Legislativo Judiciário Executivo

Como o fretamento de ônibus para atos de policiais antes do motim de 2020 impacta na CPI da AL-CE

O Diário do Nordeste teve acesso a cinco notas fiscais que detalham os contratos feitos pela APS com empresas de transporte de passageiros

Escrito por Wagner Mendes, Igor Cavalcante, Beatriz Irineu ,
À época, protesto reuniu policiais e familiares, que ocuparam a Avenida Desembargador Moreira
Legenda: À época, protesto reuniu policiais e familiares, que ocuparam a Avenida Desembargador Moreira
Foto: Camila Lima

Na semana em que a CPI das Associações Militares revelou movimentações financeiras e saques de altos valores em espécie por associações de agentes de segurança pública em datas próximas ao motim da Polícia Militar; o Diário do Nordeste teve acesso a cinco notas fiscais que indicam a contratação de transporte terrestre coletivo em datas que coincidem com manifestações de agentes às vésperas do motim, em fevereiro de 2020.

Nas investigações conduzidas pelos deputados da Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE), esses documentos são apontados como um indício de que associações agiam de forma política e teriam mobilizado os policiais para movimentos que eclodiram no motim. Entre os elementos apresentados pelos parlamentares até agora, o custeio dos veículos é o que liga mais diretamente uma entidade aos protestos dos agentes naquele ano.

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Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), na última terça-feira (5), o atual presidente da Associação dos Profissionais de Segurança (APS), Cleyber Araújo,  disse que “não financiou e não participou do motim”. Segundo ele, os veículos foram contratados a pedido dos agentes para atos "ordeiros" e "democráticos" anteriores à paralisação.

Pelas notas fiscais, as empresas foram contratadas para trajetos que tiveram origem em cidades como Itapipoca, Canindé e Mossoró (Rio Grande do Norte) com destino a Fortaleza. Documentos registram conduções de policiais em datas como 4 (em dois contratos), 12 e 13 de dezembro de 2019. No mesmo mês, a categoria se reuniu em mobilizações nos dias 5 e 14

Outro contrato, sem o registro de destino, teve a emissão da nota fiscal no dia 7 de fevereiro – um dia depois da manifestação do dia 6 de fevereiro de 2020. Os valores variam entre R$ 450 e R$ 2.500. 

O relator da CPI na Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE), Elmano de Freitas (PT), que investiga suposto envolvimento das associações militares no motim da PM, declarou, na terça-feira (5), que as provas recolhidas pelo colegiado evidenciam que a APS foi "utilizada para fazer política partidária dentro da Polícia". 

O presidente da APS, Cleyber Araújo, foi a primeira testemunha ouvida na CPI que investiga possível envolvimento das associações militares no motim de 2020
Legenda: O presidente da APS, Cleyber Araújo, foi a primeira testemunha ouvida na CPI que investiga possível envolvimento das associações militares no motim de 2020
Foto: Felipe Azevedo

A indicação do relator aponta para implicações jurídicas a respeito da atuação da Associação durante os atos de profissionais da segurança pública.

Um dos principais focos de investigação é se de fato a APS atuou como "sindicato" – seja no debate do reajuste salarial ou na organização de mobilizações e paralisações trabalhistas – o que é considerado ilegal pela lei estadual e também pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

"Convites"

Publicações nas redes sociais da Associação dos Profissionais da Segurança, de dezembro de 2019, alimentam o engajamento da categoria para mobilizações.  

No dia 14 de dezembro, um post da APS no Facebook fez um chamamento dos policiais para um ato em conjunto pela reestruturação salarial dos profissionais. 

O hoje vereador Sargento Reginauro (União Brasil), que era presidente da APS na época, também publicou na página pessoal no Facebook uma mensagem de convite para que a tropa se fizesse presente nos atos. 

"A nossa tropa está adoecendo com o serviço extra, não dá pra ficar assim! E dia 14, às 15h30, na Praça Portugal, queremos ouvir seu grito! Um grito por justiça!", disse. 

