Número de bebês em unidades de acolhimento de Fortaleza cresce 40% após segundo lockdown

Condições econômicas ou morte dos pais são apontados como principais fatores para o aumento

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Adoção de crianças no Ceará
Legenda: Mais de 250 crianças e adolescentes vivem em unidades de acolhimento em Fortaleza
Foto: Kiko Silva

Além das perdas imediatas, a pandemia de Covid-19 tem impactos profundos, de longo prazo, em diversos âmbitos: ela tem aumentado, por exemplo, o “abandono” de bebês em Fortaleza. Entre setembro de 2020 e abril de 2021, o número de crianças de menos de 1 ano em unidades de acolhimento cresceu 27%. Entre janeiro e este mês, a alta foi de 40%

Os dados são do Ministério Público do Ceará (MPCE) e apontam que a Capital tinha, até 15 de abril, 28 bebês acolhidos, sendo a faixa etária com maior número absoluto registrado no Sistema Nacional de Adoção (SNA). A média no ano passado era de 22 e, há três meses, de 20. 

“A pandemia tem aumentado os abandonos”

Dairton Oliveira, promotor de Justiça e coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Infância, da Juventude e da Educação (Caopije) do MPCE, aponta que a alta se deu após o segundo lockdown na cidade, e que “a pandemia tem aumentado os abandonos”.

“Há duas explicações: o aumento da taxa de morte de pais, gerando maior número de órfãos; e o aumento das vulnerabilidades sociais, do desemprego. Isso já está refletindo no aumento do número de abandonos sociais”, analisa.

Adriana Meireles, coordenadora do Lar Batista, entidade social sem fins lucrativos que acolhe crianças em Fortaleza, confirma que “o número de recém-nascidos com pedidos de vagas tem crescido muito”. Grande parte deles chega entregue pelas mães.

Bebê no Lar Batista de Crianças, no Ceará
Legenda: Bebê no Lar Batista, em Fortaleza
Foto: Reprodução/Lar Batista

"A maioria das mulheres entrega os bebês na pandemia por questões financeiras e emocionais. Já recebi várias que a família não tinha como cuidar", pontua.

O lar acolhe, hoje, 12 crianças de 0 a 2 anos e meio. Adriana diz que a “saída” dos pequenos também tem sido frequente. “O Poder Judiciário, através das audiências concentradas, tem dado andamento aos casos. Já entreguei algumas para adoção, neste ano, e outras estão em processo adiantado”, comemora.

“Quero que ele encontre o que eu não posso proporcionar”

O ventre de Laura* (nome fictício) gesta, hoje, um filho que já não é dela. Em cerca de três meses, quando as 40 semanas da gravidez se completam, a jovem de 23 anos deve entregar o bebê para adoção – um gesto legalizado, símbolo de respeito a si e ao pequeno que chega.

Laura vive num “ambiente familiar conturbado” e enfrenta, desde a adolescência, problemas de saúde mental, como depressão e ansiedade, potencializados pela chegada da primeira filha, há 5 anos.

“Já me esforço muito, muito, pra criar um ambiente habitável pra ela. E muitas vezes não consigo. Ainda tem a questão financeira. Tô sem trabalhar, por causa da gravidez, recebendo só o Bolsa Família”, relata. Sem apoio dos pais das crianças, ela decidiu por doar o segundo filho.

Não tenho condição financeira, psicológica nem familiar pra criar. Tô doando na intenção de ele encontrar o que eu não posso proporcionar. Quis fazer da forma mais legal possível, pra ele encontrar uma família estruturada, um ambiente razoável.

