Com tolerância das instituições, sombras se estendem ao orçamento “não secreto”
Graças ao jornalismo, já se vão sete meses que a expressão “orçamento secreto” faz parte do vocabulário de quem acompanha, mesmo que por cima, o noticiário político. A prática de esconder os nomes de congressistas beneficiados com porções do orçamento federal atrás das chamadas emendas de relator é tão indecente que dá a impressão de que as outras emendas são transparentes ao máximo.
Pois não são. Como se diz por aí, é uma questão de referencial. Em relação à aberração do “orçamento secreto”, as emendas individuais e de bancada no Congresso Nacional são bastante transparentes: é possível saber quem apresentou, quando elas foram apresentadas, para quê e até para onde devem ir.
Acompanhar o percurso completo desse recurso público, por sua vez, é tarefa quase impossível. Os dados publicados nos sites de cada órgão público não são suficientes para ligar os pontos entre os caminhos que o dinheiro faz: da aprovação da emenda no Congresso à liberação do recurso pelo governo federal e dela ao gasto feito pela prefeitura ou pelo estado. O mesmo vale para emendas aos orçamentos estadual e municipal.
Ao fim e ao cabo, uma parte do orçamento público sempre fica secreta para a maioria dos cidadãos. Com isso, há uma violação em série de direitos (mais uma para a coleção brasileira, aliás) que bloqueia a participação da sociedade na gestão pública e corrói uma das bases da democracia.
Sem conseguir acompanhar, de ponta a ponta, como o dinheiro público é gasto, fica inviável verificar se ele foi destinado a ações necessárias à comunidade (obras em escolas ou postos de saúde, por exemplo) ou se beneficiou apenas um grupo restrito já privilegiado. Conferir se o repasse da emenda aconteceu ou não e em que momento do ano, ou a que contrato exatamente o gasto do recurso está vinculado também fica complicado, para dizer o mínimo.
Em tempos de desinformação, a transparência incompleta pode aumentar o impacto de conteúdos falsos ou manipulados. Afinal, cumprir um dos mandamentos para não cair em “fake news” - checar a informação recebida antes de repassar - vira tarefa de especialista no quebra-cabeças orçamentário. Com as eleições já virando a esquina, é fundamental saber se o político está só contando vantagem sobre uma ação ou apresentando dados reais.
É perturbador concluir que, uma década depois de ganhar sua Lei de Acesso a Informação, o Brasil ainda está distante de uma das determinações básicas do texto: “É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão”. Apesar da multiplicidade de portais da transparência e do grande volume de dados publicados por todos os níveis e poderes, ainda há sombras.
A transparência não é uma característica natural do poder público em nenhum lugar do mundo. É um campo de disputa constante, em que a sociedade busca afastar a resistência de alguns setores em fazê-la avançar cada vez mais. Em democracias minimamente funcionais, há algum nível de apoio das instituições a essa tarefa, com vistas ao bem comum.
O Brasil está mais do que carente desse apoio: ao invés dele, conta com ações deliberadas para favorecer a opacidade. A tal ponto que nem a revelação e a admissão pública da existência de um mecanismo de cooptação de apoio totalmente contrário aos princípios da administração pública constrange os congressistas, ou gera reação maior que um tapinha na mão.
Marina Iemini Atoji
Gerente de projetos e de comunicação da Transparência Brasil