Pereiro, no interior do Ceará, tem quase 20 motos para cada habilitado; veja cenário nos municípios

90% das cidades do Estado apresentam o número de motos e motonetas maior do que o de pessoas habilitadas, o que indica excesso de motoristas sem CNH

Escrito por Antonio Rodrigues e André Costa , regiao@svm.com.br
Motos em Pereiro
Legenda: Proporcionalmente, em Pereiro há mais de uma moto para cada 2 habitantes
Foto: Honório Barbosa

Detentor da terceira maior frota de motos do Brasil, segundo o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), o Ceará apresenta desequilíbrio entre o número de motos e motociclistas. Em 90% das cidades do Estado, o número de habilitados com a carteira A é menor do que o total de veículos. Mas um município chama atenção: Pereiro, localizada a cerca de 340 km da Capital. 

A cidade tem 17,5 motos para cada morador com habilitação. Com 16 mil habitantes, Pereiro registra 8.988 motos emplacadas. No entanto, apenas 524 pessoas têm permissão do Detran para conduzir esses tipos de veículos no município. 

Se contabilizada a população total da cidade, há mais de uma moto para cada dois habitantes. Os dados foram fornecidos pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE) e tabulados pelo Diário do Nordeste.

O vendedor José Gomes, morador de Pereiro, conta que, há cerca de três anos, a cidade conta com agentes municipais de trânsito, mas os profissionais ignoram, por exemplo, o uso obrigatório de capacete. “Dentro, é todo mundo sem capacete. Ainda tem muita gente relaxada com isso”, admite.

“Andar sem capacete já vem de muito tempo. O Demutran fiscaliza estacionamento, mas não multa. Orienta para retirar”, afirma o conterrâneo Lenilson Alves.

Fiscalização

“Se não há quem fiscalize, se não há o agente que vai possibilitar a educação no trânsito, o problema só tende a crescer. As motos continuarão a ser compradas em uma proporção maior e mais acelerada do que o número de novas habilitações”, critica Mário Azevedo, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC). 

Motos em Pereiro
Legenda: De todos 184 municípios cearenses, em 90% o número de pessoas com Carteira Nacional de Habilitação (CNH) é inferior à frota de motos e motonetas
Foto: Honório Barbosa

Tanto José como Lenilson não possuem carteira de habilitação, mas conduzem suas motos pela cidade. “O preço para tirar é muito alto e a carência hoje em dia é grande”, argumenta o vendedor.

“A situação atual é difícil. Muitos não têm emprego e outros precisam da moto para ir pro trabalho”, completa Lenilson, que está desempregado, mas iniciou o processo para emissão de sua CNH no estado vizinho do Rio Grande do Norte. 

A fiscalização à qual se refere o professor Azevedo passa pela municipalização do trânsito, instrumento previsto no Código de Trânsito Brasileiro, vigente desde 1998. Contudo, passados 23 anos, 45% das cidades do Ceará ainda não controlam o trânsito local e desobedecem a resolução nacional.

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Cenário cearense

O desequilíbrio no Ceará entre o número de motos e motociclistas está presente em 166 das 184 cidades, o que gera preocupação entre especialistas de trânsito e da área da Saúde. Para guiar motos e motonetas, o Código de Trânsito exige CNH categoria A, mesmo que os dois tipos de veículo sejam de baixa cilindrada.

Os dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE) também mostram que em algumas cidades a disparidade é bem superior à média estadual.

1.284.403
é o número de habilitados (com carteira A, AB, AC, AD ou AE) no Ceará, para um frota de 1.650.181 motos e motonetas. A proporção é de um motociclista apto para cada 1,28 veículo.

O índice é puxado para baixo principalmente devido aos números de Fortaleza. Na Capital, são 411.505 habilitados, para uma frota de motos e motonetas de 327.794. Ao contrário da maioria das cidades, existe menos de um veículo (0,79) por condutor habilitado. 

As estatísticas do Ceará estão, inclusive, na contramão da média nacional. Segundo os dados do último mês de julho do Denatran, são 26.261.547 veículos para 34.483.351 habilitados no País, uma média de 0,84. 

Riscos

Mas, o que esses números, de fato, representam? Por que este cenário é tão perigoso e pode ajudar a explicar o alto índice de acidentes envolvendo motociclistas?

Para o professor Mário Azevedo, o condutor que circula pelas vias sem a devida habilitação representa um potencial risco para si e para a sociedade.

Sem o devido preparo conferido através do curso para a habilitação, o motociclista está sujeito a mais falhas. Ele não conhece as leis de trânsito e isso aumenta sua negligência ao trafegar. A direção tende a ser mais imprudente, com menor perícia, e isso resulta em mais acidentes”
Mário Azevedo
Professor do departamento de engenharia de transportes da UFC

O especialista reconhece que não há estudos recentes sobre as causas da disparidade entre motos emplacadas e condutores habilitados, mas sugere que a causa do problema pode estar na falta de fiscalização. Além disso, a motocicleta é o veículo de entrada para muitos brasileiros, por conta do preço mais baixo. 

Das dez cidades com maior média de frota para cada condutor apto, nenhuma tem o trânsito municipalizado. “Isso reflete diretamente no trânsito. Se não há controle ou fiscalização, crescerá o número de pessoas dirigindo sem qualquer preparo”, avalia Mário.  

Motos em Pereiro
Legenda: O Ceará detém a terceira maior frota de motos do Brasil, segundo o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran)
Foto: Honório Barbosa

Consequências no sistema de saúde

Para o sistema de saúde, o efeito dessa realidade é grave. A avaliação é do neurocirurgião João Ananias, que trabalha no Hospital Maternidade Santo Antônio, em Barbalha. A unidade é referência no atendimento a pacientes vítimas de trauma na região do Cariri.

