Gordofobia e desinformação são entraves para vacinação contra a Covid-19; veja relatos
Além do preconceito histórico, pessoas gordas passam por constrangimentos e dificuldades para acessar laudos que comprovem obesidade como comorbidade
Pessoas que têm o Índice de Massa Corporal (IMC) maior ou igual a 40 já estão aptas a receber a vacina contra a Covid-19 em Fortaleza, desde o último dia 5 de maio, quando foi iniciada a 3ª fase da vacinação. Apesar de se tratar de um direito, a desinformação e o preconceito têm levado pessoas com 'obesidade grave' a sentir vergonha ou mesmo a desistir da imunização.
A empresária Heylla Rodrigues, de 26 anos, não cogitou desistir. Mas, para conseguir ter em mãos o laudo com o reconhecimento de um médico sobre sua condição, foi submetida a uma “série” de constrangimentos.
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Heylla não recebeu notificação no celular ou e-mail. Porém, à noite, viu que o seu nome constava na lista de agendados para o dia seguinte, às 9h da terça-feira (25). Às 5h, poucas horas antes da imunização, se dirigiu a um posto de saúde do Bairro Bom Jardim em busca de um atestado médico.
“Madruguei na fila do posto e passei pela triagem. Me pesei e aí eu já via os olhares constrangedores. Ela [profissional da saúde] perguntou qual a minha comorbidade e falei que era obesidade. E ela respondeu: ‘Você não é hipertensa? Não tem diabetes? Vai tomar vacina só porque é gorda?”, rememora.
Após a triagem, Heylla foi atendida, mas recebeu a informação de que no local não estavam sendo entregues laudos exclusivos para obesidade. Somente caso o paciente comprovasse ter o acompanhamento de um nutricionista da unidade.
“Você vê que o olhar das pessoas se transforma quando você diz que é [laudo] pra obesidade. Como se fosse algo insignificante ou como se eu quisesse me beneficiar de alguma coisa. Um dá uma risadinha, outro faz um comentário maldoso. É extremamente constrangedor”,
Mesmo contrariada, a empresária não desistiu e reportou a situação à diretoria da unidade de saúde. Somente após muito reivindicar, conseguiu ter o laudo assinado.
“Eu já levei o laudo impresso pra facilitar e fiquei batendo na porta da médica, na ala da Covid, correndo o risco até de ser contaminada. Cheguei no Centro de Eventos mais de 10h e no final deu certo. Mas depois de uma série de transtornos”.
Desinformação perpetua preconceito
Com mais de 29 mil seguidores no Instagram, a influenciadora e designer de moda, Carol Zacarias, 30, conta que vem recebendo diariamente relatos de pessoas gordas, constrangidas por se vacinarem antes de outros grupos e/ou com dificuldades para consultar um médico e ter a comorbidade atestada.
Por isso, resolveu organizar um mutirão para viabilizar o acesso de 150 pessoas a médicos que emitam esses laudos. Ela também realiza lives e repassa informações aos seus seguidores de como acessar o nome na lista de agendados, por exemplo. Heylla, inclusive, foi uma das pessoas alertadas.
Para Carol, “o preconceito está ligado à falta de informação. Então, quanto mais pessoas sem informação, mais pessoas soltam preconceitos por aí. Falta informação, falta vacina, então o mínimo que a gente puder fazer é muito nesse caos”.
A influenciadora também ressalta que termos como ‘mórbido’, ‘IMC’ e ‘obesidade’ são obsoletos e que servem apenas para reforçar o preconceito de que ser gordo é ser doente. Não são úteis para demonstrar “se aquela pessoa com IMC 40 está perto de morrer ou não, se é saudável ou não”.
Gordofobia médica
Independentemente do contexto atual da vacinação, pessoas gordas já enfrentam historicamente o preconceito, além de vários problemas quando buscam acessar o sistema de saúde. Seja pela falta de acessibilidade, de equipamentos públicos ou de preparo dos profissionais da área.
Inclusive, a chamada gordofobia médica é um gargalo que prejudica o acesso de pessoas gordas a tratamentos de saúde e, agora, à imunização contra o coronavírus. Neste último caso, o risco é elevado não somente a esse grupo de comorbidade, como também àqueles que o cercam.
É o que avalia a médica generalista, Flora Mota. Desde o começo deste ano, Flora desenvolve um trabalho de acompanhamento de pessoas gordas que, assim como ela, já passaram por traumas médicos.
