PEC do Quinquênio: por que bônus no Judiciário avança em detrimento da demanda de outras categorias
Ao ponto que proposta avança no Senado, especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste opinam sobre implicações políticas e possíveis impactos fiscais
Tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa implementar uma parcela mensal de valorização para magistrados, promotores e delegados da Polícia Federal e outras categorias. Batizada de "PEC do Quinquênio", a proposição, que hoje está no Senado Federal, pretende dar aos servidores enquadrados nestas funções uma bonificação de 5% a cada cinco anos trabalhados. Em síntese, ela recria um adicional por tempo de trabalho extinto em 2006.
A PEC limita o benefício a 35% da remuneração do servidor. O valor não seria contabilizado dentro do limite salarial do funcionalismo, que atualmente é de R$ 44 mil. O raio de abrangência da medida, segundo expectativa, é de 38 mil servidores. A proposta foi aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa Alta do Congresso no último dia 17 de abril e agora deverá ser apreciada pelos parlamentares no plenário.
Durante a discussão no Senado, o líder do Governo Lula, Jaques Wagner (PT), chegou a classificá-la como uma "bomba fiscal", pois, de acordo com o senador, um estudo aponta que o impacto da concessão do quinquênio pode ser de R$ 42 bilhões por ano.
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Inicialmente, a proposição previa a implementação do benefício apenas para magistrados. O rol foi ampliado aos defensores públicos, membros da Advocacia-Geral da União (AGU), integrantes do Ministérios Púbicos estaduais, ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), conselheiros dos tribunais de contas estaduais e municipais, além de delegados federais, graças a um substitutivo do relator, Eduardo Gomes (PL). Dependendo de como a PEC avançar no Legislativo, outras carreiras ainda podem ser incluídas, aumentando a margem de privilégio existente entre as carreiras públicas no Brasil.
Apesar das justificativas apresentadas pelo autor da matéria, o senador Rodrigo Pacheco (PSD), que é o presidente do Senado, de que os recursos virão do próprio Judiciário, ela também enfrenta críticas de setores da sociedade. Um dos pontos que pesam contra a medida é o fato da magistratura ter um arsenal de privilégios que a diferencia do restante do funcionalismo e por, coincidentemente, o tema estar sendo pautado em um momento em que outros servidores reivindicam perante o Executivo uma recomposição salarial.
Uma das classes que buscam um ganho salarial é a de professores das universidades e institutos federais, que há 15 dias está em greve. Na mesa de negociações o Governo Federal tem argumentado não ter orçamento suficiente para atender ao percentual de 22,71% que é reivindicado.
Esse é o impacto financeiro da implementação do quinquênio nas contas públicas
Um levantamento do Centro de Liderança Pública (CLP), divulgado no ano passado, indica que 70% dos servidores federais recebem até R$ 5 mil como salário. Enquanto isso, em fevereiro de 2024, último mês em que foram disponibilizadas informações no portal do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o rendimento líquido médio dos juízes do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) - ao qual o Ceará está subordinado -, foi de R$ 42,9 mil. O montante considera a soma do subsídio, direitos pessoais e indentizações concedidas aos 274 magistrados lotados no Tribunal, já descontadas as contribuições, o imposto de renda, a retenção por teto constitucional e outros descontos.
Em declarações recentes, Pacheco tem condicionado o avanço da "PEC do Quinquênio" a outro projeto de lei, o que extingue os "supersalários" no serviço público, que hoje está na CCJ do Senado, aguardando parecer do responsável pela relatoria, o senador Gomes. Para o social-democrata que preside o Legislativo, a aprovação de ambos os projetos deverá provocar uma economia do gasto público, afastando o risco fiscal apontado por opositores da proposta de emenda.
Esse foi o rendimento líquido médio dos magistrados do TRF-5 em fevereiro deste ano
O Diário do Nordeste entrevistou dois especialistas, um que atua na área contábil do setor público e o outro que estuda a interface entre o direito e a política, para compreender as razões que estão por detrás do benefício de valorização da magistratura em detrimento das demais categorias.
