Matriculados na pandemia, universitários estudam até 3 semestres sem a experiência da aula presencial
Os efeitos da crise geral impulsionada pela pandemia, no contexto da educação, vão desde deficiências na formação acadêmica a prejuízos à saúde mental de estudantes e professores
Universidade é tempo de novidade, descobertas sobre si, o outro e o mundo. De crescimento, principalmente no primeiro ano. Para alguns jovens, porém, esse universo ainda é desconhecido: está à parte, do outro lado das telas do ensino remoto, desde 2020.
As expectativas pela “vida universitária que as pessoas tanto falam” estão represadas na rotina de Rodrigo Maciel, 19, há três semestres: o estudante ingressou no curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2020.2, mas “nem conhece como é o prédio da UFC”.
A gente passa o ensino médio inteiro imaginando o local, como vai ser tudo. Aí se frustra. Muitos colegas dizem que não se sentem universitários ainda, que só no presencial a faculdade vai começar de verdade.
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Além da lacuna de interação com colegas e professores, de viver os corredores e espaços da universidade, Rodrigo aponta a “falta de separação entre o local de estudo e de casa” como um dos fatores mais “exaustivos” do prolongado período de aulas online, causando desmotivação – e ansiedade para a chegada de 2022.
“Quero criar relações mais profundas com os amigos, com a própria faculdade mesmo. Ter o ritual de sair de casa e ir pra aula. Conhecer o ambiente todo e começar a fazer projetos que não têm como acontecer online”, projeta o estudante.
“Quero viver o que não consegui no EaD”
Viajar para aulas de campo, participar de oficinas, fazer mais amigos, ter mais contato com os professores: “viver realmente bem a universidade com tudo o que ela tem a oferecer”. É assim que Sávila Amancio, 18, resume tudo o que espera realizar no retorno às aulas em 2022.
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A sonhada vaga no curso de Design Digital no campus da UFC em Quixadá, no sertão central cearense, se concretizou em maio deste ano, quando a segunda onda de casos e óbitos por Covid-19 ainda atingia o Estado em todas as regiões – de modo que nenhuma aula foi assistida ainda de dentro das salas.
Tá sendo bem desafiador, manter a rotina não é fácil. E tem a questão da interação também: é só a fotinha no Google Meet, não tem o contato que teria presencialmente, olho no olho.
A falta de compartilhamento de uma rotina presencial impõe uma constante conexão às redes sociais para cultivar as amizades, o que, a essa altura da pandemia, já se tornou incômodo para quem estuda ou trabalha em formato remoto.
“A gente acaba ficando um pouco de saco cheio do whatsapp, de estar muito na frente das telas. Muitas vezes, eu não quero olhar por um bom tempo. Mas preciso. Quando puxo assunto com quem não tenho muito contato, é só sobre atividades, trabalhos, aulas. Fica muito limitado de assunto”, lamenta Sávila.
“É um modelo de ouvir passivo”
A segunda experiência de ingresso no ensino superior veio para Vander Lima, 26, no pico da primeira onda da pandemia, em 2020, quando passou para o curso de Ciências da Computação no campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE) em Maracanaú.
Em 2017, o jovem chegou a iniciar outro curso na UFC, experiência que o permite perceber, de forma ainda mais intensa, as diferenças entre o que é estar na faculdade de forma presencial e remota.
Pra mim, a maior diferença é no ensino: o EaD é um modelo de ouvir passivo, você fica mais desmotivado a ver a aula. Por outro lado, se estimula a pesquisar por conta própria pra compreender o conteúdo.
Vander pontua que a dificuldade de adaptação de alguns professores ao modelo remoto repercute na formação, o que exige um comportamento mais autônomo por parte dos estudantes – característica que acabou por fortalecer o laço entre os integrantes da turma.
“Convivemos bem no remoto, até por ser um pessoal mais novo, mais antenado. Minha maior ansiedade de voltar é pra estar com as pessoas, porque tem um elo muito bom com a turma”, diz.
O jovem reconhece, por outro lado, que precisará ter ainda mais disciplina quando as aulas presenciais voltarem, em Maracanaú: já que mora e trabalha em Fortaleza, uma rotina facilitada pela flexibilidade do ensino remoto.
