Resgatar a motivação das crianças para o aprendizado é fundamental, mas processo deve respeitar momentos de socialização e fazer acolhimento emocional do que foi vivenciado no isolamento, diz especialista.
Socialização, aprendizado com pares, alimentação adequada e manutenção de rotina são alguns dos aspectos essenciais da primeira infância que mais estão sendo afetados negativamente pela pandemia de Covid-19. Depois de meses de isolamento social, a volta às aulas em creches e pré-escolas deve ser acompanhada com atenção para garantir a readaptação das crianças à rotina, ao convívio com os colegas e ao aprendizado formal dentro da nova realidade imposta pelos cuidados com o vírus.
“Tem que fazer um processo de readaptação, e todo processo de readaptação tem que ter muita tolerância. É preciso diminuir a expectativa de perfeccionismo”, afirma a professora Maria Beatriz Linhares, membro do Comitê Científico do Núcleo de Ciência Pela Infância (NCPI). Para ela, adaptar-se a um ambiente estranho e coletivo novamente pode ser difícil para algumas crianças, principalmente aquelas com menos de 4 anos. “Ela ficou tanto tempo em casa com os pais disponíveis que, se tudo estava correndo bem, era muito agradável para ela. Voltar para a escola pode ser relacionado a perder essa ligação com os pais”.
Uma pesquisa realizada durante o distanciamento social em Shaanxi, na China, por acadêmicos locais em parceria com a Associação Pediátrica Europeia (EPA), mostrou que 36% dos 320 entrevistados, entre crianças e adolescentes, apresentaram dependência excessiva dos pais, sendo a maioria composta por indivíduos de 0 a 6 anos.
Olhar individualizado
Ao mesmo tempo, crianças um pouco maiores, de 4 a 6 anos, também necessitam de um olhar mais individualizado dos responsáveis e professores. Segundo a especialista associada ao Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), é esperado e natural que os alunos voltem com níveis diferentes de aprendizado adquirido durante a quarentena, com alguns tendo aproveitamento melhor e, outros, mais dificuldades. Ela orienta que os professores busquem formas de “resgatar a motivação para aprender”, mas não sem antes observar como o período da pandemia influenciou as crianças.
“O aprendizado é muito importante, mas escola é ambiente de aprender e socializar. Antes de botar o aprendizado como primeira meta nessa volta, eu preciso olhar para essa criança, para o aspecto emocional dela. Ela vai ter que contar a história dela, e os professores vão ter que fazer um acolhimento disso”, diz Linhares. A pesquisadora atenta ainda para o fato de que as crianças podem ter mais vontade de conversar com as outras na hora da aula, já que o tempo de quarentena pode ter sido de privação da presença de pares. Tolher esse momento de troca entre elas não é recomendado pela professora.
Adriana Pinheiro, membro do Serviço de Orientação Educacional (SOE) do núcleo infantil de uma escola particular de Fortaleza, explica que tanto as crianças que voltaram a frequentar a sala de aula quanto as que continuam apenas em ensino remoto têm recebido atenção individualizada. O suporte emocional foi oferecido também a familiares e professores antes mesmo da permissão de funcionamento das escolas na Capital, segundo ela. A funcionária relata que algumas crianças chegam mais fragilizadas que outras, mas o sentimento geral é de animação com a presença dos colegas e com o reencontro do ambiente escolar. Sobre os desafios pedagógicos daqui para frente, Adriana afirma que a escola pretende intensificar o cuidado personalizado com os alunos, com um processo de adaptação gradativo.
Impactos ainda desconhecidos
Ainda não há estudos conclusivos sobre o impacto desse período no desenvolvimento da primeira infância, de acordo Maria Beatriz Linhares. No entanto, é possível refletir sobre as repercussões que a pandemia teve na vida da população, especialmente das crianças. A especialista explica que é nessa época do crescimento que acontecem “turbilhões de desenvolvimentos”, com grandes aquisições que deverão acompanhar o indivíduo no resto da vida, como falar, andar, regular ciclos de sono e a alimentação, por exemplo. A mudança no contexto social pode acarretar em níveis altos de estresse, impedindo o desenvolvimento pleno.