A “forma legal” a que a jovem se refere é o Projeto Anjos da Adoção, iniciativa do MPCE por meio da qual mulheres (grávidas ou não) que não desejam prosseguir com a maternidade podem entregar a criança

As interessadas devem procurar o Juizado da Infância e Juventude, no Fórum Clóvis Beviláqua. O processo é sigiloso, como garante o MP, e previsto no artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Janela adotiva

Unidade de acolhimento Ceará
Foto: Helene Santos

O fortalecimento de políticas públicas de apoio à família, segundo o promotor, é fundamental “enquanto não formos vacinados e os empregos não puderem ser recuperados. É preciso também “dar maior celeridade e resolutividade aos processos, para reduzir a fila de pretendentes”.

Garantir a solução da situação de crianças e adolescentes acolhidos é também uma forma de assegurar o desenvolvimento deles. “Precisamos de mais atenção na área da infância, principalmente na primeira infância. Se a gente demora nos processos, a criança sai da janela adotiva, perde a família e aumenta a institucionalização”, alerta Dairton.

Esse conceito se refere à faixa etária de 0 a 7 anos, que concentra a maior procura por parte dos pretendentes, conforme órgãos de Justiça. Em abril, dos 251 crianças e adolescentes acolhidos em Fortaleza, 155 já estão fora dessa “janela” (62%).

251
crianças e adolescentes estão em unidades de acolhimento de Fortaleza. O número ideal, aponta o MPCE, é de 160. Em 2018, o total era de 540.

Outro fator se reflete nos dados: os bebês são os mais numerosos nos acolhimentos da Capital, mas foi entre crianças de 9 anos e adolescentes de 16 anos o maior crescimento percentual de entradas entre setembro de 2020 e abril de 2021, com 63,6% e 47,1%, respectivamente.

O promotor aponta que a pandemia “influenciou e muito” no prolongamento da espera por uma nova família. “A adoção parou por 5 meses em Fortaleza, em 2020. O tempo de espera médio do pretendente na fila estava em 2 anos e 10 meses até dezembro de 2019, e passou para de 3 anos e meio”, lamenta Dairton.

Fila de espera

No Ceará, atualmente, 790 pretendentes estão na fila aguardando para adotar crianças ou adolescentes, segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Do total, 700 aparecem como “disponíveis”, ou seja, habilitados e à espera de um chamado, enquanto 90 já estão vinculados aos adotandos.

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O número de meninos e meninas cadastrados no CNA é bem inferior: são 243 no total, conforme dados coletados nesta sexta-feira (23), dos quais 116 constam como “disponíveis” para adoção e outros 127 já estão inseridos no processo de vinculação às novas famílias.

A “conta que não fecha” se dá, entre outros fatores, pelo fato de que muitos acolhidos permanecem por anos em um limbo: não são destituídos oficialmente das famílias biológicas nem retornam a elas. A solução vem por meio das audiências concentradas, realizadas periodicamente pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE).

561
meninos e meninas viviam em unidades de acolhimento no interior do Ceará até janeiro deste ano, 245 deles em Fortaleza.

Os objetivos delas são “reintegrar crianças e adolescentes à família biológica; colocá-los em guarda, tutela ou adoção; e expedir o Plano Individual de Atendimento (PIA), para traçar metas e prazos para alcançar uma das primeiras duas hipóteses”.

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Conforme o TJ, em 2020, a 3ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza “promoveu a reintegração à família de 49 acolhidos e realizou 43 encaminhamentos para adoção” antes das audiências. Após a realização delas, “114 crianças e adolescentes tiveram acesso à convivência familiar”.

Neste ano, as audiências tiveram início no dia 12 de abril. A reportagem solicitou um balanço dos resultados, mas não obteve resposta até esta publicação.

Unidades de acolhimento estaduais

Além de entidades sem fins lucrativos, o Ceará conta com os acolhimentos públicos estaduais para crianças e adolescentes que aguardam o retorno à família de origem ou a adoção. A gestão fica a cargo da Secretaria de Proteção Social (SPS).

O Diário do Nordeste questionou à pasta quantos vivem nessas unidades, se houve aumento de acolhidos na pandemia e que mudanças estruturais foram necessárias durante a crise, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

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