Primeiro mandato coletivo da Câmara de Fortaleza exige adaptações no Parlamento

A Casa Legislativa reconhece limitações regimentais, já que não há previsão legal quanto ao exercício compartilhado de cargos eletivos. A situação inédita no Ceará, entretanto, já é realidade em outros estados do País

Escrito por Redação , politica@svm.com.br
Legenda: Adriana, Lila e Louise foram eleitas para mandato coletivo como vereadoras de Fortaleza
Foto: Theyse Viana

A Câmara Municipal de Fortaleza inicia a nova legislatura com composição um pouco mais diversa em relação aos anos anteriores. Agora, a Casa terá em seu quadro maior presença de mulheres e de pessoas não-brancas. Esse crescimento de grupos sub-representados na política institucional é observado também na eleição e posse do primeiro mandato coletivo no Ceará, o Nossa Cara (Psol). A novidade, contudo, chega também com questões em aberto, que exigirão adequações normativas no Poder Legislativo para o exercício compartilhado de um cargo eletivo.

O trio formado por Lila M. Salu, Louise Santana e Adriana Gerônimo – titular do mandato – chega à Câmara com a proposta de agregar formas de se fazer política no Estado. Estreantes, elas já foram indicadas pelo Psol para liderar a legenda na Casa. 

Já no dia da posse, uma adequação mostrou-se necessária. Após acompanharem a cerimônia de dentro dos gabinetes, vereadores foram ao plenário para a assinatura do termo de posse e o juramento. Lila e Louise, no entanto, foram privadas de entrar no espaço. 

Louise Santana explica que houve a tentativa de “acertar previamente” o acesso ao Plenário com o presidente da Casa, Antônio Henrique (PDT), mas apenas Adriana pode entrar. “Não quisemos criar animosidades com os trabalhadores do cerimonial, haja vista que cumpriam ordens”, diz. “Foi chato esse início, mas houve outros simbolismos e memórias. Preferimos ficar com eles”, ressalta.

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Regimento 

Por meio de nota, Antônio Henrique citou as limitações que a falta de regulamentação impõe e, com isso, considerou que a Câmara “cumpriu com todos os seus deveres, dando posse e condições de trabalho igualitárias a todos os vereadores eleitos no último pleito (de 2020)”.

Mesmo sem previsão legal, quem integra os mandatos coletivos busca condições de participação plena no Legislativo. Enquanto a Justiça não aprecia a temática, câmaras podem fazer mudanças regimentais para acomodar momentaneamente mandatos compartilhados, de acordo com a professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC), Raquel Machado. Em Fortaleza, contudo, isso ainda não é pauta.

“O atual Regimento Interno da Casa, que entrou em vigor neste ano (após aprovação em dezembro de 2020, a primeira mudança em nove anos), legisla exclusivamente sobre o que determina a Justiça Eleitoral, não podendo extrapolar questões que não foram regulamentadas”, diz o presidente do Legislativo. 

“As mudanças desse entendimento cabem à esfera federal. A Câmara Municipal de Fortaleza se compromete a fazer cumprir quaisquer outras regras que passem por atualização pelo Poder Judiciário. Até lá, a Casa cumprirá a lei”, completa Henrique.

Por isso, de acordo com o primeiro vice-presidente da Câmara, Adail Júnior (PDT), não há previsão de que Lila e Louise participem, por exemplo, de reuniões do Colégio de Líderes, apenas Adriana. “Não sei como está em nível nacional, mas aqui eu não vejo como mudar isso”, conclui. 

Previsão legal 

Apesar de não serem alcançados pela legislação eleitoral, os mandatos e candidaturas coletivas não são proibidos, mas devem atender a alguns requisitos legais para a sua inserção na política institucional, como a existência de um representante oficial diante das decisões legislativas e da urna. Este foi, aliás, o motivo do deferimento do registro da candidatura Nossa Cara pelo Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE).

A Corte reconheceu que o nome de urna “Adriana do Nossa Cara”, registrado pela candidatura, atendia aos requisitos de elegibilidade previstos na legislação. O Ministério Público Eleitoral (MPE) chegou a ajuizar pedido de impugnação, com a justificativa de que a denominação no sistema eletrônico “induziria o eleitor ao erro”.
Indeferimentos nesses moldes podem continuar sendo solicitados aos tribunais dentro do prazo estabelecido pela Justiça Eleitoral enquanto não houver legislação específica sobre o tema.

Fora do período de eleições, as Cortes superiores podem analisar a questão e definir se é constitucional ou não. A decisão passará a valer, no mínimo, apenas no mandato seguinte. Dessa forma, mesmo se for desfavorável aos coletivos, integrantes podem terminar a legislatura na mesma composição. O direito à renúncia é garantido, mas de forma diferente. Caso ocorra, quem assume a cadeira deixada é o primeiro suplente, e não um coparlamentar. Isso acontece porque no sistema proporcional a vaga na Casa Legislativa pertence ao partido, e não ao político eleito.

Desafios partidários 

A falta de previsão legal sobre o tema pode intensificar problemas naturais no cotidiano legislativo. Além do acesso a espaços importantes nas Casas, atritos internos com os próprios partidos e dificuldades no acompanhamento do exercício do mandato tendem a ser acentuados.

“A estrutura política de poder legal, no Brasil, foi montada com base nos partidos. Por isso, existe a questão da fidelidade partidária, por exemplo. Se os componentes do mandato coletivo decidirem por votar sim em uma matéria, mas a sigla decidir pelo não, isso pode causar um conflito dentro da legenda”, explica André Santos, analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). “Essas contradições são naturais, mas devem ficar mais expostas nesses casos”.

Mudanças 

Além dessas questões, a professora da UFC Raquel Machado cita a falta de normas legais para a fiscalização do mandato. Como a legislação não prevê oficialmente a existência dos demais integrantes do coletivo, esses mecanismos recaem apenas sobre o titular, o que pode acabar dificultando o controle legal da dinâmica entre os integrantes.

Para evitar esses possíveis processos de desgaste, a especialista em Direito Eleitoral aponta uma reforma legislativa como caminho, já que esse tipo de mudança deve passar por instâncias federais.

“Essa novidade na política é fruto da criatividade humana, e ela vai sempre além da previsão legal. É tão difícil se candidatar a cargo eletivo no Brasil, que a forma que as pessoas estão encontrando para democratizar essa participação é formando candidaturas coletivas, então a lei tem sempre que se adaptar a essas novas mudanças”, defende.

Propostas de regulamentação na Câmara Federal

PL 4724/2020
Autor: André Figueiredo (PDT-CE)
- Oficializa a existência dos parlamentares (titulares) e dos coparlamentares (demais componentes).
- Se eleitos, formam um grupo de mandato coletivo, regidos por um estatuto do mandato.
- Mantém a obrigação do titular do mandato.
- Limita a cinco componentes.

PL 4475/2020
Autor: João Daniel (PT-SE)
- Autoriza a apresentação do nome do candidato com o do coletivo já no pedido de registro ao TSE.
- Determina que a propaganda eleitoral deve indicar “de forma inequívoca, o candidato registrado e, facultativamente, o grupo ou coletivo social que o apoia e seus apoiadores”.

PEC 379/2017
Autora: Renata Abreu (Podemos-SP)
- Propõe emenda ao Art.14 da Constituição, que autoriza a existência dos mandatos “individuais ou coletivos” no Poder Legislativo.