“A ausência da escola, de um ambiente coletivo, a perda das referências externas, todo esse contexto modificado é de bastante risco para a criança. E nesse ambiente de risco, você tem elementos estressores, tem mais ansiedade, falta de previsão do que vai acontecer, a família mais ansiosa, a sobrecarga dos pais com tarefas e trabalho. A temperatura sobe igual um termômetro e vai pro estresse tóxico”, explica a professora.
Com isso, comportamentos diferentes começam a ser observados, como problemas de atenção, de sono ou apetite e agressividade ou agitação. Além disso, medos exacerbados de ser contaminado, de sair na rua ou de espaços abertos são percebidos.
“Esses são alguns sinais de que as crianças, com o comportamento delas, vão reagindo ao ambiente. As vezes ela não consegue falar e expressar exatamente como está sentindo. Ela não vê o vírus, mas vê as consequências do vírus”, diz Beatriz.
A pesquisadora afirma que também foram percebidas regressões no comportamento. Os pais relatam, segundo ela, casos de crianças que já falavam de forma mais compreensível e retornaram a uma manifestação mais infantilizada e algumas daquelas que já controlavam as necessidades fisiológicas e voltaram a fazer urina e fezes nas roupas, por exemplo.
Em circunstâncias de vulnerabilidade socioeconômica, aspectos como a nutrição inadequada, falta de acompanhamento das escolas remotamente, a violência e a falta de saneamento básico são mais fatores que podem ter efeitos negativos no desenvolvimento infantil. Maria Beatriz acredita na maior desvantagem das famílias mais pobres nesse período, que também tiveram mais estresses relacionados à segurança financeira, acesso à saúde e à educação.
Rotina alterada gera desafios
Antes da pandemia, Plínio Maia, de 5 anos, dormia a noite inteira sem dar trabalho para os pais, mas, atualmente, depois das mudanças na rotina, o menino tem tido dificuldades em pegar no sono. “Por conta da nossa rotina, ele teve a rotina alterada também. Ele acordava por volta de meio dia e não dormia mais, só queria dormir 3 horas da manhã. Chegou dias de ele estar chorando chateado por não querer dormir e o dia amanhecendo”, conta Jardan Marques Mendes de Lima, 35, pai da criança. Na pesquisa chinesa sobre os impactos emocionais e comportamentais da pandemia, foi relatado que 21% das crianças tiveram problemas de sono.
A alteração no comportamento do filho foi um dos fatores que fizeram com que ele e a esposa, mãe de Plínio, decidissem demorar um pouco mais para mandá-lo de volta à escola. Além da dificuldade para acordar cedo, a não aceitação da máscara é um aspecto levado em conta pelos pais. Por estar no espectro autista, Jardan explica que o uso da proteção não é obrigatório para Plínio, mas não deixam de ter uma preocupação em relação ao contágio. Agora, o objetivo é introduzir gradativamente uma rotina mais parecida com a anterior na vida do filho, para que assim ele se adapte a voltar ao colégio.
Já Eudaziane Macedo, 33, não pretende mandar o pequeno Marcos Gabriel Macedo, 3, de volta para a escola ainda neste ano, mesmo percebendo que o filho está em uma fase em que necessita da interação com outras crianças. “É a idade ideal de ter contato entre outras crianças. Ele começou a chamar a gente para brincar com ele. Eu até me disponibilizo, mas eu também trabalho. Lamento muito, porque neste momento, nesta fase, queria muito que tivesse outras crianças para brincar com ele”, relata.
A escola que ele frequentava em Sobral, cidade do interior onde moram, ainda não abriu, mas a decisão é de continuar em casa. “Acho que se ele tivesse com as crianças agora na escola estaria aprendendo mais coisas, mas não houve um retrocesso. Esse contato seria fundamental agora, mas acho que a saúde é mais importante”.
Para a professora Maria Beatriz, a primeira infância é um dos momentos mais propícios para que a criança socialize com outras. Habilidades sociais como aprender a dividir e controlar a agressividade em relação ao outro são algumas que se beneficiam do convívio com pares para serem adquiridas. Apesar dessa oportunidade de desenvolvimento da idade não estar sendo utilizada ao máximo agora, ela explica também que os danos não são irreversíveis. “Nada no desenvolvimento é drasticamente determinista que a gente não consiga depois resolver”, garante.