Sargento Reginauro é o convidado da CPI na sessão da próxima terça-feira (12). Nesta semana, ele usou a tribuna da Câmara Municipal para repercutir as investigações da CPI e disse que comissão terá de "forjar provas" contra ele em relação a irregularidades na atuação à frente da APS.

Legalidade 

Entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto define a atividade policial como carreira de Estado imprescindível à manutenção da normalidade democrática. A carreira policial funciona como o braço armado do Estado, responsável pela garantia da segurança interna, ordem pública e paz social, e que, por isso, não faz greve. Para a Corte, o Estado em greve dos agentes é "anárquico", já que a Constituição Federal não a permite. 

A definição é similar à Constituição do Estado do Ceará ao apontar que, “ao militar estadual, são proibidas a sindicalização e greve”. Em outro trecho, a lei estadual estabelece que “o militar estadual poderá fazer parte de associações sem qualquer natureza sindical ou político-partidária, desde que não haja prejuízo do respectivo cargo ou função militar que ocupe na ativa”. 

Ação Civil Pública 

No dia 17 de fevereiro de 2020, um dia antes da deflagração do motim, a Secretaria Executiva da Segurança Pública e Defesa Social e a Controladora Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário informaram à Procuradoria-Geral de Justiça que cinco associações, entre elas a APS, que congregam policiais e bombeiros militares no Estado do Ceará, estariam atuando "em desrespeito às proibições constitucionais de sindicalização e greve de militares", ao realizar atividades "típicas de representação sindical".

A Controladora Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário apontava também que havia "um intenso movimento por parte dos membros da segurança pública do Estado do Ceará, no que concerne a manifestações públicas em que se reivindicam melhorias salariais, tendo sido inclusive a hipótese de ocorrência de movimento paredista, fato este que, aparentemente, estaria contando com o apoio e a coordenação dos entes associativos que representam os policiais militares e o integrantes do corpo de bombeiros, evidenciando, em tese, um possível desvio quanto à finalidade institucional para as quais estas instituições foram criadas”.

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Ainda de acordo com o ofício, essas lideranças das entidades estariam participando ativa e diretamente de negociações salariais como se fossem dirigentes sindicais, "inclusive apresentando uma tabela com os valores das remunerações pretendidas para os vários cargos da carreira, bem como que as entidades também seriam responsáveis pela realização de três grandes manifestações públicas que ocorreram nos dias 5 de dezembro de 2019, 14 de dezembro de 2019 e 6 de fevereiro de 2020".

Naquele momento, havia a preocupação da manifestação pública marcada para o dia 18 de fevereiro de 2020, na Assembleia Legislativa, em que estava colocado o risco de deflagração de greve, caso os policiais e bombeiros militares presentes não aceitassem os termos da proposta de reestruturação salarial negociada com o Governo do Estado.

Decisão

Dois dias depois da Ação Civil Pública ter sido emitida, a Justiça decidiu proibir qualquer participação da APS em manifestações pró-motim por parte dos profissionais militares. 

"Conforme o estado democrático de direito, a APS está cumprindo integralmente a decisão judicial, que também se estende aos diretores e conselheiros fiscais", diz trecho da nota publicada no Instagram da entidade para os associados. 

O motim aconteceu no início do ano de 2020, durou quase duas semanas e contou com a participação de centenas de militares
Legenda: O motim aconteceu no início do ano de 2020, durou quase duas semanas e contou com a participação de centenas de militares
Foto: José Leomar

A publicação da entidade nas redes sociais ocorreu por conta de uma decisão judicial em que foi proibida a atuação da Associação em promoção, convocação, financiamento, ainda que indiretamente, ou de participação, pela fala ou presença de qualquer dos membros de sua diretoria, de assembleias ou quaisquer outros tipos de reuniões, voltadas para discussão de melhorias salariais, estrutura de trabalho e conquistas para a carreira militar. 

