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Com caso histórico em Fortaleza, candidaturas coletivas são incógnitas em 2024 sem regulamentação

A falta de legislação específica é principal desafio da modalidade de candidatura, que quase foi proibida na reforma eleitoral votada pela Câmara dos Deputados em 2023

Escrito por Luana Barros , luana.barros@svm.com.br
Mandata Nossa Cara
Legenda: A mandata Nossa Cara, formada por Adriana Gerônimo, Lila M. Salu e Louise Santana, é primeira mandato coletivo eleito no Ceará
Foto: Divulgação/Nossa Cara

As candidaturas coletivas são um dos pontos elencados na reforma eleitoral em tramitação no Congresso Nacional. Se, inicialmente, o plano era regulamentar a modalidade, o texto acabou decidindo proibir esse formato de candidatura. Apesar da aprovação na Câmara dos Deputados em 2023, a paralisação da tramitação no Senado — perdendo o prazo para ser efetivada no pleito deste ano — acabou garantindo um fôlego para as candidaturas coletivas, que podem participar da disputa eleitoral em 2024. 

Novidade no cenário político eleitoral há quatro anos — quando poucos mandatos coletivos haviam sido eleitos no país —, o formato coletivo de mandato chega a 2024 mais consolidado, com experiências em diferentes casas legislativas pelo Brasil. 

No Ceará, apenas um mandato coletivo foi eleito até agora. Ou melhor, mandata — como preferem as co-vereadoras Adriana Gerônimo , Louise Santana e Lila M. Salu. Juntas, elas formam a mandata Nossa Cara (Psol), eleita a partir de candidatura coletiva para a Câmara Municipal de Fortaleza, em 2020. 

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"Se nós tivemos essa ousadia de tentar esse projeto, Fortaleza foi mais ousada que nós quando nos deu a oportunidade de executar esse projeto, de fato", resume Louise Santana. Ela e Adriana Gerônimo — responsável por ser a cabeça da candidatura e quem, legalmente, ocupa a cadeira — destacaram as vitórias conquistadas pelo mandato, mas também os desafios vivenciados ao longo destes três anos de mandato. 

"A gente teve que inventar a roda", lembra Gerônimo. O sentimento de "tarefa cumprida" ao entrar no último ano de mandato divide lugar com um cenário avaliado por ela como "muito ruim para os mandatos coletivos a nível de Brasil", completa ela, porque muitas candidaturas coletivas acabaram rompendo após assumirem uma cadeira parlamentar.  

Isto, porque os desafios e obstáculos enfrentados são diversos. Além dos externos, vivenciados na interação com os demais parlamentares, com a estrutura da casa legislativa e do Executivo e de outros organismos políticos, há também questões internas sobre o funcionamento deste coletivo, já que acabam sendo "três mandatos em um só", como definem as co-vereadoras.

O que são mandatos coletivos?

A legislação eleitoral brasileira não tem previsão para candidaturas coletivas. Contudo, também não há uma proibição explícita do formato. "No jogo político, não muda. O que muda é na apresentação da candidatura", resume a advogada especialista em Direito Eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP), Stephany Santos. 

As candidaturas coletivas, portanto, "recebem a nomenclatura", explica a advogada, mas o registro feito à Justiça Eleitoral fica no nome de apenas um dos co-candidatos. Em 2022, o Tribunal Superior Eleitoral passou a permitir que fosse possível indicar, no nome da urna, que se tratava de uma candidatura coletiva. 

Em 2020, isso foi um problema enfrentado pela "Nossa Cara". Inicialmente identificada desta forma nos registros, foi necessário fazer alteração depois do Ministério Público Eleitoral pedir a impugnação da candidatura. A justificativa era de que a denominação no sistema eletrônico “induziria o eleitor ao erro”. O nome da urna ficou, então, como "Adriana do Nossa Cara".  

Apesar da falta de uma regulamentação oficial, as candidaturas coletivas cresceram de forma exponencial ao longo dos anos. Dados da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade apontam que as primeiras experiências do tipo aconteceram ainda nas eleições de 1994. 

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Em 2016 — mesmo ano em que houve a eleição do primeiro mandato coletivo, em Goiás —, 13 candidaturas coletivas estiveram nas urnas. Em 2020, eram 257. Os dados são de levantamento do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp) da Fundação Getúlio Vargas (FV). No Ceará, também houve um aumento. De 2020 para 2022, o número de candidaturas coletivas triplicou — indo de quatro para  13 representações no processo eleitoral. 

