Reconhecimento de suspeitos por fotos tem imagens de ator americano, modelos e inocentes presos
A técnica tem gerado críticas no Ceará. A Polícia Civil justificou, em nota, que "o reconhecimento fotográfico é apenas uma das etapas que podem levar ao indiciamento de um acusado"
A técnica do reconhecimento fotográfico é uma das mais antigas da história da investigação policial. Entretanto, a forma como essa prova é utilizada pela Polícia no Ceará passou a ser questionada por advogados criminalistas. Além de ter levado à prisão e à condenação de inocentes - segundo a Justiça - o recurso já se utilizou das fotografias de um ator norte-americano e de modelos.
O caso mais recente se deu no Inquérito Policial da Chacina da Sapiranga, que deixou cinco mortes em Fortaleza no último dia 25 de dezembro. A fotografia do ator norte-americano Michael B. Jordan (filmes como "Creed: Nascido Para Lutar" e "Pantera Negra"), de 34 anos, é uma das três imagens de um Termo de Reconhecimento Fotográfico da Polícia Civil do Ceará (PCCE), realizado horas após os crimes, que levou ao apontamento de um adolescente de 16 anos (identidade preservada) como suspeito de participar da matança.
A Polícia Civil do Ceará não forneceu entrevista sobre o assunto. Em nota, a Instituição informou que as investigações da Chacina da Sapiranga já resultaram na identificação de 28 pessoas, dos quais foram indiciados 22 adultos. "Cabe destacar que o trabalho policial juntou elementos comprobatórios por meio de provas técnicas, através de perícias, e testemunhais", justificou.
Vale ressaltar ainda que o reconhecimento fotográfico é apenas uma das etapas que podem levar ao indiciamento de um acusado. Depoimentos de testemunhas e perícias técnicas nos locais de crime (coleta de impressões digitais, análise de câmeras de segurança, por exemplo) também constituem parte do processo de investigação."
A utilização de imagens de profissionais do meio artístico já havia chamado a atenção no Inquérito que apura outra chacina, a de Quiterianópolis, ocorrida em 18 de outubro de 2020. A foto de um policial militar, acusado de participar dos cinco homicídios, é comparada com imagens de três modelos. A defesa do PM questionou a prova para a Justiça Estadual.
O mestre em Direito e advogado criminalista, Leandro Vasques, explica que o reconhecimento fotográfico é "uma forma adaptada do reconhecimento pessoal, previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que traz uma série de cuidados para a garantia da lisura da prova a ser produzida".
O reconhecimento fotográfico não deve necessariamente ser descartado da rotina investigativa, dada a sua utilidade em muitas ocasiões, mas deve ser feito com bastante cautela, como uma etapa preliminar - e nunca definitiva - da apuração, seguindo, sempre que possível, as diretrizes previstas para o reconhecimento pessoal."
A Quinta Turma e a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiram decisões, em 2021, que invalidaram um reconhecimento fotográfico feito em fase de Inquérito Policial e uma condenação baseada no reconhecimento, respectivamente, em que não foram observados os procedimentos descritos no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP).
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O CPP prevê quatro exigências para o "Reconhecimento de Pessoas e Coisas" ser validado como prova em um processo. Confira o Artigo na íntegra:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
Sobre a realização do reconhecimento de pessoas, a Polícia Civil do Ceará garante que "o trabalho desenvolvido pela instituição visa cumprir o Princípio Constitucional da Eficiência em consonância com a doutrina e a jurisprudência nacional dominantes a serem seguidas".
"A PC-CE ressalta ainda que editou Nota Técnica, em setembro de 2021, que visa padronizar a realização do reconhecimento de pessoas, seja presencial ou fotográfico, a ser seguida pelos delegados de Polícia do Estado do Ceará", completa a nota.
Presos são soltos e inocentados na Justiça
A Justiça do Ceará reúne vários casos, nos últimos anos, em que suspeitos de cometerem crimes foram presos e até condenados, a partir do reconhecimento fotográfico, e depois terminaram sendo soltos e inocentados.
O episódio mais famoso é do borracheiro Antônio Cláudio Barbosa de Castro, que ganhou repercussão nacional. Ele foi solto em 2019, após passar quase cinco anos preso por uma acusação de estupro. Uma das provas utilizadas pela investigação da Polícia Civil foi o reconhecimento fotográfico, e depois o reconhecimento pessoal, feitos por uma das vítimas, menor de idade.
Antônio Cláudio foi inocentado pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) após pedido de Revisão Criminal, feito pelo Innocence Project Brasil e pela Defensoria Pública Geral do Ceará. Segundo a advogada Flávia Rahal, do Innocence Project, "o reconhecimento fotográfico foi o que induziu falsas memórias nas vítimas. O ponto inicial do erro judiciário cometido".
O uso do reconhecimento fotográfico pela polícia deveria ser repensado, especialmente quando realizados por meio de álbuns de fotografia, elaborados sem qualquer rigor técnico ou lógica. Ele não é confiável porque viola todas as regras mínimas exigidas para que um reconhecimento seja um meio de prova eficaz. Não poderia, em nenhuma hipótese, ser a única prova de uma investigação. É uma não-prova."
O motorista de aplicativos Francisco Wellington da Silva Freitas também foi preso com auxílio do reconhecimento fotográfico, em uma investigação de um homicídio, em Fortaleza, no ano passado. Após 45 dias no cárcere, a defesa conseguiu a soltura do homem de 36 anos que nunca tinha passado pela prisão.
A defesa conseguiu provar que o acusado não participou do crime em tela, juntando no processo as inconsistências da investigação, como por exemplo o reconhecimento feito na delegacia. Não houve nenhuma prova contundente de que Welligton estivesse no local do crime. O reconhecimento, neste caso, não foi feito da forma como determina a lei. Demonstramos ao juiz do caso as falhas na investigação, tendo o próprio Ministério Público pedido a retirada do acusado do processo, sendo aceito pelo magistrado".
Ramos concorda com a advogada Flávia Rahal de que "o reconhecimento fotográfico não pode ser o único meio de prova para acusar uma pessoa, ou até mesmo ser decretado um pedido de prisão. Tais fatos podem levar pessoas inocentes ao cárcere".
Há ainda um exemplo de reconhecimento pessoal (feito apenas por uma proteção entre a testemunha e o suspeito, sem uso de fotografias) que levou um homem a ser condenado a 36 anos de prisão, por um latrocínio em Pentecoste. Paulo Ronielton de Souza da Silva cumpriu quatro anos no cárcere, até a defesa, formada pelos advogados Vicente de Paula e Ricarthe Oliveira, provar que a prova era "viciada". Paulo foi solto no último mês de outubro.
Oliveira destaca a importância do Artigo 226 do CPP: "Caso o reconhecimento fotográfico ou o reconhecimento pessoal sejam feitos em desacordo com o Código de Processo Penal, essa prova será nula e vai gerar a consequente absolvição do acusado, se essa for a única prova do processo".