Felipe Braga Albuquerque - Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e professor de Direito Administrativo na Universidade Federal do Ceará (UFC).
Roberto Sérgio do Nascimento - Doutor em Contabilidade pela Universidade de Zaragoza (Unizar), professor do Departamento de Contabilidade da UFC, auditor fiscal e secretário do Tribunal de Contas da União (TCU) no Ceará.
Está no Congresso a PEC do quinquênio, em que se estima que, ao beneficiar os 38 mil servidores que se enquadram no público-alvo da medida, haja um impacto anual de R$ 42 bi nas contas públicas — que pode ser ainda maior caso outras carreiras requisitem esse benefício. O que explica mais esse bônus no Judiciário?
FELIPE B. ALBUQUERQUE: A criação da remuneração por subsídio equiparou magistrados, membros do Ministério Público e outras carreiras desde o ingresso à aposentadoria no serviço público, ou seja, não há crescimento, do ponto de vista remuneratório. O quinquênio foi extinto quando o Governo Federal concedeu reajuste para servidores do Poder Executivo, a título de isonomia com os demais Poderes da União - pois havia uma série de ações questionando isonomia remuneratória. Sua implementação foi num contexto de reorganização e reestruturação do sistema remuneratório da Administração Pública Federal. A concessão dessa nova remuneração tende a trazer sério comprometimento dos orçamentos, não só da União.
A explicação pode ser enxergada como busca de direitos ou como coorporativismo, pois servidores do Judiciário e Ministério Público conseguiram aumentos bem mais expressivos dos que os membros do Executivo nos últimos dez anos. A ideia de progressão na carreira é extremamente interessante, mas, com a política de subsídio em parcela única, criada em 1998 por emenda constitucional, a carreira de magistratura teve valorização, mas que já se sabia o resultado: a insatisfação com o passar dos anos por falta de algo atrativo. Atualmente temos, de modo geral, um executivo com carreiras que passam por inúmeras progressões, até chegar a uma boa remuneração, e a magistratura e Ministério Público com excelente remuneração, mas que, com o passar dos anos, segundo os mesmos, deixa de ser atrativa, por não existir progressão. É um paradoxo.
ROBERTO S. DO NASCIMENTO: Historicamente, a Administração Pública Brasileira conservou privilégios para as suas diversas classes de servidores, como se fossem castas dentro de castas. Mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha tentado gerar isonomia de tratamento entre os servidores públicos, entenda-se, todos os poderes constituídos, sempre estes dois últimos Poderes se mostraram reticentes a um possível processo de igualdade salarial. Nestas ocasiões, o Legislativo e o Judiciário buscam instituir artifícios para quebrar esta aproximação, quer seja pelo cumprimento de carga horárias diferenciadas, concessão de vantagens especificas quer seja por interpretações dos atuais benefícios de forma mais benéficas possíveis.
Temos uma gestão federal que trabalha com um limite de gastos e metas a serem alcançadas. Esse ponto foi alegado pelo Planalto como uma dificuldade no atendimento das demandas dos professores das instituições federais nas negociações recentes. Por que é difícil haver um reajuste para servidores da Educação e não se tem a mesma postura para os magistrados?
FELIPE B. ALBUQUERQUE: É difícil responder quando a Educação não é prioridade. Educação não pode ser considerada tecnicamente em rubrica orçamentária de despesas, mas de investimento. Desde a década de 1980, quando Leonel Brizola conseguiu investir cerca de 40% do orçamento do Estado do Rio de Janeiro com educação, não vemos mais grandes exemplos de valorização da base do desenvolvimento nacional. O Poder Judiciário tem função estratégica no Brasil, com pautas comprometedoras da gestão e os governos têm se tornado reféns dessas pautas. O Brasil é um país extremamente conflituoso e, infelizmente, quem resolve em última instância, os conflitos tem tido protagonismo remuneratório. Isso é um sintoma claro de deturpação do sistema estatal. Um país se desenvolve com educação, com ciência, com tecnologia e não com a resolução de conflitos - que é importante, mas não traz, em regra, desenvolvimento social.