“Quanto mais pessoas vacinadas, melhor pra que a doença não se transmita mais. Eu tentei conscientizar meus pacientes, mas via uma resistência, que existia um medo e uma preocupação, mais uma vez pautados na gordofobia. E eles sofrem com isso há muitos anos”
De acordo com a médica, muitos de seus pacientes também foram submetidos a um “terrorismo” no último ano, quando a obesidade passou a ser apontada como um fator de risco para quem contraísse o novo coronavírus.
"É muito injusto. Muitos pacientes estão há mais de quatro, cinco meses em casa, sem sair, sem conseguir ir nem no supermercado porque a família faz uma pressão enorme por conta do fator de risco. E quando finalmente chega a oportunidade deles se vacinarem, mais uma vez a gente sofre com a pressão da gordofobia", diz, apontando que muitos de seus pacientes não sabiam que poderiam ser vacinados pela comorbidade. Ou se sentem constrangidos de ter acesso ao que lhes é de direito.
“Dificultam o acesso [à vacinação] e já é um acesso tão difícil que as pessoas quando vêm falar com a gente, vêm pisando em ovos, se preocupando se realmente vão ser acolhidas. Porque são pessoas que não são acolhidas em nenhum lugar. A maioria das pessoas que eu atendo estão sem ver um médico há anos. Então, é muito incrível poder proporcionar esse cuidado”.
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Produtora de Moda, Stephanie Reis, 23, relata ter sofrido gordofobia médica a “vida inteira”, pois está acima do peso considerado ideal desde os 7 anos. Ela foi vacinada esta semana contra a Covid-19 e, somente por isso, foi hostilizada nas redes sociais.
“Já aconteceu de eu ir ao oftalmologista e ele falar pra eu emagrecer. A gente é reconhecido como doente sempre. E algo pesado”
Stephanie cumpriu a quarentena “direitinho” e se sente “privilegiada” por ter essa opção. Por outro lado, sente que a pandemia foi um período “muito assustador”, desde que a obesidade passou a ser apontada com mais veemência como um fator de risco para a Covid-19.
"Eu fiquei desesperada. Comecei a ficar muito assustada e minha família passou a acreditar muito nisso. Eu tenho acompanhamento psicológico e nutricional, mas é difícil você não desenvolver um distúrbio alimentar".
‘Não ter vergonha é um direito nosso’
Consultora de imagem e estilo, Elaine Quinderé, de 31 anos, não passou por dificuldades para receber a primeira dose da vacina, na segunda-feira (24). No entanto, cita que uma amiga não conseguiu o laudo atestando a obesidade em um posto de saúde, pois a liberação do documento teria sido condicionada à existência de outra comorbidade associada.
Hoje, “eu sou acompanhada por médicos sérios, que me respeitam. Mas eu passei por isso durante a vida, essa gordofobia médica onde as pessoas invalidavam tudo o que eu sentia ou estava passando comigo ou com minha saúde, com meu bem estar. A única solução era que eu emagrecesse”.
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Elaine produz conteúdo para a Internet e busca conscientizar seus seguidores de que se vacinar é um direito, cujo acesso já ocorre tardiamente. Também por ter o marido diabético e por querer protegê-lo do vírus, sempre teve certeza que o melhor caminho era a imunização.
“Você olhar para o espelho e dizer palavras de empoderamento, que você é linda, que você é maravilhosa, isso é incrível. Mas cuidar da sua saúde é tomar vacina e também é um ato de autocuidado e de autoamor. Não ter vergonha é um direito nosso. Tem que tomar a vacina”
“A gente está numa guerra, lutando contra um vírus ainda desconhecido e a gente precisa se proteger da melhor maneira possível. Que a gente não deixe o preconceito nos vencer”, corrobora Carol Zacarias.
Dados da vacinação no Ceará
Até às 17h do dia 25 de maio, 3.376 pessoas com 'obesidade grave' foram vacinadas no Ceará, conforme contabiliza o Vacinômetro Covid, disponível no Painel de Transparência da plataforma IntegraSUS, alimentada pela Secretaria da Saúde do Estado (Sesa). O número corresponde a 5% do total (67.075) de pessoas com comorbidade já imunizadas no Estado.
A Sesa reforça que estes números estão sujeitos a alterações constantes e são atualizados conforme as Secretarias Municipais de Saúde repassam os dados.
Até esta quinta-feira (27), o Saúde Digital somava o cadastro de vacinação de 312.927 pessoas com comorbidade no Estado.