Foi estabelecida uma multa que variava entre R$ 200 mil e R$ 1 milhão por episódio. O desconto do valor ocorreria diretamente em folha de pagamento dos valores pagos pelos associados à entidade. 

"A pedido dos agentes" 

Durante o depoimento que prestou à da CPI das Associações Militares, na terça-feira (5), o presidente da APS, Cleyber Araújo, comentou sobre o fretamento dos ônibus. 

Ele afirmou que, de fato, a instituição de agentes da segurança pagou pelo transporte que reuniu os agentes em atos semanas antes da paralisação dos militares, mas negou que isso tenha relação com o motim. 

“Eu sou contra (motim), tanto que procuramos os poderes do Estado para vocalizar os interesses da categoria (...) Infelizmente, pela inércia do Estado, a Polícia paralisou. Eu não concordo, eu agi contra. Como policial militar e como presidente da Associação, eu sou contra” 
Cleyber Araújo
Presidente da APS

Inicialmente, Araújo enfatizou que a APS “não financiou e não participou do motim”. “De nenhuma forma a diretoria participou, financiou ou motivou a paralisação. Foi uma situação na qual a APS foi pega de surpresa, não sabíamos que ia ocorrer o que ocorreu, ninguém esperava que ia ocorrer da forma como foi e como ocorreu”, afirmou o presidente. 

Em seguida, questionado pelo relator da CPI, o deputado Elmano de Freitas, Araújo reconheceu que houve o financiamento do transporte de agentes para atos que antecederam o motim.  

Cleyber Araújo assumiu a presidência da APS em fevereiro de 2020
Legenda: Cleyber Araújo assumiu a presidência da APS em fevereiro de 2020
Foto: Felipe Azevedo

“Tivemos alguns encontros convocados por parlamentares que representam associados, através disso a gente participou, mas eram movimentos legais, ordeiros, não havia qualquer recomendação por parte do Comando da Polícia Militar nem do Ministério Público, não havia nada de errado”, comentou Araújo em referência aos atos dos agentes na Praça Portugal e no entorno da Assembleia Legislativa do Ceará, nos meses de dezembro de 2019 a fevereiro de 2021. 

O presidente enfatizou ainda que, para ele, a reunião dos agentes não configurava protesto – o que foi rebatido pelo relator da Comissão. “Não eram protestos, não estávamos protestando, eram encontros nos quais parlamentares falavam para a categoria a respeito de uma lei que estava tramitando na Assembleia”, disse. 

Questionado por Elmano se a APS “mobilizou para esses protestos”, Cleyber Araújo disse que sim.

“A APS, a pedidos dos associados, pagou transporte para eles estarem presentes na Assembleia Legislativa”  
Cleyber Araújo
Presidente da APS

O presidente, no entanto, enfatizou que, naquele protesto do dia 6 de fevereiro de 2020, não havia “paralisação nem interesse na paralisação". Apesar disso, menos de duas semanas depois daquele ato, os agentes pararam por treze dias no Ceará. 

Em nota, a assessoria de imprensa da APS acrescentou que “existe uma divisão no tempo do que foi a paralisação e do que foi antes da paralisação acontecer”. A instituição ressalta que os ônibus foram financiados a pedido dos associados para a participação em atos democráticos.  

Veja o depoimento na íntegra

“Não existia nenhuma determinação nos encontros que foram realizados, inclusive na Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE). Não há nenhuma ilegalidade dos agentes de segurança frequentarem a Casa do Povo para acompanhar assuntos de seu interesse”, aponta o texto. 

“A paralisação começou dia 18/02/2020. Tudo o aconteceu antes não foi ilegal é tanto que, não há nenhum tipo de indiciamento, de investigação, nada relacionado ao que aconteceu antes da paralisação do dia 18/02”, conclui a nota.

Sobre o veículo contratado para trazer agentes de Mossoró, a APS informou que o objetivo foi conduzir associados que moravam no município e trabalhavam em Icapuí, Aracati, Limoeiro do Norte e Russas. 

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