O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) tem acompanhado e orientado municípios cearenses no processo de retorno das aulas presenciais
A volta presencial às salas de aula na rede pública ainda segue um ritmo distinto em cada cidade do Ceará. Para boa parte dos estudantes, já são 18 meses fora das escolas. Em agosto, algumas redes retornaram e, outras, a exemplo das de Fortaleza, voltam agora em setembro ao ambiente escolar, em regime híbrido.
Nesse processo, e frente a dificuldades de distintas ordens, o chefe do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Fortaleza, Rui Aguiar, que tem acompanhado de perto a articulação dos municípios para o retorno, destaca que “a prioridade da volta presencial deve ser para as crianças que estão em risco de abandono”.
50% da capacidade
Em Fortaleza, o retorno ocorre na quarta-feira (8) com metade dos alunos da rede municipal
A essa altura, reforça ele, as escolas já precisam ter ciência de quem são os alunos mais vulneráveis, os que não conseguiram acompanhar o formato remoto ou sequer continuaram junto às turmas. São eles, na avaliação de Rui, a preferência para voltar presencialmente às salas.
Para cada etapa, diz, há uma preocupação distinta, que vai do prejuízo à alfabetização aos efeitos na saúde mental dos jovens do Ensino Médio. Confira a entrevista.
Nesse momento, parte das redes de ensino municipal e estadual da rede pública estão retornando às atividades presenciais. Em Fortaleza, por exemplo, isso deve ocorrer a partir do dia 8 de setembro. Como o Unicef tem acompanhado esse retorno? E o que tem sido observado?
O retorno seguro das crianças para as escolas é muito importante. E, em cada faixa etária, ele tem um significado diferente. Então, na educação infantil, por exemplo, no Brasil, no que é obrigatório, ela dura quatro semestres, para quem tem quatro e cinco anos de idade, e as crianças já perderam três semestres. Elas perderam 75% das possibilidades de acesso à educação infantil. Então esse é um retorno super prioritário.
Garantir às crianças pelo menos a possibilidade de seis meses de vivência da educação infantil, que é uma fase da vida muito importante para o desenvolvimento. O presencial faz a diferença e permite uma criança voltar a ter um ritmo. Essa parte da educação infantil, de fato, ficou bastante tempo remota nas redes municipais, foi uma das mais afetadas.
À educação infantil é realmente um prejuízo muito grande, porque praticamente toda a educação infantil foi remota. em condições muito precárias, de atenção. Em muitas famílias, as crianças trancaram a matrícula. Então, é talvez a fase mais afetada.
Em relação às demais fases?
Uma outra fase que é bastante afetada e que o ensino presencial é muito importante, são as séries iniciais do Ensino Fundamental, porque é o período de alfabetização das crianças. Durante a alfabetização, esse encontro presencial é muito importante para o desenvolvimento das competências, das habilidades relacionadas com a alfabetização e o letramento. A presença, o contato direto com a com as professoras é relevante. É uma fase que deve ser priorizada.
Do ponto de vista da aprendizagem e da autonomia, essas duas fases são as mais importantes. As crianças precisam estar em contato com outras. Elas ainda não tem autonomia de aprendizagem.
A segunda parte do Ensino Fundamental é uma fase crítica por conta do abandono escolar. Muitas crianças abandonam a escola. Então, por questões sociais de trabalho infantil, economia da família, uma série de fatores sociais que determinam o abandono escolar. Essa fase tem que ter uma atenção, sobretudo, na educação híbrida. Tem que analisar, se vai ser adotado o modelo híbrido, as crianças com maior risco de abandono devem ser incentivadas para a educação presencial.
Como deve ser essa prioridade no retorno?
Cada escola tem que saber identificar quais são aquelas crianças que tem dificuldade de conexão, que não conseguiram acompanhar as aulas remotas ou crianças que já não estavam mais frequentando. A prioridade da volta presencial deve ser para essas crianças, as crianças que estão em risco de abandono.
A escola tem que fazer um esforço, a partir das frequências, das informações que tenha, das informações sociais, em articulação com a assistência social, descobrir quais são as crianças que estão em risco de abandono. Essas crianças devem ter preferência no sistema híbrido ou um sistema de rodízio nessa fase inicial.
Em relação ao Ensino Médio, passada a 1º e 2ª onda da pandemia, meses sem aula, qual o impacto é percebido no atual momento?
Aí é um outro tipo de abordagem. Estamos com risco muito alto de muitos adolescentes não se inscreverem para realizarem o Enem. Muitos já não realizaram no que aconteceu no início do ano. Então, o trabalho aqui é muito de motivação para que eles continuem acompanhando o processo, mesmo remoto.