Inicialmente testado a nível municipal, o formato chegou às disputas para as assembleias legislativas do País em 2018. Naquele ano, foram eleitos os dois primeiros mandatos para a cadeira de deputado estadual no País. Em Pernambuco, foi eleita a candidatura Juntas, enquanto São Paulo elegeu a Mandata Ativista. 

Em 2022, o resultado foi semelhante, apesar do número de candidaturas compartilhadas ter crescido — foram 215 no total, das quais se elegeram apenas a Bancada Feminista e o Movimento Pretas, ambas para a Assembleia Legislativa de São Paulo. Naquele ano, além das disputas pelas cadeiras estaduais, candidaturas coletivas também tentaram vaga na Câmara dos Deputados.  

A experiência como co-parlamentar

"A candidatura coletiva abrange e amplia que setores da sociedade possam participar do pleito eleitoral", avalia Stephany Santos. Sem a regulamentação, no entanto, a atuação de uma candidatura compartilhada eleita para o Legislativo acaba sendo "um contrato entre eles (os co-parlamentares)". 

Por isso, a organização interna do mandato coletivo é o primeiro desafio citado pelas co-vereadoras Adriana Gerônimo e Louise Santana. "Essa relação de fortalecimento dessa coletividade para nós foi algo que, de fato, atravessamos enquanto uma dificuldade permanente", cita Santana.

"Nós viemos de várias lutas, mas nós não tínhamos um processo consolidado entre nós, de construção anterior a isso. Nosso primeiro processo de construção juntas, de fato, é a mandata. Isso também pesou na nossa condução, porque, em determinados momentos, a gente estava aprendendo. Como que iria lidar uma com a outra, como que iríamos construir esse processo conjuntamente", diz.

Nossa Cara
Legenda: Mandato coletivo 'Nossa Cara' tomou posse em 2021 na Câmara Municipal de Fortaleza
Foto: Divulgação/Nossa Carra

O momento após a posse foi, portanto, o momento de "dar conta dessa constituição interna", completa. Para isso, as co-vereadoras definiram três eixos estruturantes de atuação, cada um liderado por uma delas: Direito à Cidade e Moradia, com Adriana Gerônimo; Educação, com Louise Santana; e Cultura, com Lila M. Salu. 

"Cada um desses eixos tem uma equipe para acompanhar as demandas e essa equipe vai desde o jurídico a comunicação, mobilização nos territórios. E a gente fundamenta o nosso trabalho em cima desses três grandes eixos", explica Gerônimo. Outras pautas também atravessam essa atuação, como negritude, direitos das mulheres, LGBTQIA + e assistência social, dentre outras. 

As decisões, por sua vez, são tomadas de forma colegiada, por uma coordenação que conta com três co-parlamentares, além dos responsáveis por cada equipe da mandata Nossa Cara. Existe ainda reuniões externas, com movimentos sociais e entidades da sociedade civil para avaliação e planejamento de ações. Com cada co-vereadora liderando uma área de atuação, "é como se fossem três mandatos em um só, porque cada uma de nós tem uma pauta prioritária", explica Adriana. 

Algo que dificulta o atendimento de todas as demandas, principalmente porque os recursos do gabinete da mandata Nossa Cara são os mesmos dos outros 42 vereadores de Fortaleza. Verbas para despesas parlamentares, como recursos para gasolina, por exemplo, são divididas de forma equitativa. 

Para garantir que as três co-parlamentares recebam o mesmo salário, parte do ganho mensal de Adriana Gerônimo vai para o fundo coletivo do mandato, usado para custos como a doação partidária, mas também para financiar projetos socioculturais desenvolvidos em Fortaleza por meio de edital público da mandata. 

Desafios encontrados no percurso

Os desafios de organização interna do mandato se somam àqueles enfrentados no exercício do cargo para o qual foram eleitas. O principal deles diz respeito à falta de regulamentação de um mandato coletivo, algo que se reflete em obstáculos encontrados pelas co-vereadoras ao longo destes três anos. 

Por exemplo, apenas Adriana Gerônimo pode ter acesso ao plenário da Casa como vereadora, podendo ter tempo de fala na tribuna do legislativo. Apesar disso, em outros espaços como em comissões temáticas e em reuniões nas secretarias ou coordenadorias do Poder Público, houve um "acesso mais cordial" de Lila e Louise, como define esta última. 

Também foi possível, lembra Gerônimo, transmitir falas das co-parlamentares no telão da Câmara Municipal de Fortaleza, permitindo a elas um tempo de fala na sessão, ainda que não nos microfones do plenário Fausto Arruda. "Foi surpreendente a forma como a Câmara acolheu", elogia. 

