Cota racial amplia oportunidades, reduz desigualdades e possibilita reconhecimento étnico no Ceará

Após Lei Estadual nº 17.432, concursos públicos do Ceará passaram a ter 20% das vagas destinadas para participantes negros

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Legenda: Morador do bairro Vila Velha, Matheus se torna referência para jovens negros e periféricos com o ingresso no ensino superior
Foto: Tamara Lopes

As mudanças causadas pelas políticas de cotas raciais são capazes de romper as esferas individuais, refletindo na redução de desigualdades históricas e sociais, apontam cearenses recém-formados após as ações afirmativas. No âmbito dos concursos públicos, a reserva de vagas impacta na ampliação de oportunidades no mercado e no reconhecimento étnico desse grupo, coloca a assistente social e doutora em sociologia, Zelma Madeira.

Desde 25 de março deste ano, conforme a Lei Estadual nº 17.432, os concursos públicos do Ceará passaram a ter 20% das vagas destinadas para participantes negros. A medida já foi inserida nos editais da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE) e da Secretaria da Fazenda (Sefaz).

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O arquiteto Matheus Dias Aguiar, 26 anos, considera que as cotas raciais marcaram uma grande transformação em sua vida por possibilitar o acesso à universidade e à educação em 2014. Foi no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) que se descobriu fotógrafo, artista visual e designer. 

Não só conseguiu ter acesso a temas que o atravessam diariamente, como sexualidade, negritude, e direito à cidade, como percebeu que era possível ocupar distintos espaços. “A universidade me impulsionou a buscar outros caminhos”, coloca. 

Barreiras na permanência e inclusão

Da mesma forma, o agora mestrando em Geografia na UFC, Wesley Anjos, 26 anos, percebe o impacto das cotas raciais por facilitar seu acesso ao ensino superior público, gratuito e de qualidade em 2014. Vindo do município de Cascavel, a cerca de 62 km de Fortaleza, fez parte do primeiro grupo de ingressantes por cotas, também no curso de Arquitetura.

A maioria dos alunos eram majoritariamente brancos, vindos de áreas mais nobres da cidade. Então entraram pessoas negras que moravam na periferia, na Vila Velha, Messejana, Conjunto Ceará e como eu, do interior. Começou a ter uma pluralidade de tons e espaços.
Wesley Anjos
Mestrando em Geografia na UFC

Apesar da política afirmativa de inclusão, Wesley acredita que as cotas auxiliam no acesso, mas não na permanência, uma vez que estudantes precisam conciliar as aulas com trabalhos profissionais e domésticos.

Durante sua graduação, conseguiu concluir os estudos devido às possibilidades das bolsas, auxílios emergenciais, e de permanência na Residência Universitária. No entanto, aponta que nem todos os estudantes conseguem ser contemplados.

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Nessa mesma perspectiva, Matheus considera que ainda há muitos desafios a serem enfrentados, como as fraudes nas cotas e o despreparo das instituições em acolher outro público de estudantes.

“Quando acesso, encontro um corpo docente que não entende a questão financeira dos alunos. As instituições não sabem se relacionar com essas pessoas que chegaram e não sabem receber críticas”, detalha.

Legenda: Wesley Anjos integrou o grupo de estudantes contemplados com a política de cotas no curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC
Foto: Arquivo pessoal

Relevância social das cotas

A doutora em sociologia e atual assessora especial de Acolhimento aos Movimentos Sociais do Estado, Zelma Madeira, vê a recente aprovação das cotas em concursos como resultado de lutas dos movimentos sociais negros desde a década de 1980. Essa trajetória possibilitou meios para a população negra sair de um padrão de vida precário para um bem viver. 

Uma ação afirmativa na modalidade cotas torna menos monocromático o serviço público. Traz potencialidades negras, um olhar diverso sobre políticas setoriais nas instituições. É muito bom porque dá uma concretude à política de igualdade social.
Zelma Madeira
Professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará

Zelma, que também atuou como coordenadora estadual de Políticas Públicas para Igualdade Racial, compartilha a alegria pela conquista enquanto mulher negra e então gestora. “Me senti muito feliz, porque a lei reafirma o compromisso do governador com o grito e com a pauta dos movimentos sociais negros”, coloca. 

Dentre algumas leis conquistadas em decorrência da luta do movimento social negro em busca por direito e igualdade, a socióloga cita:

  • Lei Federal nº 12.990/2014: Reserva aos negros 20%  das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União
  • Lei Estadual nº 16.197/2017: Dispõe sobre a Instituição do Sistema de Cotas nas Instituições de Ensino Superior do Estado do Ceará
  • Lei Estadual nº 17.432/2021: Reserva 20% de cotas para negros em todos os concursos públicos do Ceará 

Referências negras nas áreas

Considerando as violências, como casos de racismo enfrentados durante a graduação, Matheus vê como essencial a existência de um corpo docente plural. Sendo importante tanto para provar que consegue ter acesso a esse campo profissional, quanto para dar exemplo às outras pessoas negras. 

Além de que eu sinto que existe uma outra forma de tratamento, uma pessoa que teve uma vivência parecida com a minha não vai chegar em sala de aula perguntando quem foi para Paris e ficar assustada que ninguém foi.
Matheus Dias
Artista Visual

Desde a Lei Estadual nº 16.197 de 2017, que adota um sistema de cotas étnico-raciais, destinadas a estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas, a Universidade Estadual do Ceará (Uece) já registrou o ingresso de 1.194 por meio da política.

Em relação aos alunos que ingressaram por meio do sistema de cotas do Enem/Sisu, a instituição registra a conclusão do curso de 287 estudantes.

Desafios para aprovação em concurso

No caso da mestranda no Programa de História Social da UFC, Cícera Barbosa, 35 anos, a aprovação em um concurso público ocorreu ainda em 2018, período anterior à nova política de cotas. Para ela, o feito registra uma conquista coletiva.

Legenda: A professora da Rede Estadual acredita que as cotas possibilitam aos jovens negros outras perspectivas e sonhos para o futuro
Foto: Arquivo pessoal

“Foi um sacrifício muito grande, mas não pode ser um mérito pessoal, é um engajamento coletivo”, coloca. Isso se deve porque a jovem contou com uma rede de apoio, carinhosamente intitulada “quilombo de afeto”, para conseguir se firmar e ser aprovada no concurso público.

Sendo de uma família humilde, sem muitos recursos financeiros, Cícera também teve a ajuda do amigo Diego Gadelha, que lhe pagou um cursinho.

Quando eu passei no concurso para ampla concorrência foi a esperança da minha família. Minha mãe ficou nesse discurso “agora eu posso descansar em paz”, porque cumpriu a missão de ter uma filha com estabilidade financeira.
Cícera Barbosa
Professora da Rede Estadual

É devido ao sonho de apontar outros futuros para jovens negros e periféricos que Cícera se volta para o serviço público como professora. “A escola pública é onde estão os meus, onde está a maior parte dos alunos negros e negras, é onde quero que eles superem essa realidade através da educação”, finaliza. 

 

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