Projeto de integração da Transnordestina com ferrovia Norte-Sul está parado há 12 anos; entenda impacto

Escoamento de produção de grãos do Centro-Oeste poderia sair pelo Pecém, mas falta investimento

Escrito por Paloma Vargas , paloma.vargas@svm.com.br
Ferrovia Transnordestina
Legenda: A ferrovia Transnordestina deve concluir a fase 1 até 2027, quando se dará o início da sua operação
Foto: Kid Junior

A ferrovia Transnordestina, que tem a expectativa de concluir a fase 1 até 2027, com o início da sua operação, terá extensão total de 1.206 quilômetros. A obra já foi motivo de muitas discussões e impasses, inclusive com a retirada e depois a volta de um trecho do projeto, que é visto popularmente como o braço da ferrovia em Pernambuco, que cria um ramal para o Porto de Suape.

Agora, a obra está ocorrendo no Ceará, onde terá ligação para escoamento de produção no Porto do Pecém. Porém, é o fato dela começar no “meio do Piauí”, mais precisamente na cidade de Eliseu Martins, que vem chamando a atenção de especialistas em desenvolvimento regional, como a economista Tania Bacelar.

Ela, que é uma das vozes mais reconhecidas por seu trabalho como ex-diretora da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), ex-secretária nacional de Políticas Regionais e sócia da Ceplan Consultoria Econômica, afirma que a Transnordestina "deveria ter sempre sido pensada e construída com uma ligação na Ferrovia Norte-Sul (FNS)".

O projeto da Transnordestina deveria ter sido pensado começando da Norte-Sul e não do meio do Piauí. Então, para mim, está faltando um pedaço nesse projeto, está faltando o início".
Tania Bacelar
economista, especialista em desenvolvimento regional

Vale lembrar que esse trecho possui estudo há 12 anos, mas que nunca saiu do papel e parece não ter prazo para ocorrer.

A economista comenta que a Bahia está fazendo a Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste) - que ligará o porto de Ilhéus a Figueirópolis, em Tocantins, ponto em que se conectará com a FNS. Com isso, de acordo com projetos existentes, poderá ocorrer escoamento de produção, no futuro, pelo Oceano Pacífico (caso essas ferrovias se conectem com ferrovias de outros países, como Peru e Colômbia. 

Negócio da China

"Esse caminho, inclusive, interessa à China. Isso porque a China vai entrar na América do Sul por aqui. Então, avalio como certa essa movimentação da Bahia. Esse é um projeto muito importante", afirma.

Por conta disso, Tania afirma não entender os motivos de deixar a Transnordestina isolada da malha ferroviária brasileira. "O fluxo de mercadorias (produção de grãos do Centro-Oeste) já sobe, hoje, reto pela Norte-Sul, saindo pelo porto do Maranhão e com a ligação com a Transnordestina, se puxa para dois pontos importantes do Nordeste oriental".

A economista ainda aponta um caminho que ela considera "inverso", quando se faz a ferrovia pensada pelo olhar do Porto e não o contrário. Além disso, houve a retirada, por um tempo, do projeto original da parte que passa pelo estado de Pernambuco e vai até o Porto de Suape, no mesmo estado.

Veja também

"Pernambuco não se rendeu a essa decisão de não ter a sua parte (da Transnordestina), que tem em Suape um porto e também um distrito industrial, está resistindo e conseguiu reverter isso com o Governo Federal, mas tudo é um grande desafio", diz Tania.

A especialista ainda pondera que levar a ferrovia até o Pecém também é um grande desafio por conta do financiamento. 

"A discussão é: tem quem financie, tem atividade econômica que suporte isso? Então o primeiro cenário é que vá até Pecém e depois teremos que ver se teremos lucidez para levá-la até o FNS e até Suape. Esse segundo trecho, Pernambuco continua segurando e falando, mas a ligação com a Norte-Sul, não vejo ninguém falar". 

A economista ainda reforça que defende essa ligação porque quando olha para a obra da Fiol, ela tem essa dimensão de ligações e interligações. "Além disso, as cargas da Fiol são grãos e minério, mas não são as mesmas da Transnordestina, então comporta no Nordeste ter as duas, uma não é concorrente da outra", pontua.

Ferrovia Transnordestina
Legenda: No Ceará, a obra terá ligação para escoamento de produção no Porto do Pecém
Foto: Kid Junior

Para poder ser competitivo, precisa investimento

Heitor Studart, coordenador do Núcleo de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), afirma estar faltando investimento para que a malha ferroviária brasileira seja competitiva. Segundo ele, mesmo com a falta de investimento dos governos há mais de 30 anos e o Brasil priorizando o transporte rodoviário (que representa atualmente 67%), o País é o sexto em movimentação de carga ferroviária no mundo e o nono em extensão de malha ferroviária, também no mundo.

