Pânico e traumas: motoristas já habilitados voltam a aulas de direção para perderem medo de dirigir

Conversas e adaptação de métodos são alternativas para gerar confiança nos condutores

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Maior parte do público desse serviço é de mulheres, contam instrutores
Foto: Freepik

Desde tremores e palpitações até desmaio ao volante e urina no banco. Relatos de instrutores de direção em Fortaleza mostram que dirigir pode ser uma atividade desgastante mesmo para condutores já habilitados. É para superar esses medos e ganhar autonomia de locomoção que, em muitos casos, essas pessoas buscam apoio profissional.

A aposentada Lúcia Helena, de 60 anos, é habilitada há 30 anos, mas não conseguia assumir a direção. Antes da pandemia da Covid-19, ela já havia tentado conquistar confiança em duas escolas para habilitados, mas a emergência sanitária adiou os planos.

“Todo ano eu boto uma meta e, nesse, foi dirigir”, lembra sobre o início de 2023. Atualmente, ela continua em aulas, mas já teve avanços importantes ao longo dos últimos dois meses. “Hoje tenho liberdade, não preciso de ninguém para fazer minhas coisas e me sentir bem. A idade não interfere em aprender. Estou muito bem e já saio só”.

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Coordenadora da Pânico de Dirigir há 28 anos, Emilene Rodrigues explica que a procura não é tão incomum quanto se pensa: entre 200 e 250 pessoas solicitam os serviços por ano, em média. Em sua observação, os clientes chegam com déficit no aprendizado porque só treinam o exigido para passar no teste de direção do Departamento Estadual de Trânsito (Detran).

O instrutor Francinaldo Batalha, atuando na área há 17 anos com média de 15 clientes por mês, confirma a hipótese. “As manobras exigidas no teste são muito poucas, 90% dos que saem habilitados não têm condições de ir para o trânsito. O domínio do carro é zero”, diz.

Por isso, todo processo de “reabilitação” começa com uma aula avaliativa para se perceber a noção de espaço e os conhecimentos básicos de marcha e freio. Esse primeiro momento costuma ser bem difícil, revela a coordenadora da Pânico de Dirigir.

“O trajeto de um cliente incluía subir um viaduto e a pessoa desmaiou ao volante de tanto medo. Hoje, dirige pra todo canto. Outra aluna, quando voltou dessa aula, tinha feito xixi no banco do carro”.

Após o diagnóstico, aponta ela, o mesmo banco se torna um “divã”. Muita conversa é necessária até o desenvolvimento da confiança. “Essas pessoas passam muito tempo sem dirigir e nem imaginam que conseguem fazer um percurso. Nós mostramos a real capacidade que elas têm”, ressalta.

Legenda: Alunas comemoram independência e facilidade na resolução de problemas pessoais
Foto: Freepik

Batalha complementa sobre o trabalho de desfazer as inseguranças e retirar bloqueios colocados, muitas vezes, pelos próprios familiares. “A gente ensina o cliente a ter controle da máquina. As aulas iniciais são em ruas bem pacatas, onde têm vagas em qualquer lugar. Depois, vamos para um trânsito mais intenso, aumentando marcha e velocidade, estacionando num shopping, indo para uma BR”, descreve.

A intensidade de uma rodovia federal botava medo na professora Dryelen Hermínio, 34 anos, pois fazia parte do trajeto para a escola onde leciona. Ela tinha carteira desde 2019 e dependia do marido para ir e voltar do trabalho. Depois das aulas entre março e abril deste ano, ganhou autonomia e passou a economizar tempo.

“Por conta dessa dependência, decidi pagar 10 aulas. Na metade, já peguei o carro e saí sozinha, tremendo, meio chorosa, mas consegui ir. O instrutor passa confiança e dá pequenas dicas, mas de um jeito tranquilo. A gente consegue rapidamente superar os medos. Parente não, geralmente não tem paciência e passa vícios”, percebe. 

Perfil dos interessados

Segundo as três escolas para habilitados consultadas pelo Diário do Nordeste, a idade do público varia de 18 a 80 anos, e entre 80% e 90% do público é formado por mulheres. Eles destacam um componente machista presente nesses números. 

“Algumas relatam que o marido ou o pai é muito ciumento com o carro, tem medo de ela bater, não incentiva a pegar o carro. Aí chegam até mim e dizem: ‘pronto, agora comprei o meu carro e quero dirigir’”, conta Francinaldo Batalha. 

Por outro lado, “homens são mais difíceis de trabalhar”, diz Emilene. “Como eles ganham carrinho desde que são crianças, acham que têm a obrigação de saber dirigir e não querem aceitar ajuda”. Geralmente, a procura masculina ocorre por motivos de trabalho.

Segundo Thiago Alencar, instrutor há 6 anos que atende a cerca de 120 pessoas por ano, outros fatores apontados pelos clientes são só dirigir na época da autoescola, envolvimento com acidentes de trânsito e medo da insegurança nos ônibus.

“A maioria é pra desafogar o marido em casa, outras pra ficar totalmente independentes, outros para trabalho, outros para desenferrujar”, afirma.

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Tempo de retorno

A quantidade de aulas varia conforme a aptidão de cada aluno ou aluna. No caso de Dryelen Hermínio, foram necessárias apenas cinco. Contudo, segundo Emilene Rodrigues, já houve casos para 40 encontros. “Essas são pessoas que têm muito medo ou não sabem mesmo”, afirma.

Porém, também há procura por pessoas com alguma deficiência ou desordem cognitiva, que exigem adaptação do trabalho do instrutor Gerardo Loreto. Uma aluna só enxergava com um olho; o instrutor tampava o mesmo para ter noção das condições de visibilidade. Outra era deficiente auditiva, exigindo comunicação em gestos. Também já enumerou os pedais para melhor compreensão de outra que não entendia as diferenças.

Quanto custam as aulas?

Os preços variam conforme a escola. Alguns profissionais trabalham com aulas avulsas entre R$70 e R$80. Outros fecham pacotes que variam de R$500 a R$1.800, com, no mínimo, 12 aulas.

Além da recompensa financeira, garantem os instrutores, a maior satisfação é receber mensagens positivas sobre o ganho de liberdade das alunas. “O retorno é a felicidade de elas terem conquistado a independência. Agora, elas pedem pro marido filmar e mandar pra mim”, brinca Thiago Alencar.

“Todo mundo tem um tempo e temos que respeitar o de cada um”, finaliza Emilene, da Pânico de Dirigir.

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