Opinião: Maria Bethânia coloca o samba entre a luz e a sombra em novo disco

Em homenagem a Mangueira, a cantora baiana reúne 9 sambas e recria o gênero de reputação festiva. O álbum está disponível nas plataformas digitais

Escrito por Felipe Gurgel , felipe.gurgel@svm.com.br
Legenda: A própria Bethânia escolheu o repertório do novo álbum
Foto: Foto: Jorge Bispo

A conexão de Maria Bethânia com suas raízes no interior da Bahia leva a intérprete a diversos lugares da cultura africana. Natural de Santo Amaro da Purificação há 73 anos, ela inspirou o samba-enredo da Mangueira em 2016. Com a composição, a Escola de Samba se saiu campeã do Carnaval carioca daquele ano e agora a baiana retribui a homenagem em disco. 

“Mangueira - A Menina dos Meus Olhos” está disponível nas plataformas digitais e celebra nove sambas com a alma da Escola verde e rosa. O maestro Letieres Leite (BA), da Orquestra Rumpilezz, assina os arranjos e a direção musical do álbum. A própria Bethânia escolheu as músicas. Com a ajuda da obra de medalhões da melancolia, como o sambista Nelson Cavaquinho (1911-1986), a baiana lapidou uma boa mostra de como o samba - gênero de reputação festiva – se trata de “luz e sombra”. 

“A Flor e o Espinho” é o primeiro samba que Maria Bethânia grava dentre as composições de Nelson Cavaquinho, e articula uma grave introdução para o disco. “Tire seu sorriso do caminho/Eu quero passar com minha dor/ Hoje pra você eu sou espinho/Espinho não machuca flor”, diz a letra da canção, composta também por Alcides Caminha e Guilherme de Brito.

O clima melancólico do samba é reforçado pela interpretação pesarosa que a voz da baiana confere. E a cereja de bolo de toda essa carga aparece no final, com uma linda reflexão sobre o valor dos tambores para a comunidade negra e seus descendentes.

“A música é a língua materna de Deus/ Foi isso que nem católicos nem protestantes entenderam/ Que em África, os deuses dançam/E todos cometeram o mesmo erro: proibiram os tambores”, protesta Bethânia, por meio da fala. 

“Mangueira”, de Assis Valente e Zequinha Reis, levanta sutilmente o astral da sequência e ganha o tempero de um arranjo de cordas, que divide a graça da canção com a levada percussiva típica dos sambas. 

Parceria entre Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho, “A Mangueira é lá no céu” ganha um arranjo mais ensolarado e o ouvinte consegue imaginar a sisuda Bethânia caindo, de fato, no samba (e na levada do choro também). 

Samba-enredo 

O samba-enredo da Mangueira, “Histórias pra ninar gente grande”, campeão deste ano, une na estética musical o samba e ecos do rap e do funk (outras manifestações da cultura negra). A letra forte elenca uma série de referências, atuais e históricas, da luta pela liberdade da população afrodescendente no Brasil. O cearense Chico da Matilde, o “Dragão do Mar de Aracati”, canta ela, ganha relevância na voz grave da baiana. 

O repertório emplaca com o “puro samba” “A Menina dos Olhos de Oyá”, na voz de Tantinho. Caetano Veloso e Moreno Veloso interpretam “Maria Bethânia, A Menina dos Olhos de Oyá”, composição de Nelson Sargento, Gustavo Louzada, Agenor de Oliveira e André Karta Marcada. 

Registro peculiar, a faixa marca a interpretação de Caetano, e sua voz melodiosa, com o fôlego renovado para puxar um samba. Ambas as faixas concorreram ao lugar de samba-enredo oficial da Mangueira em 2016, ano em que a Escola foi campeã do Carnaval carioca.

O disco retoma um tom bem solene com a versão de “Luz Negra”, de Nelson Cavaquinho. Espécie de “balada” do álbum, o belo samba guarda versos tristes como “A Luz Negra de um destino cruel/ Ilumina o teatro sem cor/ Onde estou desempenhando o papel/ De palhaço do amor”. 

Por fim, “Sei Lá Mangueira” (Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho) traz o arranjo mais experimental do disco, dentre o andamento errante dos instrumentos à voz falada de Bethânia. E a última faixa traz pouco mais de um minuto do samba-enredo campeão de 2016, feito por Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr D’Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão. 

Legenda: Mangueira – A Menina dos Meus Olhos/ Maria Bethânia/ Quitanda/Biscoito Fino/ 2019, 9 faixas/ Disponível nas plataformas digitais

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