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O que é a guerra cibernética e como ela impacta no conflito entre Rússia e Ucrânia

Analistas e pesquisadores de defesa digital avaliam os riscos que os conflitos cibernéticos entre nações podem representar para a população mundial

Escrito por Igor Cavalcante , igor.cavalcante@svm.com.br
computados em uma sala
Legenda: Ataques cibernéticos contra a Ucrânia começaram antes das movimentações das tropas em terra
Foto: Divulgação/Senai

Os bombardeios que, há mais de uma semana, atingem cidades ucranianas são apenas uma face da guerra deflagrada entre Rússia e Ucrânia. Em um ritmo mais veloz que qualquer míssil usado pelos dois lados do conflito, as nações travam uma batalha silenciosa no ambiente digital, com uma série de ataques cibernéticos que inviabilizam serviços essenciais para a população e podem causar danos até maiores que as forças bélicas tradicionais.

Os dois “fronts” têm representado um conflito tão intenso que analistas e pesquisadores de defesa digital já consideram essa como uma “guerra híbrida”, quando há movimentação bélica tradicional e cibernética simultaneamente. 

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“Antes mesmo de iniciar o conflito armado, os russos tentaram minar órgãos públicos, bancos e outros serviços ucranianos com ataques cibernéticos, isso tudo com o objetivo de atrapalhar o funcionamento dos serviços. Naquele momento, as pessoas estariam preocupadas em retomar os sistemas ao mesmo tempo que as tropas (russas) poderiam avançar, é como uma cortina de fumaça”, resume Antônio Horta, doutorando em Engenharia de Defesa no Instituto Militar de Engenharia (IME).

Batalha digital

Há meses os ucranianos acusam os russos de promoverem ataques contra sites do governo à medida que as tensões entre os dois países escalam. A deflagração da guerra, no último dia 24 de fevereiro, também sinalizou ataques cibernéticos cada vez mais potentes contra os ucranianos. 

A conexão com a internet no país vem apresentando instabilidade desde então, principalmente no sul e no leste, áreas onde os ataques terrestres dos russos também se concentram. 

No último domingo (27), a Embaixada da Ucrânia no Brasil também alertou que os canais oficiais foram afetados por “ataques cibernéticos massivos”. Por outro lado, no dia anterior, o grupo hacker Anonymous declarou “guerra cibernética” contra a Rússia. Após o comunicado, sites oficiais do governo foram tirados do ar. 

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Conforme Piero Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor do livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, desde a Segunda Guerra Mundial que o espaço cibernético tem papel central em guerras. 

“Mas, na década de 1990, detectou-se uma potencialização disso, pensando no envolvimento geral da sociedade por esses dispositivos. Foi então que começaram a aparecer, em doutrinas militares, noções como de ‘netwar’ (guerra de rede), que potencializam muito a ideia de uma centralidade na cibernética na guerra”
Piero Leirner
Professor, pesquisador e escritor

Para o professor, com a população tendo mais acesso a aparelhos digitais e “a vida enredada por um complexo de informações e contra-informações que visam justamente afetar a opinião pública”, o mundo inteiro é colocado no cenário militar. “Como todo mundo tem um celular, isso já nos coloca no teatro de operações”, acrescenta.

Ataques frequentes

Os exemplos de guerra cibernética são cada vez mais frequentes ao longo dos últimos anos. No ano passado, por exemplo, os Estados Unidos chegaram a declarar estado de emergência e anunciar recompensa de US$ 10 milhões pelo grupo DarkSide, responsável por sequestrar um oleoduto do país. O grupo paralisou o sistema da petroquímica e exigiu um pagamento de resgate. 

Em 2017, o NotPetya foi considerado um dos ciberataques mais danosos da história. O prejuízo estimado chega a US$ 10 bilhões. Diversas instituições foram atacadas e tiveram informações destruídas. Na Ucrânia, bancos, usinas de energia e aeroportos foram afetados. O ataque também atingiu os Estados Unidos e o Brasil.

computadores
Legenda: Ataques mais comuns são o de negação de serviço (DDoS)
Foto: Divulgação/Senai

Em 2015, a Ucrânia foi afetada pelo vírus BlackEnergy, que tinha como alvo a rede elétrica do país. Milhares de pessoas ficaram às escuras. Segundo Antônio Horta, nos ataques mais recentes aos sistemas do país eslavo, os hackers usaram o método mais comum, de ataque de negação de serviço distribuído (DDoS), quando os invasores sobrecarregam a rede a ponto de inviabilizar o seu funcionamento.

