Histórias de pescador: sobreviver a naufrágio e vencer medo do mar é lida de quem vive das águas

No dia Dia do Pescador, 29 de julho, a trajetória de que tira sustento da pescaria. No Ceará são mais de 55 mil homens e mulheres que vivem da pesca

Escrito por André Costa , andre.costa@svm.com.br
Legenda: Mulheres se tornam protagonista na atividade pesqueira
Foto: Cáritas/Divulgação

"Tenho orgulho de ser pescadora". A frase com tom de empoderamento é da pescadora Maria Arnelina de Castro Neta, hoje com 41 anos. Há uma década e meia ela iniciou, nas águas do Açude Arneiroz, essa trajetória pioneira em sua família. "Sou a primeira mulher pescadora e me sinto muito feliz assim"

Para celebrar o Dia do Pescador, comemorado neste 29 de junho, o Diário do Nordeste reuniu histórias de pessoas que extraem o sustento das águas e mudam a vida através da pesca.No Ceará, são mais de 55 mil homens e mulheres que vivem do ofício de São Pedro, santo que divide o di ade homenagens.

Para esta mulher pescadora as águas começaram a mudar em 2006. A saúde financeira da família não estava boa e Dona Maria se viu "na obrigação" de ajudar seu companheiro Borges Salviano, que até então pescava sozinho.

"Ele não tinha ajudante, até porque a gente não tinha condições de pagar por um. Mas precisava expandir a pesca, em alguns momentos a gente passava dificuldade em casa, então me senti na obrigação de ajudá-lo", relembra.

Para entrar nas águas não foi fácil. Ela primeiro teve que vencer um grande medo: não saber nadar. Até hoje, revela Maria, ela não aprendeu, mas esse obstáculo não a impediu que ela iniciasse sua trajetória na atividade.

Até então totalmente leiga na pesca, ela diz ter contado com experiência e calma do esposo. "Antes eu só sabia tratar o peixe e ajudava a vender. Já cheguei até a trocar [o peixe] por comida. Mas aí ele foi me ensinando, fui aprendendo e pegando o gosto", detalha a pescadora.

Hoje já solto linha, gelo o peixe, enfim, faço todo o processo sozinha, se for preciso. E tenho muito orgulho disso. Me sinto feliz em poder ajudar em casa e melhorar a condição de nossa família.
Maria Arnelina de Castro Neves
Pescadora

Rotina de pescadora

A rotina dentro das águas começa cedo. Às 5 horas ela e o esposo já estão entrando dentro do reservatório para armar a rede de pesca. O processo é minucioso.

"A gente fica até por volta das 10h, 11 horas". Ao sair do açude, Dona Maria, assim como tantas outras pescadoras, inicia a segunda jornada. "Faço almoço, arrumo a casa, ajeito as coisas dos meninos, tudo isso tem que ser feito até 17 horas". 

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Neste horário o casal retorna ao açude para retirar a rede e contabilizar o que fora pescado. 'É chegado a hora de descansar?', pergunto. Dona Maria esboça um sorriso e afirma: "Não temos tempo para isso. Precisamos tratar o peixe e deixar no ponto de vender".

A rotina pesada não é motivo de lamento. "Pelo contrário, é sinal que a gente vai ter dinheiro para criar nossos filhos, dinheiro para colocar comida dentro de casa", comemora Maria, mãe de dois filhos. Eles não pescam. 

Legenda: Pescadores artesanais no açude Realejo, em Crateús
Foto: Cáritas/Divulgação

Superação 

A trajetória de Dona Maria é de superação. A mais complicada, segundo conta, é "nunca ter aprendido a nadar". "Aqui no [açude] Arneiroz tem muito vento e como ele está cheio, acaba formando umas ondas fortes, a canoa balança bastante e o medo de cair é diário", revela. 

Para driblar o medo,  não deixa perder de vista uma imensa boia, feita  'câmara de ar' de pneus. "Sempre a coloco dentro da canoa. Ela e Deus me protegem na pescaria".

Diante da proteção divina, Maria projeta o futuro dentro das águas. Após 15 anos desempenhando a atividade pesqueira, ela diz querer ir além.

"Primeiro eu queria que não houvesse mais preconceito. Muitas pessoas olham para essa profissão com vergonha e não há motivo para isso. Sou muito feliz, tenho orgulho e gostaria que todos entendessem a importância dessa profissão".
Maria Armelina
pescadora

Ela diz que também quero aprender novas coisas todos os dias. "Já aprendi a fazer bolinha de peixe, hambúrguer de peixe. A intenção é aprender a agregar valor ao pescado", ensina.

Há quatro anos a Cáritas Diocesana de Crateús passou a desenvolver atividades de apoio a pescadores e pescadoras da região. A formação continuada realiza cursos, palestras, encontros, oficina de culinária - onde  aprendem a agregar valor ao pescado - e trabalhados artesanais.

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Hoje são mais de 800 pescadores e pescadoras associados e engajados no projeto da Cáritas que, no ano passado, foi selecionado como uma das 10 soluções mais inovadoras do Brasil. "[A pesca] mudou não só minha vida, como a de minha família e a de tantas outras aqui que vivem da pesca. Por isso sinto tanto orgulho da minha atividade", conclui Dona Maria. 

Legenda: O jovem Daivid começou a aprender a pescar aos 12 anos de idade, com a supervisão de pescadores mais experientes do Arneiroz
Foto: Arquivo Pessoal

Nova geração

O "preconceito" e "resistência" aos quais Maria Arnelina se refere não se encaixam à trajetória do jovem Daivid Quitério Lô, de apenas 15 anos. Há três ele começou a dar seus primeiros passos na atividade, sob a supervisão de um pescador experiente na região. 

Comecei a pescar de anzol com 12 anos. De lá pra cá não mais parei. É minha grande paixão e quero evoluir cada vez mais.
David Quitério
Jovem-aprendiz

A evolução veio. Ainda na condição de jovem-aprendiz, Daivid hoje pesca em canoas, nos açudes de Arneiroz. Acompanhado de pescadores mais velhos, ele se mostra feliz com o aprendizado e revela querer seguir a profissão do pai. 

Durante a pandemia, com a suspensão das aulas presenciais, Daivid conta que tem passado a maior parte do tempo pescando. "Saio de casa às 5 horas da manhã e, a tarde, retorno para buscar a rede de pesca". Neste intervalo, ele estuda e cumpre as atividades escolares.

Sobre o futuro, o jovem mostra maturidade na resposta: "quero viver da pesca. É um ambiente em que me sinto bem, sei que poderei sustentar minha futura família, além de ser um trabalho digno e honesto". 

Legenda: No Ceará, a maioria dos pescadores se concentra em 26 cidades do Estado, entre elas Icapuí e General Sampaio.
Foto: Natinho Rodrigues

Sucessão ameaçada

As águas salgadas do mar de Icapuí, cidade do litoral leste cearense, foram responsáveis pelo sustento de três gerações da família Freitas. O pescador Evânio Santos de Freitas, conhecido como Rui, aprendeu a pescar aos 13 anos, com seu pai, Pedro Germano. Ele, por sua vez, teve como 'mestre', o avô de Rui, Seu Nieli, experiente e respeitado pescador no Município há quase um século.

A sucessão para a quarta geração familiar, no entanto, é incerta. Rui conta que "as águas já não estão para peixe", como antes. No início da atividade, há quase 30 anos, ele relembra que o valor apurado advindo da pesca era suficiente para "qualquer pescador criar sua família, hoje já não é mais possível".

Tenho um filho de três anos e uma menina de seis. Não sei se quero que eles sigam essa mesma profissão. Acho que se continuar assim, a tradição familiar será quebrada.
Evânio Santos de Freitas
Pescador

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Hoje Rui conquista cerca de um salário mínimo, mas confessa que alguns de seus amigos não "conseguem apurar nem 600 reais". Para complementar a renda da pesca, Rui faz artesanato com materiais recicláveis e também realiza esporadicamente trabalhos como pintor. 

A queda na renda dos pescadores de lagosta do litoral cearense deve-se, segundo ele, a pesca ilegal, feita com equipamentos de mergulho, chamados de compressores de ar, o que é proibido por lei.  "A lagosta sumiu. A gente tem pescado só água", aponta Evânio.

Legenda: Rui é pescador artesanal. Vai ao mar com manzuá, uma espécie de gaiola feita para capturar lagosta
Foto: Natinho Rodrigues

O que conseguimos em dois, três meses, eles (pescadores ilegais) conseguem em poucos dias. Além do prejuízo, há também o impacto ambiental. A lagosta não consegue se reproduzir, está sumindo do litoral.
Evânio Santos de Freitas
Pescador

Em um dia considerado "bom", Rui consegue tirar do mar cerca entre 10kg a 15 kg de lagosta, "Há uns dez anos era cinco vezes mais do que isso", rememora. 

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Perigos ao mar

Evânio Santos compartilha com Maria do medo das águas. Motivo pelo qual se soma à resistência de ensinar o ofício ao seu filho. "A gente sai de casa 4 da manhã e, dependendo do vento, voltamos 5 ou 6 da tarde. Às vezes, é preciso dormir no mar. Em dias de ventos fortes, é bem perigoso", conta.

As embarcações utilizadas na pesca artesanal são de pequeno porte e movidas a vento. Em quase três décadas de pescaria, Rui já vivenciou seis naufrágios.

"Em um deles, ainda quando era jovem, tive que nadar por mais de 5 horas. Só me salvei porque era jovem, tinha fôlego. Fosse hoje, não teria sobrevivido", avalia. Em outro episódio, conta que um dos pescadores ficou preso ao barco "e foi salvo por milagre".

Legenda: Os barcos utilizados pelos pescadores artesanais do litoral cearenses são, em sua maioria, movidos ao vento
Foto: Natinho Rodrigues

Risco de naufrágios, noites dentro de pequenos barcos e pouca renda. Tripé que seria suficiente para fazer desistir da profissão, não para o experiente pescador.

"Nossa história de vida se confunde com a pesca. Mesmo diante tudo isso, não me arrependo da minha profissão e, mais, digo que amo o que faço. Me sinto bem. Sei que poderia ser melhor, sei que se houvesse fiscalização da polícia para coibir a pesca ilegal ou apoio do governo para pagar um auxílio, a gente viveria melhor, mas mesmo assim, amo ser pescador", finaliza. 

SAIBA MAIS

A data 29 de junho celebra-se o Dia de São Pedro, apóstolo de Jesus que era pescador. O Santo virou padroeiro dos pescadores e, por esta razão, a data foi escolhida para comemorar o dia do pescador. Para os mais devotos, São Pedro representa proteção aos pescadores e boa pescaria.

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No Ceará são inúmeras as possibilidades da pesca. A atividade é realizada em água salgada e doce - açudes e rios - e dentre as várias modalidades, destacam-se a pesca artesanal, marítima e industrial. No Estado, segundo a Federação dos Pescadores do Ceará (FEPESCE), mais de 55 mil profissionais sobrevivem da atividade pesqueira.