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Abril Azul: como a política no Ceará tem atuado para garantir direitos de pessoas autistas

O Diário do Nordeste conversou com especialistas, parlamentares e movimentos sociais para entender como e quando o autismo virou bandeira política no Estado

Escrito por Ingrid Campos , ingrid.campos@svm.com.br
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Legenda: Mobilização de pessoas com autismo, familiares e profissionais da área deu coro para as demandas dos PCDs chegarem à política institucional.
Foto: Thiago Gadelha

Até o fim de abril, a Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor) realiza um “mutirão legislativo” para analisar matérias que versam sobre políticas públicas para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA). Na última semana, pelo menos 15 projetos entraram na pauta de discussão da Casa.

O movimento mostra um fortalecimento dessa agenda na política institucional, tendência crescente nos últimos anos. Isso, porque a adesão às demandas de pessoas com deficiência (PCDs) ou com condições específicas de saúde aumentou como um todo na sociedade.

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“A quantidade de pessoas com diagnóstico aumentou, hoje há melhores mecanismos de identificação. Então é natural que essa demanda penetre o Parlamento por meio de movimentos sociais ou parlamentares que tenham vínculo com essa causa”, explica o doutor em Ciência Política Raulino Pessoa Júnior

A mobilização não é nova, mas tem colhido frutos desde a implementação de diretrizes específicas para essa comunidade. É o caso da 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA. Ao considerar autistas como pessoas com deficiência para todos os efeitos legais, amplia o acesso a benefícios e direitos.

Um movimento de ondas. A gente pode dizer que a primeira geração veio a partir dos profissionais que discutiam isso. Depois vieram as famílias e, agora, a gente tem as pessoas autistas debatendo o que é ser pessoa autista e o que significa estar numa sociedade capacitista
Alexandre Mapurunga
Diretor técnico da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (Abraça)

As reivindicações das pessoas autistas têm sido incorporadas por parlamentares e gestores Brasil afora e sendo revertidas em direitos conquistados e em reconhecimentos da identidade e da neurodiversidade, como aponta Alexandre.

“As mudanças que a gente consegue não vêm sem luta (...) nem como um beneplácito da caridade, de pessoas e políticos caridosos que vão ajudar a gente, mas sim da luta dos movimentos sociais que se colocam antes da sociedade e exigem seus direitos humanos”, completa.

Segundo a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), há 10.573 pessoas com autismo em todo o Estado, número contabilizado na plataforma IntegraSUS.

Consolidar para inovar

O avanço em discussão é observado em várias instâncias da política: somente neste ano, por exemplo, 25 projetos sobre o tema foram apresentados na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). 

O volume observado nos quase três meses de trabalhos na Casa é mais da metade das propostas que chegaram ao Parlamento Estadual no mandato passado (2019 - janeiro de 2023): 43. 

O Executivo também tem trabalhado nesse sentido. Na última terça-feira (11), o prefeito de Juazeiro do Norte, Gledson Bezerra (Podemos), assinou um decreto que viabiliza a criação da carteira de identificação da pessoa do espectro autista (CipTEA). 

A iniciativa, que já é adotada em outras cidades cearenses, como Fortaleza, facilita a identificação de pessoas com TEA e evita transtornos com o atendimento prioritário.  

Simultaneamente, é construída a primeira Unidade de Convivência do Autista (UCA) no Ceará pela Prefeitura de Cascavel. A expectativa inicial era de que a obra fosse finalizada em janeiro deste ano, o que não ocorreu. O Diário do Nordeste procurou a Prefeitura para saber da nova previsão e aguarda retorno.

Em uma postagem recente nas redes sociais, o prefeito Tiago Ribeiro (Cidadania) mostrou o andamento das obras:

As iniciativas são comemoradas por famílias com membros neuroatípicos, mas ainda há muito a avançar. O básico ainda falta, o que impede que autistas acessem serviços essenciais para o acompanhamento profissional e tenham qualidade de vida.

É o que aponta a advogada Janielle Severo, mãe de João, de 11 anos, laudado há 8 anos. Ela coordena ações de interlocução política e de suporte às famílias de pessoas com TEA pela Associação Fortaleza Azul desde 2015. 

Mãe atípica (como são chamadas as genitoras de crianças e adolescentes autistas), ela considera bem-vindas novas iniciativas de inclusão, mas alerta que é necessário consolidar as políticas já existentes para garantir o básico.

“Na lei, temos várias garantias, mas a efetivação de políticas públicas para garantir a efetividade dessas leis é que está em falta”, afirma.

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“O que a gente vê na prática, principalmente na área pública, é que não há escolas efetivamente preparadas para fazer uma adaptação para as crianças com necessidade. Às vezes, você não consegue a vaga do seu filho no colégio, falta material adaptado, falta sala multissensorial, falta programa educacional individualizado”, prossegue. 

Apesar da crítica à adaptação dos serviços públicos, Janielle elogia o fato de a Prefeitura de Fortaleza, por exemplo, abrir vaga preferencial para crianças e adolescentes com deficiência e depois para o resto do corpo discente. Mas, em todo o Ceará, ainda há muito a avançar.

