'Não falta alimento, mas é preciso renda para combater a fome no Brasil', diz representante da ONU

Entenda a origem desse problema, as possíveis soluções e leia entrevista com Gustavo Chianca

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Especialista
Legenda: O representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Gustavo Chianca, fala do aumento da fome e da desnutrição no Brasil
Foto: FAO / Divulgação

A fome é um problema ocasionado pelos altos níveis de desigualdades estruturais (racial, de gênero e regional) que marcaram a formação da sociedade brasileira. Contudo, as combinações trágicas da pandemia de Covid-19, questões climáticas, guerra e conflitos mundiais agravaram a situação dos mais vulneráveis, conforme mostrado na primeira parte desta reportagem.

No Brasil, as consequências disso, como o desemprego e a inflação dos alimentos, arrastaram milhões de brasileiros para a fome e para a insegurança alimentar. Recentemente, a queda do custo da energia e dos combustíveis até aliviaram o bolso da classe média, mas essa redução não chega aos mais pobres. 

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Essa conjuntura econômica afetou todo o planeta, mas, no Brasil, especialistas apontam ter faltado manejo das políticas públicas para atender a essa população, além do enfraquecimento das já existentes, dentre elas:

  • Extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Órgão consultivo atrelado à Presidência da República, criado em 1993, pelo então presidente Itamar Franco. Em 1995, foi revogado no governo Fernando Henrique Cardoso. Já em 2003, foi reorganizado pelo ex-presidente Lula (PT), mas o governo Bolsonaro (PL) extinguiu a instituição há três anos;
  • Em 2019, houve a redução do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) a apenas uma secretaria do Ministério da Cidadania, fruto da fusão de Desenvolvimento Social, Cultura e Esportes; 
  • Redução do repasse de programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar “Alimenta Brasil”. Segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura e um dos responsáveis pelo programa, o número de unidade recebedoras de doação de alimentos caiu 1,7 mil em 2020 para apenas 104 em 2021. 

Diário do Nordeste enviou e-mail e ligou para o Ministério da Cidadania para saber quais medidas estão sendo adotadas para resolver as questões citadas, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. 

O que precisa ser feito para acabar com a fome? 

A economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Natália Cecília de França, destaca ser necessária a adoção de medidas integradas de curto e longo prazos em várias áreas.

"Quem tem fome tem pressa. Então, deve-se atuar em políticas que forneçam o alívio imediato da situação de insegurança alimentar grave”, enfatiza. São medidas apontadas pela especialista: 

  • Criação e o fortalecimento de programas de transferência de renda;
  • Programas para arrecadar alimentos (e evitar o desperdício) e fazer a doação para necessitados (um exemplo é o Programa Mais Nutrição no Ceará);
  • Programas estruturantes que forneçam condições para as pessoas saírem da situação de pobreza. Por exemplo, investindo em educação (as condicionalidades dos programas de transferência de renda auxiliam nesse quesito) e melhorando o Sistema Único de Saúde (SUS);
  • Uma estrutura que incentive a produção de alimentos saudáveis. Isso pode ser feito tributando a produção de alimentos não saudáveis e subsidiando a produção daqueles saudáveis (como frutas, verduras e legumes);
  • Redução de barreiras comerciais para alimentos nutritivos.

Atualmente, alguns estados enquadram os ultraprocessados como produtos da cesta básica (como macarrão instantâneo e a salsicha), possibilitando a isenção ou a redução da alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Não é o caso do Ceará

Segundo a Secretaria da Fazenda do Estado (Sefaz), a cesta cearense é composta de mais de 60 itens, incluindo arroz, açúcar, café, carne bovina, farinha, material escolar, itens de higiene pessoal e outros.

“Esses artigos apresentam uma carga tributária reduzida, com alíquotas do ICMS de 7% e 12%. Alguns são isentos, como é o caso da sardinha e do atum enlatados. Frango, ovos e leite 'in natura' resfriado ou pasteurizado também têm o imposto zerado nas operações de saídas internas”, informou a pasta. Todavia, a salsicha é considerada item básico se for industrializada aqui no Ceará. Nesse caso, a taxa de 18% cai para 7%.

Para a economista Natália Cecília, se nada for feito para estancar a insegurança alimentar, poderá haver um aumento das tensões sociais ao redor do globo. Nesse contexto, as pessoas podem migrar para outros países para fugir da fome e da miséria. 

“Sentir fome é uma violação dos direitos humanos. O impacto negativo para as futuras gerações mostra a necessidade de mudanças significativas referentes ao sistema alimentar e na condição de vida e de saúde da população que vivencia um agravamento da extrema pobreza”, reforça.  

“Não falta alimento, falta renda”

O representante adjunto da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Gustavo Chianca, explica como frear a disseminação da fome no Brasil. Leia entrevista:

Diário do Nordeste -  Os brasileiros de faixas de renda mais baixas estão sendo obrigados a consumir mais ultraprocessados diante do aumento da inflação. Consequentemente, houve um aumento da obesidade. Como chegamos a esse ponto?

Gustavo Chianca - O primeiro ponto que gostaria de destacar é que precisamos acabar com essa ideia de que a obesidade é o oposto da fome, porque tanto a fome quanto a insegurança alimentar podem aumentar o risco de obesidade. Isso pode parecer um paradoxo, mas o alto custo dos alimentos nutritivos e o estresse de viver com insegurança alimentar ajudam a explicar por que famílias com insegurança alimentar podem estar em maior risco de má nutrição (desnutrição e obesidade).

