à Prefeitura de Maracanaú.

Nesse caso, o deputado esclarece que a motivação do envio das emendas para esses municípios são parte de compromisso do ex-deputado com essas lideranças.

"As emendas apontadas pela reportagem são frutos de compromissos do então deputado Roberto Pessoa, que deixou a Câmara dos Deputados para assumir a Prefeitura de Maracanaú. Como o orçamento deste ano, foi formulado em 2020, mas aprovado apenas em março de 2021, as emendas ficaram vinculadas ao nosso mandato", detalha.

Fundador e secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castelo Branco, aponta que o principal problema que ronda hoje as emendas parlamentares — seja ela em que categoria for — é a ausência de critérios para a escolha das prefeituras. 

Sem qualquer norma para o direcionamento desses recursos, deputados ficam livres para adaptar valores aos municípios e definir o que melhor convém. 

"Precisaríamos avançar nesse parâmetro socioeconômico, critérios técnicos. Já deveria ter um anexo de programações sugeridas em parâmetros socioeconômicos. O Executivo iria sugerir que essa programação acontecesse. Hoje em dia não existe critérios e eles direcionam para onde entendem", questiona Castelo Branco.

Bases sem recursos

Curiosamente, representantes cearenses em Brasília que apostaram a maior parte dos recursos em locais em que tiveram pouco apoio popular, não transferiram nada para o município que garantiu ao parlamentar a votação mais expressiva na campanha de 2018. 

Os deputados AJ Albuquerque (PP), André Figueiredo (PDT), Capitão Wagner (Pros), Danilo Forte (PSDB), Dr. Jaziel (PL), José Airton (PT), Júnior Mano (PL) e Vaidon Oliveira (Pros) tiveram dos eleitores de Fortaleza o maior apoio entre os municípios cearenses. A Capital, no entanto, não recebeu nada neste ano de 2021 em emendas individuais dessas lideranças.

Sobre não ter usado as emendas individuais para enviar recursos para Fortaleza, o deputado José Airton (PT) argumanta que elege pelo menos quatro critérios para definir o rumo dos valores no Estado.

"São vários os critérios que levo em conta e não somente os votos. Obtive na Capital cerca de 7 mil votos, mas ajudamos todos os municípios através dos recursos que liberamos das emendas da bancada e individuais para Governo do Estado para o custeio da saúde que, por sua vez, envia para o custeio e equipamentos dos diversos hospitais, como HGF, César Cals, Waldemar de Alcântara, etc", explica.

O petista explica que procura descentralizar os investimentos. "Outro critério é devido à concentração de renda na Capital. Procuro promover uma descentralização dos recursos para os municípios ajudando os mais carentes", diz.

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O deputado José Guimarães (PT) alega que o critério para a destinação de emendas segue o objetivo de impulsionar o desenvolvimento local das regiões que recebem os recursos. Assim, a definição dos investimentos, segundo ele, leva em conta a necessidade de financiamento em áreas estratégicas como saúde, educação e infraestrutura. 

Fortaleza não foi a única cidade nesse contexto. O fato se repetiu com Moses Rodrigues (MDB) em Sobral e com Domingos Neto (PSD) em Caucaia.

"O deputado leva em conta diversos critérios no momento de definir as indicações das emendas. Entre elas, representação que ele e prefeitos aliados têm nos municípios; volume de investimentos já alocados na região e importância do município no oferecimento de serviços de natureza regional, especialmente os que dispõem de equipamentos regionais de saúde como hospitais regionais, policlínicas, CEOs, UPAs, etc", diz nota enviada pela assessoria do deputado Domingos Neto.

Na maioria dos casos citados, o deputado faz declaradamente oposição ao prefeito. São situações em Fortaleza com Capitão Wagner (Pros), Jaziel Pereira (PL) e Vaidon Oliveira (Pros). No Interior, com Pedro Bezerra (PTB) e Moses Rodrigues (MDB). O candidato apoiado por Domingos Neto em Caucaia foi derrotado na eleição de 2020.

Para o cientista político Cleyton Monte, a escolha do destino do dinheiro público ocorre de forma calculada, conforme o perfil do parlamentar, e nem sempre essa distribuição obedece a uma lógica geográfica, mas também pode seguir um rumo temático — pauta animal, religião ou social.

"Quando um parlamentar diz que escolheu um município específico porque ele está precisando, na verdade todo mundo precisa. Nenhum deputado, seja titular ou suplente, não envia recurso aleatoriamente. Até porque ele não tem um montante de forma indiscriminada, tem que usar de forma racional", pontua o pesquisador.

Todos os parlamentares citados na reportagem foram procurados por meio do telefone pessoal, da assessoria de imprensa ou do contato de e-mail do gabinete em Brasília. Na medida em que os demais responderem aos questionamentos, a reportagem será atualizada.

O que são as emendas?

É o Governo Federal quem executa o orçamento da União — investindo em saúde, educação, segurança pública, entre outros. No entanto, o Legislativo pode fazer alterações ao que o Executivo propõe quando faz o planejamento de como vai investir o dinheiro público no ano seguinte.

As mudanças ao texto ou incremento de iniciativas ao que a presidência da República envia ao Congresso Nacional são chamadas de emendas parlamentares. Neste, foram R$ 16,2 milhões colocados à disposição de cada deputado.

Desde 2015, as emendas se tornaram impositivas. Ou seja, o Governo Federal é obrigado a executar o planejamento feito pela Câmara dos Deputados. Ficou definido que o orçamento impositivo para as emendas parlamentares individuais ficaria no limite de 1,2% da receita corrente líquida, sendo metade deste percentual destinada à saúde.

Esse dinheiro pode ser transferido através de convênio, que ocorre em projetos como construção de escolas, ou no formato fundo a fundo, quando o recurso é alocado no caixa municipal para gastos com saúde. Nessa situação, é a prefeitura quem recebe a emenda que vai prestar contas diretamente com o Tribunal de Contas da União.

Acompanhe a série

Na reportagem da terça-feira (14), o Diário do Nordeste traz detalhes de como o parlamentar destina recursos de emendas para as bases eleitorais.

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