ROBERTO S. DO NASCIMENTO: No tocante à possibilidade de reajuste em si, para os professores da Educação, ou criação de vantagens, a regra é igual para todos: havendo previsão orçamentária na Lei de Diretrizes Orçamentárias, vale para qualquer categoria. Assim, a pergunta não é o quão é difícil reajustar salários dos servidores da educação, mas porque não havendo previsão orçamentária para todos, uns conseguem e outros não. Para se ter esta resposta, tem que se compreender as pressões políticas que os partidos realizam, quais os interesses que estão por detrás destas pressões, dos lobbies que são realizados por grupos de interesses específicos, dos acordos que são necessários para avançar a pauta política do atual chefe do Executivo, etc. O que leva ao Poder Executivo a fazer concessões para uns - mesmo que injustas - e não fazer para outros.
Os maiores salários do serviço público no Brasil estão no Judiciário. Um dado interessante é que, de acordo com um dado divulgado pelo CLP no ano passado, 70% dos servidores federais recebe até R$ 5 mil. Qual deveria ser a atuação ideal do Poder Público no sentido de equilibrar os gastos e não aumentar a disparidade entre os que ingressam na magistratura em comparação com os demais servidores?
FELIPE B. ALBUQUERQUE: (Deveria ser) cumprir com a legislação - a Lei de Acesso à Informação - com a demonstração real dos recebimentos —, o teto remuneratório — descumprido sobretudo no Judiciário e Ministério Público -, a proibição de pagamento de "penduricalhos" com nome de parcela indenizatória — mas que não tem essa natureza —, a concessão da revisão geral anual, etc. Se a legislação fosse cumprida, não teríamos que tapar buracos com lobby.
ROBERTO S. DO NASCIMENTO: A atuação ideal seria a existência de um comitê formado pelos Poderes para discutir questões salariais. Aliás, isto já existe desde 1998, só que os efeitos estão suspensos por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (a ADI 2135).
De que maneira esse montante de R$ 42 bilhões, que visa atingir uma parcela de milhares de pessoas, poderia ser direcionado para outras áreas e causar um impacto positivo maior? Digo isso comparando com ações estratégicas do Governo Federal, a exemplo do Pé de Meia, cujo público é de 3,6 milhões de jovens e tem impacto financeiro de R$ 11 bilhões anualmente; do Bolsa Família, que conta com R$ 168,6 bilhões para o atendimento dos 56 mi de cadastrados e do 1 milhão pessoas a serem inscritas neste ano.
ROBERTO S. DO NASCIMENTO: Simplesmente, vontade política do Congresso Nacional. Esse mesmo Congresso que culpa o Poder Executivo por não conseguir diminuir o gasto público e, logo em seguida, busca aumentar benefícios de categorias específicas. Em verdade, não deveria haver nenhum direcionamento dos valores que poderiam ser gastos, visto que não há previsão orçamentária para eles. Ou seja, está se gastando algo que sequer existe. O que deveria ser feito é que o gasto não deveria ser gerado, eis que não há suporte orçamentário.
A princípio, a PEC só previa o quinquênio para a magistratura, mas um substitutivo ampliou o rol de servidores que poderão ser beneficiados. O presidente Pacheco afirmou que a proposta inicial não impacta diretamente no Orçamento da União porque o recurso para os salários viria do que é disponibilizado para os órgãos onde estão lotados. Não haveria, com isso, uma necessidade de o governo ampliar a destinação para cada um desses órgãos? O que muda com a ampliação do público no que diz respeito à responsabilidade fiscal?