Evidências mais recentes disponíveis sugerem que o número de pessoas incapazes de pagar uma dieta saudável em todo o mundo aumentou para quase 3,1 bilhões em 2021, o que reflete o impacto do aumento dos preços dos alimentos durante a pandemia. Essa realidade preocupa, e decorre, principalmente, do que chamamos de “tempestade perfeita”. Existem quatro causas principais da fome: conflitos armados, choques climáticos, choques econômicos e choques sanitários, e estes quatro fatores estão acontecendo ao mesmo tempo em alguns lugares do mundo.

DN - Diante dos últimos acontecimentos, como essa face da fome tem se redesenhado no Brasil, no Nordeste e no Ceará? 

GC -  Não só no Nordeste, mas em todo o País, os fatores que aumentaram a insegurança alimentar são os que mencionei anteriormente. Durante a pandemia, muitas famílias perderam seus empregos ou ficaram impossibilitadas de trabalhar no mercado informal e foram levadas à situação de extrema pobreza. Como resultado, a perda do poder de compra impactou diretamente o acesso destas pessoas a alimentos. Há alguns anos, principalmente antes da pandemia, nós tínhamos uma realidade diferente de insegurança alimentar no Brasil.

Acho que o mais importante agora é olharmos para todos os quatro fatores (conflitos armados, choques climáticos, choques econômicos e choques sanitários) que enfrentamos, e traçarmos um plano para o futuro com comprometimento de todos os atores da cadeia, incluindo governos a nível federal, estadual e municipal, sociedade civil, setor privado, entre outros. 

DN - Segundo relatório da rede Penssan, atualmente, 33,1 milhões de brasileiros convivem com a fome. Por que o Brasil, um dos principais produtores de alimentos no mundo, ainda tem gente com fome?

GC - 

Em todo o País, a fome não acontece por falta de alimentos, mas sim por falta de renda para adquiri-los. Nós não temos um problema derivado da produção, mas sim da pobreza (e desigualdade). Por outro lado, sob a perspectiva da produção agrícola, existe o desafio de produzir alimentos saudáveis a um custo mais baixo.

Na América Latina, somos 650 milhões, e produzimos o suficiente para 1,3 bilhão de pessoas se alimentarem, ou seja, é um problema gerado pela pobreza e desigualdade, e essa situação acaba refletindo no aumento dos números.

Um outro estudo da FAO também mostra que os países da América Latina e do Caribe crescerão apenas 2,5% em 2022 e 2023.

Por um lado, o menor crescimento fará com que a região perca participação na economia global. Por outro lado, temos a inflação estimada para 2022 na América Latina e no Caribe em 5,7% para economias avançadas, como a do Brasil, e 8% para economias emergentes. Menor crescimento e renda da população, e maior inflação e aumento dos preços dos alimentos é uma conta que não fecha, e por isso ainda podemos ver este aumento da fome.

DN - Quais políticas públicas precisam ser aprimoradas e criadas para mudar essa realidade?

GC - Os impactos da pandemia foram devastadores, e algumas medidas, como o Auxílio Emergencial, entregue pelo governo brasileiro em 2021, apesar de ter sido uma ajuda importante às famílias que tiveram seus rendimentos comprometidos pelas medidas de prevenção, não foi suficiente para reverter este cenário. Programas como o "Auxílio Brasil" [substituto do Bolsa Família] precisam ser ampliados, pois aumentam a capacidade das famílias de adquirir alimentos e ajudam a reduzir o problema da fome.

Outro programa importante do Brasil é o de alimentação escolar, pois garante alimentos aos estudantes. Com a queda na renda das famílias, a elevação no custo dos alimentos e o desemprego em alta, os programas de alimentação escolar fornecem alimentos que contribuem para a segurança alimentar de milhões de famílias.

Quando esses programas são vinculados a compras públicas institucionais, eles adquirem ainda o papel de fomentar as economias locais gerando renda para agricultores que comercializam suas produções para as escolas. Isso também contribui para a segurança alimentar e o combate à fome no campo, que também é um problema grave a ser combatido.

DN - Se nada for feito, o que podemos esperar para 2023 e para os próximos anos?

GC - Estamos há alguns anos do fim das metas da "Agenda 2030" [plano global para alcançar o desenvolvimento sustentável], e infelizmente o cenário global não é animador. As projeções mundiais são de que cerca de 670 milhões de pessoas ainda enfrentarão fome em 2030 – 8% da população mundial –, o mesmo que em 2015, quando a "Agenda 2030" foi lançada.

Estamos vivendo um momento diferente de qualquer outro na história, e fomos duramente golpeados pela pandemia de Covid-19, que ampliou muitas desigualdades. Além disso, muitos países sofreram economicamente e ainda não conseguiram se recuperar. Somado a isso, esses países passaram a sofrer com os impactos da guerra da Rússia contra a Ucrânia.

No entanto, gostaria de ressaltar que acreditamos que o Brasil sabe como fazer para erradicar a fome a partir de experiências anteriores. O país tem as ferramentas e conhecimento necessários para alcançar este objetivo.
Gustavo Chianca
representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)

 

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