“São traumas gravíssimos, lotando as emergências e UTI. Na nossa unidade, por exemplo, na semana passada, tivemos dois dias sem cirurgia neurológica, porque não tinha leito de UTI, todos ocupados por pacientes vítimas de acidente e todos por motocicleta”,
João Ananias
médico

Após a flexibilização das medidas de combate à pandemia de Covid-19, que impactaram no total de acidentes registrados, Ananias observa um aumento considerável de ocorrências nos últimos meses.

“O politraumatizado e traumatizado de crânio têm aumentado de forma significativa. Se antes [no período do isolamento rígido] a gente atendia dois por dia, agora estamos atendendo cinco ou sete”, completa. Antes da pandemia, a média diária girava em torno de cinco atendimentos.

Segundo o médico, os pacientes, em sua maioria, são jovens entre 17 e 30 anos, que não fazem uso do capacete e, muitas vezes, estão sob efeito de bebida alcoólica. “Também chamo atenção para crianças envolvidas nessas quedas, ficando com sequelas graves, porque não tem o acompanhamento pediátrico adequado”,
acrescenta. 

Motos em Pereiro
Legenda: Dentre as dez cidades com maior média de frota para cada condutor apto, nenhuma delas tem o trânsito municipalizado
Foto: Honório Barbosa

Motos lideram chamado de ocorrências

O risco de acidentes já é percebido na prática em cidades do Ceará. Entre janeiro de 2020 e setembro deste ano, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) recebeu 12.853 chamados para socorro a acidentes com motocicleta, o que corresponde a 15,1% do total (158.008). Os números são da plataforma IntegraSus, da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). 

De janeiro de 2020 até agora, foram registrados 4.775 acidentes na classificação “auto x moto”, quando há colisão entre a motocicleta e um automóvel, equivalente a 5,6% do total.

O índice só fica atrás dos chamados para atendimento à Covid-19, com 17.507 (20,6%), e ‘não informados’, com 15.911 (18,7%).

Em Pereiro, cidade com maior proporção de motos emplacadas para cada condutor, o número de chamados do Samu para atendimento a acidentes envolvendo motociclistas é ainda maior. Foram 144 chamados desde 2020. Deste total, 31 (ou 21,5%) estavam relacionados a motociclistas. Isto é, a cada cinco ocorrências, uma está ligada às motos. 

Geralmente esses acidentes têm alto nível de gravidade, atesta Ananias. “[As vítimas] que escapam, apresentam hematomas cerebrais graves, ocupando leitos por 15 dias, às vezes um mês. Isso vai impactar em alteração de memória, comportamento e até não conseguir falar. Alguns jovens perdem a capacidade reprodutiva. Do ponto de vista ortopédico, há amputações”, alerta.

Motos em Pereiro
Legenda: O Ceará tem mais motos e motonetas que pessoas habilitadas
Foto: Honório Barbosa

Há luz no fim do túnel

Diante de tão grave cenário, o especialista em mobilidade urbana, Mário Azevedo, diz ser preciso uma rápida mudança para que estes números sejam revertidos. “Investir em educação de trânsito é a única saída”, pontua. Esse investimento caminha em paralelo com o avanço no processo de municipalização do trânsito. 

No mês passado, o Ministério Público no Ceará (MPCE) retomou o Projeto Municipaliza, uma iniciativa lançada no fim de 2018 com objetivo de angariar a adesão de novas cidades ao Sistema Nacional de Trânsito (SNT).

O projeto teve de ser descontinuado durante a pandemia por impossibilidade dos interlocutores visitarem, em caravana, as cidades do Interior.

Outra alternativa vem do Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (Detran-CE), que segue realizando os preparativos necessários para a retomada do programa CNH Popular, que tem a abertura de inscrições previstas para o mês de outubro. A expectativa é que 20 mil pessoas de baixo perfil aquisitivo sejam contempladas, com a habilitação nas categorias A (moto) e B (carro).

Municípios com maior disparidade em números absolutos

As cidades de maior porte do interior do Estado apresentam a maior disparidade em números absolutos. Sobral lidera com uma diferença de 15.686 motocicletas e motonetas para o seu número de habilitados. A lista das cinco maiores é completada por Iguatu (13.398); Icó (10.750); Crateús (9.760); e Juazeiro do Norte (9.071). Todas elas têm o trânsito municipalizado.

Maior cidade da região Norte, Sobral registrou um aumento no número de acidentes no primeiro semestre de 2021, em relação ao mesmo período do ano passado. Foram 229 ocorrências este ano, contra 201 no ano anterior. Os dados dos demais meses não foram disponibilizados. Nossa reportagem tentou contato com a Coordenadoria Municipal de Trânsito de Sobral (CMT), mas não tivemos retorno até a publicação desta matéria. 

O aumento também foi registrado na maior cidade da região Centro-Sul, com cerca de 103 mil habitantes, Iguatu tem uma frota de 33.999 motocicletas e motonetas. Isso representa uma média de quase uma moto para cada três habitantes.

Na prática, isso já tem preocupado, pois, no primeiro semestre deste ano, o município somou 104 acidentes de trânsito, igualando o mesmo número ocorrido em todo o ano de 2020. 

Segundo o diretor de Trânsito e Transporte de Iguatu, Francisco Jackson Barbosa, há muita imprudência, principalmente na zona rural e, durante as ocorrências graves, têm sido identificados muitos condutores sem habilitação. “Só neste mês de setembro, já tivemos três óbitos, todos acidentes de moto.

No ano passado não tivemos”, observa. Para conter o aumento, promete intensificar o trabalho de fiscalização com o Detran e Polícia Militar.

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