Agora, 40% dessa malha está completamente abandonada, por falta de investimento e as interligações não são efetivadas."
Heitor Studart
coordenador do Núcleo de Infraestrutura da Fiec

Sobre a Transnordestina começar "no meio do Piauí", Studart comenta que isso não é um problema, já que esse ponto inicial está, segundo ele, a cerca de 400 quilômetros da FNS, o que pode ser ligado por transporte rodoviário.

"Para uma ferrovia funcionar bem, por outro lado, precisa a malha rodoviária também estar funcionando bem. A pesquisa da Confederação Nacional de Transporte (CNT) aponta que de 67 a 75% das rodovias do País estão em condições regulares, ruins ou péssimas. Isso já vem há mais de 20 anos e ninguém sai disso. Se não tem dinheiro público para recuperar, imagina para ampliar e criar novas rodovias".

Nesse ponto, o especialista aponta como solução as parcerias público-privadas (PPPs). "As ferrovias estão andando no Brasil muito por isso, pelas antecipações das renovações das concessões e pelas obrigações de investimentos. As obras da Fiol e da Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste) são exemplos disso".

Ferrovia Transnordestina
Legenda: Segundo Heitor Studart, coordenador do Núcleo de Infraestrutura da Fiec, falta investimento para que a malha ferroviária brasileira seja competitiva
Foto: Kid Junior

Interligação com modal rodoviário é essencial

Para não precisar aguardar a ligação da Transnordestina (TLSA) com a FNS, Studart destaca que a BR-020 pode ser uma solução. "Pouco se fala, mas talvez esse seja o principal eixo de interligação produtivo com os portos do Pecém e do Mucuripe". 

O especialista em infraestrutura reforça que a BR-020 diminui em cerca de mil quilômetros a distância daqui com o Centro-Oeste e Sudeste, e isso tem impacto direto no preço do frete.

"Mas o problema é que essa rodovia não tem um investimento previsto. Não é de construção, porque ela já está implantada, mas é de melhorias, adequação, alargamento, criação de faixa-extra e de faixas de acostamento e paradas. Então, volto a dizer, o sistema de interligação existe, o que falta é um planejamento específico e investimento, em resumo".

Questionado sobre o que seria mais barato, se fazer a ligação ferroviária, levando a Transnordestina até a Norte-Sul ou as melhorias na rodovia, Studart é taxativo: "Não dá para pensar no que é mais barato, é preciso pensar que é necessário fazer os dois, porque um modal não funciona bem sem o outro. Todas essas obras são de fundamental importância".

Legenda: A Transnordestina Logística S/A (TLSA) afirmou que "é favorável a uma possível ligação com a Norte-Sul"
Foto: Kid Junior

Escoamento de safra de outras regiões do país poderia ser mais rápido pelo Pecém

Heitor Studart revela que foi a pressão dos produtores de grãos do Centro-Oeste que fizeram com que a Ferrovia Norte-Sul tivesse a obra concluída. "Isso porque, um caminhão, mesmo pegando a Fiol para exportar pelo Porto de Santos (SP), pode esperar cerca de 40 dias para poder carregar um navio. Sabemos que são cerca de 3 mil caminhões na fila lá". 

Assim, ele explica que, mesmo agora, essa produção escoando pelo Porto de Itaqui (MA) não conseguiria atender esse volume de produção e exportação na sua totalidade pelo seu tamanho e capacidade.

Fazendo essa ligação com a Transnordestina, seja ferroviária ou rodoviária, parte vem para o Pecém e isso seria um porto ajudando o outro. Os dois teriam todas as condições de atender essa produção e isso gera economia também para o nosso estado".
Heitor Studart
coordenador do Núcleo de Infraestrutura da Fiec

Ferrovia Transnordestina
Legenda: Para a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), a interligação futura entre a Transnordestina e a Ferrovia Norte-Sul é um caminho natural
Foto: Kid Junior

De que forma ligação ferroviária pode ser feita?

Procurada pela reportagem, a Transnordestina Logística S/A (TLSA), empresa do Grupo CSN, responsável pela construção e operação da Ferrovia Nova Transnordestina, afirmou por meio de sua assessoria de comunicação que "é favorável a uma possível ligação com a Norte-Sul". "Porém, nosso foco é mesmo o projeto atual".

Para o diretor-presidente da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Davi Barreto, a interligação futura entre a Transnordestina e a Ferrovia Norte-Sul é um caminho natural.