“Virtual não é a mesma coisa, nunca vai ser”
Os limites marcados pela distância afetam também o aprendizado. Arthur Clemente, 18, ingressou no curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC no início deste ano, e é categórico ao afirmar que o processo de formação e aprendizado é prejudicado pela ausência das atividades in loco.
“Faríamos uma visita ao Centro, numa disciplina, e tivemos que ‘visitar’ virtualmente. Não é a mesma coisa, nunca vai ser. Arquitetura é visual. Dentro de um quarto, sozinho, não consigo, isso atrapalha muito o desenvolvimento, meu crescimento.”, avalia Arthur.
O estudante pontua que “é até difícil” falar sobre o que sente falta, já que ainda não vivenciou o ambiente universitário, mas frisa que os impactos são reais: a maioria das atividades têm sido realizadas em grupo, por videochamadas, para que um colega incentive o outro.
“Acredito que seria muito interessante ter essas vivências, principalmente no começo do curso. Uma coisa que é muito representativa do ingresso na universidade é a calourada: e não vai mais fazer sentido viver quando voltar. Não tem mais o que começar, mas recomeçar”, declara o jovem.
Estudo quer entender impactos da pandemia em universitários
Os efeitos da crise geral impulsionada pela pandemia, no contexto da educação, vão desde deficiências na formação acadêmica a prejuízos à saúde mental de estudantes e professores – e estes últimos serão estudados por um consórcio de instituições de ensino superior brasileiras, incluindo a UFC.
De acordo com Wagner Andriola, professor do Departamento de Fundamentos da Educação da UFC e doutor em Ciências da Educação, um edital da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) está financiando pesquisas para entender esses impactos.
Estamos saturados, cansados, carentes da interação face a face, em sala de aula. As pessoas estão estressadas Já se aproxima o momento de um retorno presencial seguro: isso é parte inerente ao processo de ensino.
O docente reforça que, “no que diz respeito aos alunos, perdem muito, muito, já que é no presencial onde trocamos inúmeras formas de interação, olhares, brincadeiras; e esse ambiente à distância é muito formal e frio”.
A perda para quem está iniciando o processo formativo, segundo Wagner, “é ainda maior”, já que especialmente a faixa etária entre 17 e 18 anos exige mais contato, “para incorporar valores, visões de mundo”. “Tivemos muitos casos de evasão de quem não suporta esse distanciamento”, lamenta o professor.
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A prioridade no retorno às atividades presenciais, então, é cuidar da saúde: física e mental. “Todos devem estar vacinados, seguindo os protocolos. E teremos que ser como uma casa de avó, que acolhe todo mundo. Precisamos de afeto e políticas de assistência internas para manter os estudantes conosco”, salienta Wagner.
Retorno às universidades em 2022
No Ceará, as instituições públicas de ensino superior devem retomar as atividades presenciais de forma integral a partir de 2022. Todas condicionam a volta ao avanço da vacinação e à melhoria dos indicadores da Covid-19 no Ceará.
Na Universidade Federal do Ceará (UFC), já foi iniciada a transição gradual para o formato presencial, mas as atividades acadêmicas só devem acontecer integralmente nos campi a partir de 2022, “caso os índices da covid-19 continuem em declínio e o ciclo de vacinação da comunidade universitária se complete”, frisa a instituição.
No IFCE, o retorno gradual já está em curso, na fase 1, com “atividades esporádicas sendo realizadas presencialmente”. A volta integral está prevista para 4 de janeiro do ano que vem, mas “data de cada fase será deliberada por cada campus”, informou o instituto, em nota.
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Já a Universidade Estadual do Ceará (Uece) “trabalha com a possibilidade de retomada de aulas presenciais em 2022.1, no semestre que se inicia em março”. Mas o assunto “ainda será levado ao debate no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe)”, afirmou a Uece, em nota.
A reportagem questionou as Universidades Federal do Cariri (UFCA) e da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) sobre o retorno às atividades presenciais, e aguarda respostas das instituições.