“De uma forma geral, existem dois grandes grupos de ataque, os diretos, como o DDoS, e os ataques persistentes avançados (APT). Os primeiros não têm o objetivo de roubar (informações), mas de derrubar os serviços, foi esse usado da Ucrânia mais recentemente. Já o segundo, tem como objetivo comprometer o ambiente, se infiltrar e danificar, roubar ou adulterar”, explica Horta.

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Risco global

Seja de uma forma ou de outra de ataque, o pesquisador avalia que o potencial de danos de uma guerra cibernética, atualmente, já supera o de uma guerra tradicional. Desde 2010, o ciberespaço passou a ser considerado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos como “domínio de guerra”, assim como a terra, o ar e o mar.

“Pode existir grupos maliciosos com diferentes finalidades, como atacar a indústria, uma usina de energia, um oleoduto, podem lançar ransomware ou vírus para infectar os sistemas de um hospital ou mesmo de uma usina nuclear, colocando em risco a vida de milhares de pessoas”
Antônio Horta
Doutorando em Engenharia de Defesa no IME

Os exemplos citados por Horta, inclusive, já foram identificados em atividade. Em 2010, os Estados Unidos foram acusados de sabotar a rede de computadores de uma usina nuclear do Irã. No mesmo ano, foi descoberto o Stuxnet, um programa malicioso criado para controlar as centrífugas de enriquecimento de urânio iranianas. O “malware” é considerado a primeira arma cibernética de nível militar do mundo capaz de espionar, reprogramar e se camuflar em sistemas industriais.

Defesa cibernética

Ainda de acordo com o pesquisador, não à toa os países têm investido tanto em cibersegurança. “O cenário da guerra mudou, e aqui precisamos dividir o mundo corporativo do mundo militar, porque segurança cibernética abrange todo o mundo corporativo, mas defesa cibernética só exércitos podem atuar, é um aspecto de guerra, onde há ataque e defesa”, aponta.

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Analisando essa escalada de forças cibernéticas, na avaliação do professor Piero Leirner, não há qualquer perspectiva, a preço de hoje, de que os países limitem seus “arsenais”, diferentemente do que ocorreu na escalada bélica após a Guerra Fria.

“Não creio que isso seja possível, e nem é do interesse dos Estados. A ideia de suas máquinas de guerra – militares, agências de informação, seus ramos na indústria – é estar no centro definitivo, terceirizando – ou tentando terceirizar – parte do teatro de operações para o cidadão comum. Na Guerra Fria, isso foi feito com muita ideologia. Hoje, está embutido nos algoritmos que direcionam nossa interação em rede. Que interesse o Estado teria em perder tamanho controle?”, conclui.

Horta acrescenta outro aspecto crítico dessa nova conjuntura: a dificuldade de se rastrear de onde partiram as incursões.

“Esse tipo de atitude ofensiva, geralmente, é praticada por grupos independentes, que assumem (a autoria). No entanto, quando há um conflito entre nações, o mesmo não acontece. Por exemplo, esses ataques contra a Ucrânia não foram assumidos pela Rússia. Ou seja, as nações têm conhecimento, fazem ofensivas, incursões, mas é algo velado, não aparece, e podem causar danos gravíssimos contra a população”
ANTÔNIO HORTA
Doutorando em Engenharia de Defesa no IME

E o Brasil?

Diante desse arranjo de forças cibernéticas, segundo Leirner, o Brasil ocupa uma posição discreta. “Aqui se resolvem algumas coisas, obviamente, mas nada que nos coloque no centro de uma disputa por hegemonia – ou pelo menos do segundo escalão dessa hegemonia. Nosso papel é usar o agro e o minério como fator geopolítico. Isso até tem um peso, mas pouquíssimo valor agregado”, avalia.

Militares em computadores
Legenda: Militares brasileiros são treinados em cibersegurança
Foto: Divulgação/ComDCiber

Já o doutorando em Engenharia de Defesa no IME, Antônio Horta, tem uma avaliação diferente. Ele avalia que o Brasil ocupa uma posição de destaque na geopolítica cibernética. 

“Estamos incluídos entre os países com bastante presença, com Estados Unidos e Israel, por exemplo. Temos boas escolas e nosso Exército está sempre preocupado em treinar pessoas, capacitar e investir em ciência cibernética”, ressalta.

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