Com pandemia, queda de coberturas vacinais de crianças chega a 40% no Ceará: 'Preocupação extrema'

Baixa imunização pode levar ao ressurgimento de doenças já controladas, gerando impactos graves à saúde pública, avalia o infectologista pediátrico Robério Leite

Escrito por Lígia Costa , ligia.costa@svm.com.br
Vacinação de crianças
Legenda: No ano passado, foi detectada uma redução nas coberturas vacinais de crianças
Foto: Alex Costa

A pandemia de Covid-19 vem aprofundando a queda no número de crianças menores de um ano que receberam vacinas contra doenças como meningite, pneumonia, rubéola e poliomielite no Ceará. Em alguns casos, como para a vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e a BCG, contra a tuberculose, a procura caiu cerca de 40%.

No ano passado, foi detectada uma redução nas coberturas vacinais - de modo geral - desse público. E a queda se acentuou ainda mais este ano. A cobertura vacinal considera o total de crianças do Estado e a proporção de pessoas desse perfil que receberam o esquema vacinal. 

De 1º de janeiro a 31 de agosto de 2021, por exemplo, a segunda dose (D2) da tríplice viral alcançou apenas 47,9% do público. Em 2019, ou seja, antes da pandemia, esse percentual era de 82,7%; e em 2020, de 66,8%. 

De 2019 para 2021, também houve uma queda brusca na cobertura da BCG, vacina contra a tuberculose, passando de 99,2% para 58,8%. Já em 2020, a aplicação do imunizante atingiu patamar intermediário (64,9%), conforme apontam os dados extraídos do Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações e divulgados pela Secretaria da Saúde do Estado (Sesa) nessa segunda-feira (13).  

Os percentuais anotados nos últimos meses revelam que as coberturas vacinais dos imunizantes BCG, meningocócica C, pentavalente, pneumocócica, poliomelite e tríplice viral estão bem abaixo da meta preconizada pelo Ministério da Saúde (MS), que é de, pelo menos, 90%.  

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‘Preocupação muito extrema’  

O infectologista pediátrico, médico Robério Leite, avalia a queda nas coberturas vacinais das crianças como uma fonte de “preocupação muito extrema”, pois se tratam de doenças transmissíveis que podem “voltar com força epidêmica e se tornarem novamente doenças endêmicas”, ou seja, com origem associada ao país. 

Ele lembra que o Brasil vem assistindo à volta do sarampo, há cerca de três anos. Inclusive, o Ceará confirmou um caso da doença no município de Massapê, em julho, mesmo após se manter por quase um ano e seis meses livre da doença. Também neste ano, até agosto, 108 pessoas foram infectadas e 7 morreram com meningite no Estado.

O sarampo é, digamos, o primeiro alerta de que o sistema de saúde não está vacinando na medida do necessário para prevenir a ocorrência dessas doenças porque dessas doenças ela é a mais transmissível. Uma pessoa pode transmitir pra dezoito”
Robério Leite
Infectologista pediátrico

O médico alerta que os casos de poliomielite – controlada no Brasil - também podem emergir. Com mais mortes, sequelas e internamentos por essas doenças, haverá maior pressão na rede assistencial de saúde.

“É dramático você ter crianças morrendo por doenças que podem ser prevenidas por vacina. Então, esse é o risco que a gente está realmente enfrentando. E num cenário de uma pandemia em que as crianças, que é o principal público-alvo dessas vacinas, estão voltando a uma exposição mais intensa nas escolas, ou seja, com o sistema imunológico altamente despreparado para enfrentar possíveis exposições”.  

Vacinação de crianças
Legenda: Para Robério Leite, a queda nas coberturas vacinais no Ceará não têm causa única. Se trata de um problema “multifatorial” e preexistente, apenas agravado pela pandemia
Foto: Saulo Roberto

Pandemia não é a única causa 

Para Robério Leite, a queda nas coberturas vacinais no Ceará não tem causa única. Se trata de um problema “multifatorial” e preexistente, apenas agravado pela pandemia.  

A maior complexidade do próprio Programa Nacional de Imunizações (PNI), ao englobar mais vacinas e utilizar um sistema informatizado, somada à desinformação e consequente aumento da recusa às vacinas, elenca o médico, contribuem para formar o cenário preocupante.  

A viabilidade de acesso aos postos de saúde em horários restritos e a inserção da mulher no mercado de trabalho também acabam por desestimular a vacinação das crianças.

"Os horários de funcionamento dos postos, a questão da segurança de acesso ao serviço de saúde, isso [tudo] tem impactado em relação ao acesso de vacinação", afirma o infectologista pediátrico, para quem o PNI também está “subaproveitado” devido à falta de coordenação nacional e de propagandas de conscientização. 