FELIPE B. ALBUQUERQUE: Ao Poder Judiciário, é assegurada autonomia administrativa e financeira, de modo que os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados com os demais Poderes, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Um dos problemas é não verificar, na proposta, um aumento de despesa que não é acompanhado da fonte de custeio
ROBERTO S. DO NASCIMENTO: O presidente do Congresso Nacional está equivocado. Os recursos necessários ao pagamento dos quinquênios não só impactam o orçamento da União, como também dos estados e Distrito Federal, visto que a simetria constitucional impõe, obriga, exige que os benefícios gerados ao Poder Judiciário e Ministério Público sejam repassados aos estados e Distrito Federal. Assim, o impacto é maior do que se imagina. O segundo equívoco reside em dizer que “o recurso para os salários viria do que é disponibilizado para os órgãos onde estão lotados”. O que existe é a previsão dos salários para o ano de 2024, sem contar com este novo benefício, mesmo porque ele não foi previsto no ano passado. Se fosse assim, não haveria porque o Poder Executivo dizer que não há previsão orçamentária. Então, a declaração se apresenta apenas como justificativa para diminuir a pressão que a sociedade está fazendo.
No que se refere a ampliar a destinação do gasto, ela não ocorre simplesmente como um passe de mágica. Se não tiver sido autorizada na LDO do ano anterior, para ser incluída na Lei Orçamentária (LOA) deste ano, não existe previsão legal. Ou seja, qualquer manobra deve ser considerada ilegal, salvo se houve alteração da LDO vigente para inclusão na LOA também vigente do novo gasto. Isto poderia ocorrer, mediante, por exemplo, excessos de arrecadação, criação de novos tributos ou, simplesmente, como geralmente, ocorre, corte de uma despesa atual para prover uma nova despesa.
Quanto a esse trecho do projeto, que diz que as parcelas só poderão ocorrer se houver previsão orçamentária e decisão do Poder Público ao qual o servidor estiver vinculado, ele é um meio de intervenção possível por parte do Executivo?
ROBERTO S. DO NASCIMENTO: Não. É apenas uma orientação do processo de reconhecimento do direito por parte dos envolvidos, já que os Poderes possuem autonomia administrativa e orçamentária. Isto não impede o pagamento, visto que, em não havendo recursos, a dívida será reconhecida, gerando o direito ao pagamento em qualquer exercício futuro. Detalhe: acompanhado dos devidos juros moratórios, isto é, além de se pagar o principal no futuro, também será pago os juros pelo não pagamento na data prevista. Assim, a emenda sai pior que soneto.
Não seria muito mais fácil perguntar ao Executivo se há previsão orçamentária para se conceder o privilégio? Isto não ocorre porque já se sabe que não há, assim como também não há para os professores da Educação. Isto demonstra, de forma cabal, que o tratamento que o Legislativo dá ao Judiciário, de longe, não é o mesmo que o próprio Executivo dá aos seus. É aquilo que se diz: "Quando uns fazem bondade com o chapéu dos outros".
É perceptível uma atuação direta do presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, na aprovação da PEC do quinquênio. O que explica esse esforço imediato dos parlamentares? Se considerarmos os episódios recentes que demonstram uma disputa entre os dois Poderes, isso não seria um dissenso?
FELIPE B. ALBUQUERQUE: Não vejo como consenso com o Judiciário essa PEC, mas como um recado do Legislativo em sua autonomia para com o Executivo, demonstrando uma fragilidade de articulação política do governo federal, que necessita rapidamente da aprovação da reforma tributária e já adiantou que não terá superávit em 2025.
ROBERTO S. DO NASCIMENTO: Concordo. Mas para entender este possível “dissenso” seria necessário conhecer os interesses que estão por detrás desta defesa tão enfática do presidente do Senado em relação ao Poder Judiciário, este mesmo Judiciário que, a depender do dia, se encontra na berlinda em razão do foro privilegiado ou da decisão do porte das drogas. Ora, ou se defende ou se acusa, não dá para ter comportamentos díspares ao mesmo tempo.