Sem internet, alunos do Ceará suspendem atividades acadêmicas durante a pandemia

Dificuldades atravessam ainda questões sociais e econômicas, levando universitários a abdicarem dos estudos neste período de ensino remoto. Especialistas evidenciam impactos profundos da evasão universitária

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Legenda: Jennifer Sanye teve que suspender a graduação por dificuldade de acesso às aulas
Foto: Arquivo

Sem computador em casa, com ambiente de estudo inadequado, acesso à internet insuficiente e pouco auxílio da família para seguir com a aprendizagem em ensino remoto, imposta pela pandemia de Covid-19, Jennifer Sanye, 20, se viu gradualmente afastada do ambiente acadêmico. Os desafios enfrentados pela estudante de Engenharia Ambiental do Instituto Federal do Ceará (IFCE) Juazeiro do Norte foram inúmeros, até decidir suspender as disciplinas, ao fim de setembro - realidade similar a de diversos outros universitários cearenses.

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Primeira pessoa da família a ingressar no ensino superior, Jennifer tentou encontrar "todas as alternativas viáveis" para continuar com as aulas. Utilizando o computador emprestado de uma amiga e lidando com a conexão instável de casa, conseguiu concluir duas disciplinas, mas precisou abandonar outras quatro. "É bem complicado. Minha perspectiva está defasada e me abala totalmente, porque é meu sonho, meu futuro aqui e estou estagnada. É como se a cada dia ficasse mais distante uma coisa que lutei tanto para conseguir e luto até hoje", compartilha.

Além de todas as questões estruturais, Jennifer também enfrenta a dificuldade de explicar aos familiares a importância de estar na universidade. "O estudo não é algo imediato e, por conta disso, para algumas pessoas da família, um trabalho estável de carteira assinada é melhor do que estar estudando", comenta. Na antiga rotina, a estudante conseguia manter-se integralmente na universidade - mas, com a pandemia, precisou buscar um emprego.

Apesar de tudo, a futura engenheira ambiental aguarda o recebimento de um tablet do IFCE para tentar se organizar e retomar as aulas, ainda que virtuais. Para além de um conhecimento técnico e crítico na área de engenharia, Jennifer vê o estudo como a abertura de portas para outros caminhos e o voo em direção a novos horizontes.

"O estudo sempre foi algo de mais importante que eu tive. Para mim, entrar no IFCE foi a maior conquista da minha vida", finaliza.

 

 

Mudança

A vontade de ingressar no ensino superior também foi um desejo que motivou a universitária Larissa Costa, 20. Neta de cearenses que se mudaram para o Pará a fim de trabalhar na construção das estradas de ferro, ela cresceu com o contato um pouco distante com o Estado. Foi somente após passar no curso de Humanidades na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em 2019, que a paraense pôde descobrir o amor pelo Ceará.

A jovem se mudou para o município de Redenção em setembro de 2019, onde permaneceu até pouco antes de a pandemia iniciar. "Ter ido para a Unilab para mim, foi uma das experiências mais incríveis que já tive na vida, porque é um lugar muito diverso, encontro pessoas de todo jeito, com pensamento completamente diferente", declara. Por isso, a necessidade de se afastar do universo acadêmico gerou "uma tristeza muito grande". Com dificuldade de acesso à internet em casa e com o aumento da responsabilidade sobre as atividades domésticas, ela não conseguiu se engajar no ensino remoto.

"Eu penso em retornar, mas não faço a mínima ideia de quando vou poder", reconhece Larissa, que depois de passar tantos meses longe de Redenção, precisou vender os pertences que tinha em terras cearenses e buscar um emprego no Pará, para complementar a renda dentro de casa. Apesar de incerto, vê o retorno como um caminho a trilhar assim que possível.

"O ensino superior é fundamental para a formação do pensamento crítico da população, para a produção de conhecimento e também representa uma esperança para os jovens das classes mais baixas de que podem ascender economicamente", compartilha.

Wesbter Belmino, doutor em Educação e professor universitário, avalia que dificuldades estruturais e financeiras estão no topo das motivações para afastamento dos jovens do ensino superior. "As desigualdades de fora da universidade se reproduzem dentro, e a pandemia as aprofundou. Se cursar universidade já é difícil pro jovem trabalhador, ele precisou, com a pandemia, dispor de mais recursos ainda. Sem acesso às aulas presenciais, necessitou de acesso remoto, que exige bons equipamentos e boa conexão. Os filhos da classe média ficaram mais prejudicados", avalia.