De acordo com a médica pediatra Dione Rola, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia alertado sobre a queda das coberturas vacinais de crianças em todo o mundo. Devido à pandemia, muitos pais optaram por adiar o calendário vacinal dos filhos ou levá-los às consultas médicas de rotina. E são nesses locais onde profissionais costumam dar mais orientações e incentivar a imunização.  

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Doenças podem ressurgir

Associado a isso, existem também as “fake news” atreladas às vacinas, que levam muitos pais a não questionarem as falsas informações, tomando-as como verdadeiras.  

“E outro fator relevante é porque algumas pessoas dessa geração não sentiram o impacto real das vacinas. Teve épocas no Brasil em que a tuberculose era uma coisa incontrolável, assim como você via crianças morrer de sarampo. Como a geração dos pais de agora não viu isso, acabam se acomodando”, diz a médica, também integrante do Coletivo Rebento de Médicos e Médicas em defesa da Ética, da Ciência e do SUS. 

Se continuar caindo uma taxa importante da cobertura vacinal, todas essas doenças que hoje são controladas e têm forma leve ou não têm, vão ressurgir"
Dione Rola
Médica pediatra

E completa: "Elas vão começar a aparecer e de forma grave, somando a uma pandemia de um vírus [para o qual] as crianças de até 12 anos não têm cobertura vacinal ainda. Então, corremos um sério risco de ter um retrocesso".

A pediatra Vanuza Chagas atribui a queda da cobertura vacinal à pandemia, mas, assim como Dione Rola, acredita que isso se deve a uma "falsa segurança" dos pais da nova geração "de não verem mais casos de paralisia infantil, de coqueluche tão frequente, de difteria, o próprio sarampo". 

Vacinação de criança
Legenda: "Se continuar caindo uma taxa importante da cobertura vacinal, todas essas doenças que hoje são controladas e têm forma leve ou não têm, vão ressurgir", alerta a médica pediatra Dione Rola
Foto: Natinho Rodrigues

Atualização do calendário vacinal

A médica recomenda que os pais procurem os postos de saúde para atualizar o calendário vacinal dos seus filhos. "Procure a unidade de saúde e a oportunidade vacinal deve acontecer. Então, o máximo de vacinas que possam ser feitas juntas, aproveitando a ida dessa criança, contanto que não tenha interferência", melhor.

Infectologista pediatra do Hospital Infantil Albert Sabin (Hias), Lohanna Tavares considera o retrocesso da vacinação como um "fenômeno mundial e alarmante" provocado por "muitas variáveis", que passam por questões culturais e religiosas até desabastecimentos temporários e a baixa percepção de risco das doenças.

Todos esses fatores, porém, podem reavivar doenças já erradicadas justamente por meio das vacinas. Daí a necessidade de manter o controle da vacinação.

"De um modo geral, as vacinas do calendário de vacinação podem ser administradas simultaneamente, sem que ocorra interferência na resposta imunológica. Exceto para as vacinas da febre amarela e tríplice viral ou tetra viral, que é contra sarampo, caxumba, rubéola e varicela, que devem ser administradas com intervalo de 30 dias".

Essa atualização do calendário vacinal, pontua Robério Leite, não se restringe às crianças. "O calendário vacinal envolve crianças, adolescentes, adultos e idosos. Felizmente, temos um grande Programa de Imunização no País, mas que está subaproveitado. Imagine, além de Covid, ter essas outras doenças associadas? É um paradoxo".  

Imunização nos municípios 

Orientadora da Célula de Imunização da Sesa, Kelvia Borges corrobora que as baixas coberturas vacinais vêm sendo observadas desde 2019, devido a um possível "receio da população em buscar os serviços de saúde para atualização do Calendário de Vacinação".

Mas reforça que o Estado vem se articulando juntos aos municípios para ampliar as coberturas vacinais das crianças, realizando monitoramento mensal e recomendando a intensificação da imunização de rotina e a busca ativa de não vacinados nos 184 municípios cearenses.

"Na oportunidade, reforçamos quanto a importância das campanhas de vacinação, a exemplo da Campanha de Multivacinação prevista para outubro de 2021 com intuito de atualizar o esquema de vacinação de todas a crianças menores de 5 anos".

Segundo Kelvia Borges, todas as vacinas disponibilizadas pelo PNI são ofertadas gratuitamente nos serviços públicos de vacinação do Ceará.

Incluída no calendário de rotina do Ceará, a vacina contra a febre amarela também está disponível em todos os postos de saúde do Estado e nos Vapt Vupts do Antônio Bezerra e Messejana, para pessoas de 9 meses a 59 anos.

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