Na área da saúde pública, a situação é ainda mais grave. Com base em protocolos da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), os profissionais da atenção básica conseguem identificar os sinais de TEA já em crianças entre seis e 18 meses de idade.

Contudo, o laudo só sai após extensa avaliação de um neuropediatra, e isso pode demorar até seis anos.

O tempo que você perde até a criança ter a intervenção (médica) não volta mais, é um tempo perdido em que ela teria uma maior possibilidade de ter ganhos que impactariam positivamente em toda a sua vida
Janielle Severo
Associação Fortaleza Azul

Mutirão na Câmara

Pensando em dar força às ações de fiscalização dos serviços públicos e a novos projetos para pessoas com TEA, a Câmara Municipal de Fortaleza instalou a frente parlamentar citada no início da reportagem. As áreas de saúde e de educação também foram apontadas como prioritárias pelo vereador Márcio Martins (Solidariedade), presidente do grupo e articulador do mutirão em curso na Casa.

Além dos encontros internos, os vereadores realizam reuniões com associações, organizações não governamentais (ONGs) e membros do Ministério Público do Ceará (MPCE), da Defensoria Pública do Estado e de entidades representativas da indústria e do comércio.

Em uma das visitas de campo, colheu demandas das famílias de crianças com TEA que giravam em torno da oferta de neuropsiquiatras na rede pública de saúde e de mediadores escolares e cuidadores nas escolas. 

“A prefeitura alega – não concordo e rebato –, que não tem mais profissionais na rede porque eles não existem no mercado. Escuto isso há seis anos, desde que me tornei vereador. Então se não tem, capacita, estimula! Quem está em outra área, tem que ter atrativos para ser neuropediatra”, disse Martins. 

Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da capital cearense informou que oferta atendimento em neurologia adulto e infantil, por meio da rede contratualizada. "Somente em janeiro e fevereiro de 2023, foram realizadas 1.751 consultas nesta especialidade em crianças e adolescentes até 16 anos", completa.

Algumas das demandas recebidas das pessoas autistas são contempladas nos projetos que devem ser apreciados no mutirão do Parlamento Municipal até o fim do mês. 

Questões de gênero  

O peso da luta por melhorias é mais forte para as mulheres, já que, após o diagnóstico, boa parte tende a cuidar sozinha dos filhos por abandono dos cônjuges, entre outras questões, como aponta Janielle Severo, da Associação Fortaleza Azul.

“A gente começa a perceber que, na maioria dos casos, é a mulher quem precisa deixar o seu trabalho de lado. Muitas vezes, os casamentos acabam depois que vem o diagnóstico. Temos situações em que o pai abandona as crianças em termos materiais e emocionais”, relata a advogada. 

Em vários casos, o resultado são mães sobrecarregadas, restritas ao lar e impedidas de manter uma fonte de renda, que pagaria, inclusive, o tratamento do(s) filho(s) com deficiência. 

“Não raro vemos mulheres que entram em quadros de depressão. Existe o medo de morrer e deixar os filhos de forma mais acentuada nas mães atípicas”, explica.

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Para ela, só em oferecer o atendimento adequado aos autistas na saúde e na educação já possibilita uma melhora nesse cenário. Para oferecer o suporte necessário, é preciso especializar o atendimento, a fim de oferecer uma “teia de apoio na rede pública”.

É o que diz a deputada estadual Juliana Lucena (PT), ao citar o projeto de indicação 98/2023, que visa a criação e a implantação de unidades de clínicas-escola, como centros especializados, de atendimento integral para pessoas com TEA e pessoas com Síndrome de Down, nas macrorregiões do Ceará. 

“A defesa da mulher se dá no olhar coletivo. Nós, mulheres, precisamos ser voz de todas e isso inclui as mães atípicas. Muitas são acometidas pela falta de autocuidado ou até mesmo pelas doenças psicossomáticas… Em grande parte, sofrem por caminhar sozinhas. O título de mãe guerreira vai de encontro ao de mãe sobrecarregada”, observa. 

Não à toa, é notável quando uma mãe atípica alcança cargos eletivos. É o caso da deputada estadual Luana Ribeiro (Cidadania), que está no seu primeiro mandato. Mãe de Tomás, uma criança autista, ela divide a parentalidade com o prefeito de Cascavel, Tiago Ribeiro.

O Diário do Nordeste procurou a parlamentar, durante alguns dias, para conversar sobre a sua experiência e sua expectativa sobre esse tema na política, mas não conseguiu retorno.

Além de todas as políticas públicas possíveis e necessárias, Janielle indica um caminho que pode ajudar as pessoas com autismo: empatia. Entender a neurodiversidade, respeitar as vivências e oferecer ajuda, por menor que seja, torna a experiência de PCDs muito mais adequada a um mundo capacitista. 

Matéria atualizada às 9h40 de quarta-feira (19) para incluir resposta da SMS

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