É necessário, contudo, que o primeiro passo seja concentrar os esforços e os recursos disponíveis no projeto atual, para que as obras continuem com a tração que está para a conclusão dentro do prazo da primeira ligação, entre o Piauí e o Porto de Pecém. Paralelamente, e agora com a participação do setor público, a finalização do ramal até Suape. A conexão com a Norte-Sul deve vir em um segundo momento".
Davi Barreto
diretor-presidente da ANTF

Já o coordenador do Núcleo de Infraestrutura da Fiec, reforça que, com o estudo já existente, outra empresa que tiver interesse em executar o projeto pode se valer das Debêntures de Infraestrutura (criadas pela Lei nº 14.801/24) e das autorizações ferroviárias.

"O setor privado interessado em explorar essa malha encaminha um projeto técnico para a Infra S.A. (empresa pública, sob a forma de sociedade por ações, controlada pela União através do Ministério da Infraestrutura, com foco na prestação de serviços de planejamento, estruturação de projetos, engenharia e inovação para o setor de transportes), pedindo autorização para construir e uma concessão por 30 anos. Assim se responsabiliza por tudo, construção, licenciamentos e o governo em contrapartida concede essa exploração. Se tá feita a concessão, está feita a ligação. Como eu disse, tendo investimento, tem ferrovia".

Ferrovia Transnordestina
Legenda: A ANTF destaca que a região Nordeste vem recebendo investimentos significativos, tanto para a Transnordestina, uma das maiores obras de infraestrutura em andamento atualmente no Brasil, quanto para a Fiol
Foto: Kid Junior

Entenda o cenário atual do setor ferroviário no Brasil

Segundo a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), desde a desestatização, na década de 1990, as concessionárias ferroviárias de carga investiram quase R$ 170 bilhões em toda a rede, o que fez com que a produção crescesse mais que 150% e a movimentação dobrasse.

Hoje, as ferrovias associadas à ANTF transportam 530 milhões de toneladas por ano, 95% de todo o transporte de minério e a quase metade do transporte de grãos. No entanto, de acordo com Davi Barreto, diretor-presidente da ANTF, poucos investimentos públicos foram feitos nesse período de forma a aumentar a extensão da malha. 

"Alguns investimentos aconteceram, de fato, como a Fiol e a continuação e conclusão da Ferrovia Norte-Sul. Sem dúvida, foram investimentos muito importantes para a interligação de toda a malha do país: com a conclusão da Norte-Sul — após a concessão para o setor privado —, finalmente há uma solução que interliga os portos de Itaqui, no Maranhão, ao de Santos, em São Paulo. Isso permite às cargas do Centro-Oeste brasileiro diferentes alternativas logísticas, a depender de suas características. Contudo, existe, sim, ainda, bastante espaço para modernizar e aumentar a interligação e a extensão de todo o sistema ferroviário de cargas brasileiro".

Ele pondera que apesar dos grandes investimentos feitos pelo setor, e além dos R$ 170 bilhões mencionados, estão programados para os próximos três anos mais de R$ 50 bilhões em recursos privados das próprias concessionárias. 

"Ainda assim, muito precisa ser feito. O fato é que a ferrovia é um modo de transporte de investimento intensivo. Novas ferrovias (“greenfield”) demandam muito capital, que têm retorno de longuíssimo prazo. Mas se o nosso setor demanda muito investimento, ao mesmo tempo, ele traz inúmeros benefícios quando comparado com o modo rodoviário: por exemplo, redução do preço de frete, aumento expressivo da eficiência e segurança da operação, diminuição do número de acidentes nas estradas e, cada vez mais importante, das emissões de gases do efeito estufa. Em resumo, é um investimento alto, mas que se compensa no longo prazo".

Sobre desafios, Barreto aponta que é fundamental uma participação pública mais efetiva, já que atualmente mais de 95% dos investimentos nas ferrovias brasileiras são feitos pela iniciativa privada. 

O setor público tem que participar mais desse processo, seja por meio de aportes, incentivos, financiamento, e também por meio de novas concessões e Parcerias Público-Privadas".
Davi Barreto
diretor-presidente da ANTF

Quando se fala em Nordeste no setor ferroviário, o diretor-presidente da ANTF ainda destaca que a região vem recebendo investimentos significativos, tanto para a Transnordestina, que ele considera uma das maiores obras de infraestrutura em andamento atualmente no Brasil, quanto para a Fiol.

"Esses e outros projetos na região têm que ser incentivados e impulsionados tanto pelo setor público quanto pelo privado", sinaliza Barreto.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Infra S.A. foram procuradas pela reportagem mas não se manifestaram sobre o assunto até o fechamento desta matéria.

Newsletter

Escolha suas newsletters favoritas e mantenha-se informado
Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados