Oiticica é o “fim do mundo”

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O Distrito de Oiticica, em Crateús, é o símbolo de todas as dificuldades dos sertanejos esquecidos entre o Ceará e o Piauí

Crateús. Pense se você gostaria de morar em um lugar desses: caminhonetes pau-de-arara só passa durante o verão, se não tiver chovido antes e com muita dificuldade. Motos enfrentam verdadeiro percurso de rally, com lama, buracos e rochas que fazem o piloto pular de um bico de pedra para outro. Durante o inverno, o acesso fica interrompido e é preciso seguir de bicicleta, a cavalo, jumento ou a pé, gastando até cinco horas rumo ao distrito mais desenvolvido. Sacrifício que, diariamente, deve ser feito para chegar ao posto de saúde e dar ou receber telefonemas.

Não pára aí: saneamento básico e água encanada são sonho. A cacimba feita pela Prefeitura tem líquido salobro. Para beber, é preciso ir à fonte natural mais próxima, o que significa 20 minutos de serra com a lata d’água na cabeça. Políticos não aparecem nem em época de eleição. Eles enviam cabos eleitorais. Até os padres só celebram missa uma vez por ano no local.

Não acredita que possa existir um lugar assim no Ceará do século XXI? Pois este é o distrito de Oiticica, em Crateús, a 354km de Fortaleza. Distante cerca de 47km da sede do município, Oiticica pode ser considerada o coração do “Cerapió”, um símbolo de todas as dificuldades que afligem os sertanejos esquecidos entre o Ceará e o Piauí. Mas esse coração bate cada vez mais fraco. Apenas 20 famílias moram no distrito.

O aposentado Antônio Marcos Filho, 67 anos, sobrevivente do local há 53 anos, lembra de ter visto cerca de 100 famílias ali. Hoje, a maioria das casas está abandonada. Algumas, viraram escombros. A população busca melhor sorte no distrito de Ibiapaba — o “mais desenvolvido” —, em outros locais de Crateús e até em São Paulo.

Linha imaginária

Oiticica é tão singular que abriga alguém como a agente de saúde piauiense Maria do Carmo Silva, 52 anos. Conhecida por “Iá”, ela é a única a cuidar dos enfermos do distrito desde 1991. A singularidade começa pela casa onde mora. Ao passar da sala para a cozinha, sai do Estado do Ceará para o Piauí, em uma linha imaginária traçada a partir da placa da divisa, situada ao lado da ferrovia. Assim, a entrada e o quarto da residência da agente ficam no território cearense, já o quintal, em terras piauienses.

Semanalmente, ela visita as 20 famílias de Oiticica e outras 15 das redondezas, incluindo um morador já do Piauí. Para isso, conta com a ajuda do marido, que a leva de bicicleta ou a cavalo. Quando é preciso buscar medicamentos, ela tem de ir ao posto de Ibiapaba e enfrenta a via-crucis dos 21km que separam os distritos.

Apesar de o acesso terrestre sempre ter sido difícil, Oiticica teve o subdesenvolvimento agravado por volta dos anos 1980, quando o transporte de passageiros foi desativado pela extinta Rede Ferroviária Federal (Rffsa). De 1932, quando foi inaugurada, até o fim dos anos 60, a Estação de Oiticica foi ponta de linha do transporte sobre trilhos no Ceará. Mas, há mais de 20 anos, apenas trens cargueiros passam por ali.

Somente funcionários da Transnordestina Logística são autorizados a fazer o percurso para a manutenção da estrada de ferro. Mas, às vezes, a urgência de uma doença ou o isolamento do inverno atinge os moradores tão intensamente que os operários lhes dão carona, mesmo contra as ordens da empresa que opera o transporte de cargas. “É uma esmola que eles fazem pro povo”, diz Antônio Marcos.

Celebração da palavra

Antes de ser agente de saúde, dona Iá trabalhou como professora em Oiticica. Também é uma das duas mulheres que abre a Igreja Católica local todos os domingos e conduz a celebração da palavra com os poucos fiéis que restam. Uma forma de manter o vínculo do povo com Deus na ausência dos padres. Ela é ainda presidente da Associação Comunitária de Desenvolvimento de Oiticica. Com freqüência, tenta melhorias para o distrito na sede de Crateús, mas assume que “as coisas estão vindo meio devagar”. A energia elétrica, por exemplo, só chegou em 2008.

Para ela, o fato de o distrito estar em área de litígio não justifica a situação. “O problema é o descaso que os políticos têm. Do jeito que está, fica mais distante pra gente estar cobrando deles”, extravasa.

Com tanto sofrimento, por que não ir embora? “Primeiro, é o que eu posso fazer pela comunidade. Segundo, pela tranqüilidade de viver aqui, apesar das dificuldades”, exalta. Seu Antônio diz nunca ter visto um só roubo em Oiticica. “Acho sossegado. Aqui, você pode dormir num alpendre”, diz. Prova de que o povo sertanejo vê o lado mesmo no sertão de problemas. (IJ)