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Apesar disso, Louise Santana aponta que, por vezes, a "legitimidade" do mandato compartilhado foi colocada à prova em espaços políticos. "Ainda que você tenha no horizonte uma partilha de decisões mais coletiva e mais horizontal, é preciso também compreender que esse organismo vai se relacionar com a estrutura do Estado, e a estrutura do Estado é uma estrutura engessada", destaca.

Ela relembra, por exemplo, vezes em que a presença das co-parlamentares não foram "assimiladas em uma discussão" e foi preciso que Adriana — representante legal do mandato — estivesse no espaço. Os avanços conquistados foram, completa Gerônimo , políticos, mas não jurídicos, o que acaba gerando insegurança aos mandatos — tanto ao Nossa Cara como a futuros. 

Adriana Gerônimo argumenta que, por isso, é necessário uma mudança no sistema eleitoral brasileiro para "garantir que os direitos políticos e os ônus políticos de um mandato coletivo sejam distribuídos igualmente entre todas as pessoas que compõem o mandato". 

Os demais co-vereadores de um mandato coletivo — que não são 'o CPF' do mandato — acabam não tendo acesso a direitos garantidos a parlamentares. Também não há uma regulação sobre a responsabilização de co-parlamentares caso haja problemas dentro do mandato coletivo. "Então, isso é um limite posto aos mandato coletivos. Os direitos políticos não são iguais para todas as pessoas. A gente vai esbarrando no decorrer do processo, nesses problemas burocráticos", diz Gerônimo .

Os problemas, pontuam as co-vereadoras, acabam sendo aprofundados pelo perfil das três co-vereadoras. "Não é um mandato coletivo qualquer, é um mandato coletivo que tem um gênero específico, que tem uma raça ,que tem uma localização social muito demarcada e que tem compromissos sociais muito demarcados", elenca Louise Santana.

As questões enfrentadas pelo Nossa Cara nem sempre eram resultado de serem uma mandata coletiva, mas sim sobre serem "três mulheres negras, LGBTs e da periferia na política", considera Adriana. 

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Quais os avanços percebidos?

Sem ignorar os desafios enfrentados ao longo destes três anos — alguns dos quais elas preveem que devem se repetir em 2024, último ano do mandato —, Louise e Adriana também ressaltam os avanços e vitórias percebidos ao longo desse período. 

Um deles é ocupar, desde 2023, a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal. Manter a coerência com o programa político estabelecido desde o início dos quatro anos no Legislativo é outro ponto citado pelas co-vereadoras como algo importante na construção da mandata. 

"O mais importante de tudo foi a gente conseguir chegar até aqui, conseguir apresentar que essa possibilidade existe, que é real", pontua Louise Santana. "Apesar de todas as dificuldades, é preciso ressaltar a importância de que as mulheres, as pessoas negras, as pessoas LGBT estão sempre criando metodologias, formas de participar desses espaços".

Apesar disso, a mandata coletiva Nossa Cara não deve concorrer à reeleição para a Câmara Municipal de Fortaleza, decisão tomada ainda no início do mandato em 2021. "A gente tinha um papel, que a gente cumpriu", diz Gerônimo. Para ela, as candidaturas coletivas continuam a ser boas estratégias, mas é preciso que haja uma regulamentação para garantir o bom funcionamento destes mandatos eleitos. 

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"Os mandados coletivos servem também para projetar quadros políticos que não estão dentro da política tradicional, como mulheres, negras, LGBTs, que vem da periferia. Mas não somente para isso. Vários outros vão continuar seguindo nessas estratégias coletivas que eu acho que tem tudo para dar certo, mas que também passam por uma regulamentação oficial", considera.

E se a falta de uma legislação específica é um problema, Louise Santana argumenta que é preciso também refletir sobre a dinâmica de participação propiciada pelas candidaturas e mandatos coletivos. "Nós temos essa metodologia muito utilizada por grupos que na política já são minoritários e que acabam se compactando ainda mais para estar dentro desse espaço", destaca.

"A gente percebe que a gente tem uma dificuldade da consolidação desses grupos, dessas figuras, dessas perspectivas, enquanto há uma acomodação dos velhos sujeitos, dos velhos perfis, dos velhos grupos, das velhas perspectivas. Então, até que ponto esse modelo desloca essa presença ou ele simplesmente acomoda? Isso não está respondido para mim ainda, mas quando eu penso hoje, sobre possibilidades coletivas, eu penso a partir disso", conclui.

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