Consciência Negra: o longo e duro processo de autoafirmação
Jovens cearenses negros descrevem trajetória até se reconhecerem como partes de uma coletividade, e reforçam a importância de se contar "todos os lados da História" e de enxergar negros e negras em espaços de poder
O processo de se perceber, se conhecer e se entender enquanto parte de uma estrutura maior não é tão simples. Requer tempo. Muitas vezes, nem é de dentro para fora, mas no sentido oposto: requer empatia, conhecimento em relação ao outro e um ambiente favorável. Quando se nasce negro, então, esse percurso é quase sempre regra. Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, jovens negros cearenses descrevem as longas e duras trajetórias da autoafirmação - que tropeçam no racismo, mas não caem; que transformam memórias em luta.
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Para Germano Crisóstomo, 28, a compreensão de que a pele carrega identidade e História só veio há dois anos, no 2018 das eleições presidenciais. Filho de pai preto e mãe branca, o publicitário reconhece que "não ser o chamado preto padrão periférico" o blindou das "dificuldades que o povo preto passa" - mas nunca dos olhares discriminatórios e do bullying racista, compreendidos como violências só muito depois.
"Eu não me reconhecia como homem preto. Mas em 2018, tudo mudou pra mim. Passei a pesquisar mais sobre política, estudar sobre racismo e ver pela internet situações com outras pessoas, e que eu já tinha passado antes, mas nunca associava à minha pele. Foi quando eu me entendi como homem preto e como a sociedade trata pessoas como eu. As pessoas não se importam: pra elas, quanto menos pretos, melhor", critica o jovem.
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Germano aponta o apagamento da cultura do povo negro dentro das disciplinas escolares como um dos fatores que fortalecem a estrutura social racista. "A escola ignora o povo preto como rico e cultural, só estuda como escravo. Não trata Zumbi dos Palmares como herói, não falam de Dandara. Uma criança que chega na aula de História do Brasil e vê os pretos sendo escravizados aprende a não querer ser preta, pra não sofrer racismo", lamenta. Por lei (nº 11.645/2008), o ensino da temática "história e cultura afro-brasileira e indígena" em todo o currículo escolar, de forma ampla e diversa, é obrigatório no País.
Resistir e se entender como homem preto, então, aproximou o publicitário das próprias origens e da luta pelo direito à equidade. "Antes de 2018, eu chegava a criticar as lutas do movimento negro, por não entender como aconteciam. Hoje entendo que toda conquista minha é um manifesto. Eu chegar aos 28 anos é um sinal de luta. Eu ter feito faculdade é uma forma de mostrar que todo preto é capaz. De me tornar, em algum momento, a referência de alguém, como profissional e pessoa".
Representatividade
A invisibilização de referências negras positivas na arte, na educação, na cultura e em todos os âmbitos da sociedade é apontada como um dos fatores que dificultam a autoafirmação, como reforça a universitária Gislyane Félix, 25. "Ver outros pretos em posições de poder foi de extrema importância pra mim. Faltam professores negros. É importante estudar filósofos, ver artistas, arquitetos que pensam sobre a colocação das pessoas negras na cidade. Tudo isso ajuda nessa autoconsciência".
A estudante relata que "a sociedade nunca a deixou esquecer" de que é negra, mas que a consciência política sobre isso veio com a entrada na universidade. "Sempre me via num lugar intermediário entre negra e branca. Uma 'quase-negra'. Mas nunca me deixaram confundir, quando falavam do meu nariz, do meu cabelo. Não me descobri negra enquanto indivíduo, mas dentro da coletividade, ao enxergar que somos muito plurais - que ser negra, mulher negra, mulher lésbica negra, nordestina negra, tudo interfere na vida toda", reflete Gislyane, para quem o Dia da Consciência Negra é símbolo de união.
Já para Diana Melo, 26, que mora na periferia de Fortaleza, 20 de novembro é uma "data de alívio". "É um momento em que a gente para, de fato, pra relembrar a História, a imagem de Zumbi dos Palmares, que libertou o nosso povo do sistema escravista. Dá fôlego de vida, pra gente ver que é possível vencer esse sistema tão racista o tempo todo, estrutural", frisa a universitária, cujo processo de autofortalecimento como mulher preta foi semelhante ao percorrido por Gislyane.
"As pessoas negras não precisam dizer que são pretas, porque a sociedade em si já diz. Ainda criança, mesmo sem compreender sua identidade, você já sabe. Esse processo de autoafirmação é enorme, e começa mais na adolescência, quando você começa a ter a consciência de que é excluída, de que falam do seu cabelo. Na escola, falam da escravidão e você se vê. Nesse momento, comecei a entender quem eu era", rememora Diana - alertando, contudo, que ainda estamos longe de aprender sobre o povo preto, nas carteiras escolares.
"A História ensina o embranquecimento. Não estudamos a África, as riquezas, só a pobreza. Não se fala da alegria, da felicidade, da cultura do preto. Quando fui pra escola pública, comecei a questionar isso. Quando cheguei na universidade, achei que começaria a ler pessoas pretas, mas preciso fazer isso por fora, pra não ler só homens brancos mortos", aponta.
No fim das contas, o apoio do povo preto entre si é força para a luta e, ao mesmo tempo, descanso dela. "A sociedade acha que quando o preto se junta é pra falar mal de branco, mas não. É festa. Só queremos um pouco de descanso. Saímos de casa sabendo que alguém vai falar do nosso cabelo, com a sensação de que tá o tempo todo na defesa. Nossa vida não é só isso. A gente conversa, ri, se diverte e se renova junto".
Educação
Izabel Accioly, antropóloga e professora cearense, endossa: "a negritude não é o que a branquitude acha da gente". A pesquisadora reforça que o Dia da Consciência Negra "é um dia de dar visibilidade às questões problemáticas", mas, principalmente, de dar foco a tudo o que o movimento negro já conseguiu conquistar e ao que a negritude representa. "Esse dia não é só sobre sofrer racismo - ele é a doença dos brancos. Esse dia é sobre cultuar as nossas ancestralidades, conviver com base na comunidade, relembrar quem nós somos e fortalecer nosso pertencimento", enfatiza.
A antropóloga também destaca a educação como caminho contra a discriminação racial e favorável à autoafirmação de crianças, jovens e adultos negros. "Há um mito de que não existe negro no Ceará, por isso não estudamos nossa História. Você já começa achando que não é daqui ou que não é preto. É importante que apresentemos às nossas crianças referenciais desde cedo. Ninguém nasce racista, elas aprendem a ser. O medo do branco é de que ele não seja mais a referência do que é belo e bom. É que o negro saiba o seu valor e não olhe mais a branquitude como referência, mas com olhos analíticos. Por isso eu acredito numa educação antirracista", finaliza.