É muito importante monitorar a motivação, a saúde mental dos adolescentes, porque são projetos de vidas que estão frustrados, são sonhos que estão adiados, pressão para entrar no mercado de trabalho. Aqui, além do trabalho de monitoramento do risco de abandono, também é preciso um trabalho muito forte de apoio à saúde mental.
Vocês do Unicef estão acompanhando como será a volta às escolas públicas de Fortaleza?
O Unicef apoiou a volta segura. Temos um protocolo de retorno seguro à escola. Esse protocolo está na plataforma Busca Ativa Escolar, e não só em Fortaleza, mas em todo Ceará o Unicef tem incentivado os municípios a identificarem os alunos em início de abandono.
Incentivou coordenadores escolares a fazerem esse levantamento das condições de reabertura das escolas para que o município pudesse preparar ali a infraestrutura mínima de água e esgotamento nas escolas.
Há algum diagnóstico? E o que precisa ser feito?
Estamos trabalhando na busca ativa. A prefeitura contratou uma quantidade muito boa de educadores sociais que vão fazer busca ativa, e o município tem um sistema de frequência escolar que é muito importante no monitoramento da presença na escola. Então, estamos trabalhando junto com a prefeitura e a gente espera que essas experiências de monitoramento de Fortaleza possam ser levadas para os municípios do interior do Estado.
Como vocês tem percebido essas diferenças entre as 184 redes municipais e a estadual? A realidade na pandemia, de fato, é muito distinta em cada uma, ou há uma certa homogeneidade nas características e desafios?
Acho uma coisa muito importante de dizer é que as escolas estavam abertas. Muitas delas fazendo a entrega de material, produzindo cópias, e, em muitos municípios foi feito o trabalho de recuperação das escolas, pintura, reorganização das instalações hidráulicas e elétricas. Nos municípios mais organizados, durante a pandemia, as escolas foram organizadas e estão em condições de fazer a reabertura. Alguns municípios, não. Os mais pobres, com menos recursos, com menos condição de investimento.
A gente observa que esses ainda tem algumas dificuldades, sobretudo, na zona rural. Em alguns municípios do Ceará, as escolas ainda não tem essa condição básica de funcionamento.
O Unicef acompanhou 23 municípios e a gente observou que a resposta está muito relacionada com a capacidade de investimento e com a organização da Secretaria da Educação, e que esses lugares com áreas rurais extensas é um pouco mais difícil.
Um dos dilemas é o transporte escolar. Nem todos os municípios têm uma boa estrutura de transporte escolar. Ainda tem município no Ceará que faz transporte em paus de arara. É um transporte escolar totalmente despreparado para um retorno seguro. No município que não organizou, por exemplo, o transporte escolar, ainda vai ser difícil fazer o retorno.
São 184 realidades diferentes, e foram 184 respostas diferentes também. Não houve assim uma uniformidade.
Hoje, quantos municípios estão cadastrados na plataforma de busca ativa do Unicef?
Todos estão cadastrados. Dois ou três municípios ainda estão pendentes de documentos, mas todos estão cadastrados. Agora, com o retorno das aulas presenciais, deve ser intensificada a busca ativa daquelas crianças que abandonaram [os estudos].
Essa é a primeira vez que todos estão cadastrados?
Sim, essa é a primeira vez.
Os riscos de abandono e a situação dos mais vulneráveis são grandes focos de preocupação, mas além disso, quando a gente pensa no retorno, tudo o que precisa ser recuperado, qual deve ser o foco na perspectiva pedagógica e emocional?
A saúde mental no Ensino Médio é um dado super importante. A garantia de proteção contra o trabalho infantil nas séries finais do Ensino Fundamental. São coisas que tem que montar uma vigilância muito de perto. O reforço na aprendizagem das crianças que estavam no processo de alfabetização, e a garantia de criar um ambiente que permita que a experiência da educação infantil que não foi vivida pelas crianças ainda pode ser restabelecida. Então cada nível de ensino tem o seu próprio desafio.
Mas, tem um grupo também que está invisibilizado na pandemia, é o das crianças com deficiência física e necessidades educacionais especiais. Esse grupo está bastante prejudicado. É preciso ter um olhar muito especial para essas crianças porque é um grupo que demanda educação presencial, contato, relação com outras crianças.
A gente tem que começar debater e falar sobre isso porque cada ano que uma criança desse grupo perde, é um ano difícil de se reconquistar. Não é impossível, mas é difícil. Exige um esforço concentrado.