O professor acrescenta que o adoecimento emocional também entra na lista de prejuízos aos universitários, e destaca que, na universidade em que leciona, a soma de alunos que abandonaram o semestre passado e que não se matricularam no atual é expressiva.

"Se não revertermos essa situação, o avanço que se teve há cerca de quatro anos vai desaparecer. A população jovem continua aumentando, mas a oferta de vagas públicas ou de financiamento nas universidades privadas não acompanha isso. Podemos voltar a ter índices de acesso ao ensino superior como no fim do século passado", lamenta.

Direitos

Segundo a advogada e presidente da Comissão de Educação Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE), Vanessa Oliveira, neste cenário da pandemia cabe ao Estado "garantir o acesso aos estudantes que estão sendo forçados a suspender o processo de estudos universitários pela falta de acesso à internet ou por não dispor de equipamentos tecnológicos essenciais ao estudo remoto".

A garantia, observa Vanessa, ocorre desenvolvendo ações de suporte que atendam às necessidades dos estudantes universitários incapacitados de continuar os estudos remotos, como o Auxílio de Inclusão Digital.

O advogado e membro da Comissão Estadual de Educação Jurídica da OAB/CE, Francisco das Chagas da Silva, também reforça a necessidade de instituições superiores públicas desenvolverem procedimentos, "por meio de políticas públicas ou medidas pontuais da respectiva instituição" para garantir o acesso.

Efeitos

Para reduzir os impactos da pandemia e garantir a permanência dos estudantes nas universidades, instituições como as Universidades Federal do Ceará (UFC), Federal do Cariri (UFCA), Estadual do Ceará (Uece), Estadual Vale do Acaraú (UVA), Unilab e IFCE realizaram uma série de ações, como a distribuição de chips de internet, tablets, computadores e auxílios financeiros no período. O objetivo principal tem sido facilitar o acesso às aulas realizadas de modo remoto.

Na UFC, de acordo com a instituição, 1.459 chips de internet foram entregues a estudantes dos campi, dos quais 298 foram para o interior. Houve ainda distribuição de 122 celulares doados pela Receita Federal do Brasil. Um auxílio-inclusão digital de R$ 1,5 mil para a compra de notebooks ou tablets por alunos beneficiou 1.960 estudantes, sendo 394 do interior.

Na Unilab, 1.901 estudantes foram beneficiados com auxílios ativos no Programa de Assistência Estudantil (Paes); 1.490 chips foram comprados para aqueles em situação de maior vulnerabilidade, devendo ser entregues em dezembro. Nesse mesmo período também serão distribuídos 1.200 tablets.

O Instituto Federal do Ceará (IFCE), adquiriu aproximadamente 5.600 tablets e realizou a entrega de 3.970 para estudantes da graduação e ensino médio de todo o Estado. Pelo menos 514 aparelhos foram entregues em Fortaleza, os outros 3.456 seguiram para as unidades do interior.

Conforme a instituição, os aparelhos ficarão com os alunos, mesmo após o período da pandemia. Em relação aos chips de acesso à internet, já foram distribuídos 7.374, enquanto 1.028 se concentraram em Fortaleza.

Na Universidade Estadual do Ceará (Uece), assim como nas demais universidades estaduais (UVA e URCA), "está em curso com uma ação de aquisição e distribuição de chips com dados móveis para auxiliar esses estudantes", aponta a instituição.

Para o professor Webster Belmino, além de todas as medidas do ponto de vista material, que são indispensáveis, outras duas são igualmente importantes. "O acompanhamento socioemocional, de como está a vida desse jovem, e busca ativa, para verificar de que forma está a condição e a frequência de cada um dos alunos, como se faz no ensino básico. São formas de impedir uma evasão ainda maior."

Estudantes compartilham experiências vividas em meio ao cenário da Covid-19, assim como a necessidade de suspender as disciplinas. Falta de acesso à internet e de ambiente de estudo adequado estão entre as dificuldades apontadas

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