Benzedeiras como deusas-mães

Escrito por Redação ,
Legenda: A casa da rezadeira é solo sagrado onde as plantas ganham dimensão especial
Foto: Elizângela Santos

Tão remoto quanto a origem do homem, os rituais sagrados pagãos dão conta de uma tradição mitológica

Crato. O ritual se reveste de mistérios. Símbolos sagrados, rezas, rosários, sal, água benta, cordão e nomes de santos envolvem o solo sagrado da casa das rezadeiras. Nos remete às divindades protetoras de origem africana, indígena e européia. Imagens de santos espalhadas pelas paredes mostram o sincretismo religioso.

Mãos ágeis sustentam ramos verdes e pequenos. Traçam no ar cruzes sobre a cabeça do doente. Tecem um fio invisível, poderoso, unindo as dores dos homens, mazelas sem fim à magia do benzimento. Ramos murcham, absorvem o espírito da doença. As orações invocam a santíssima trindade, não permitem cruzar pés e mãos para não invalidar a oração.

O elo mítico poderoso funde-se a voz sussurrada da rezadeira. A cadeia simbólica e imagética presente no verbo invade o ambiente. O poder da cura configura-se. As sessões sagradas das benzedeiras ao raiar do sol ou ao crepúsculo, oferecem um quê de lealdade ao deus Tupã, para aplacar, quem sabe, as forças invisíveis da natureza aos moldes de Ossaim, o orixá que detém o poder purgativo das plantas.

Tão remoto quanto a origem do homem, os rituais sagrados pagãos, objetos de estudo, teses e pesquisas ao longo da era racionalista dão conta de uma tradição mitológica praticada nas tribos primitivas.

A despeito de serem as deusas fadas-mães guardiãs dos elementos femininos das manifestações do mundo sensível, da essência espiritual, retirando o humano dos limites factuais, a figura das rezadeiras funciona como um código conectivo que agrega toda a riqueza espiritual presente na vida de uma gente despida de bens materiais, mas que expressam em suas diversas manifestações religiosas procissões de símbolos sagrados para conter a fúria implacável dos males terrenos.

Teatralização do pensamento

De sorte que a palavra como um fio condutor impulsiona a produção histórica cultural e, como afirma Roland Barthes, a teatralização do pensamento.

Dona Helena, 73 anos, é a quarta filha de Maria de Rita, 103 anos. Fazia suas rezas só em crianças, mas de tanto os grandes insistir, quando percebeu já estava tomada pelas orações: “Pelo ramo verde será afastado sete maus, sete dores e sete mau olhado do corpo de fulano de tal”. A mãe de seu pai era índia.

Foi caçada a dente de cachorro nos idos da febre da borracha, no Rio Acre, por seu avô, homem destemido, outrora caçador na Chapada do Araripe. Já curou muito torcicolo. “Eu amarro um pano branco no tornozelo e outro no joelho. Vou costurando o pano com linha também branca. A agulha emenda por fora o que dentro está desemendado”. Na oração pra vento caído: “Dor abrando a tua ira e quebro as tuas forças. Assim como Judas vendeu Cristo que é Nosso Senhor Jesus, por esse mundo andou, olhado e vento caído Jesus curou”, diz, na reza.

Moradora numa vila de casas simples, entre o Rio Constantino e o Rio Miranda, este totalmente morto, no Crato, que dantes abrigavam em suas margens o povo Kariri, ela nos conta o caso de um anjo que passou por suas mãos curandeiras. “Não viveu porque aquele que é de Deus logo é chamado de volta pra Deus. Nasceu assim, menino e menina ao mesmo tempo”, recorda.

“Esse anjo lindo de cabelos pretos veio ao mundo há trinta anos e ainda hoje não me sai do pensamento, me recordo de seu olhar divino”. Dona Helena enfatiza: “O coração diz se a reza cura ou não”.

Sua avó materna, mãe de Maria de Rita, foi escrava de Quintino Macedo, dono de terras a perder de vista no Crato oitocentista. Por vezes sente um desejo sem igual de andar pelas matas. Vai para a casa da irmã Preta, também rezadeira, moradora da Mata Escura, um lugar impar com muitos pés de pau, no dizer de dona Helena. “Me faz lembrar que possuo sangue escravo e índio”.

O poder de cura já possuía e não sabia. Aos 20 anos casou, tendo seu primeiro filho. Um dia a criança amanheceu doente, era mau olhado. Botou a reza para curar, foi quando dona Maria de Ana, rezadeira, sogra da irmã Preta, viu e ensinou as rezas de cura, e até hoje com o ramo na mão para soltar o mau no vento continua a curar e a benzer quem na sua casa entrar necessitando. “Deus é pai de Jesus / Jesus é pai do divino Espírito Santo/ com o poder de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito/ afasta todos os males desse corpo/ Amém”.

ANA ROSA BORGES
Especial para o Regional
É historiadora, especialista em Literatura Infanto-Juvenil, com estudos na vertente na oralidade

ANA CECÍLIA SOARES - Reza é ajuda divina
Especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela UFC
cecismonografia@yahoo.com.br

O processo de adaptação do homem na Terra ocorreu de forma lenta e sofrida. Cada minuto vivenciado pela humanidade simbolizava a sua vitória perante o meio magmatizado e camuflado de perigos. Na batalha pela sobrevivência, o homem separou e diferenciou tudo aquilo que fosse importante à sua própria vida em meio aos complexos traços do mundo. Em busca de um auxílio, o ser humano encontrou na esfera religiosa apoio ao que lhe desorientava e afligia. Cada impressão e desejo, cada perigo que o ameaçava, era outorgado um valor sacro. Tudo era vivido num plano duplo em que se desenrolava a existência humana e, ao mesmo tempo, a vida trans-humana, que é a do Cosmo, a dos Deuses.

No caso de doenças, o homem buscava proteção com amuletos, orações e consultas a feiticeiros. Esse misto de crendices e superstições foram transmitidos de geração a geração. Hoje, em plena sociedade contemporânea, caracterizada pelos grandes avanços, convivemos com alguns desses aspectos.

No Nordeste brasileiro, sobretudo, no Ceará, são bastante comuns. Em meio à placidez luminosa do sertão, adornada pela fúria da Caatinga, há mulheres portadoras da chamada sabedoria popular, cujos reflexos se fazem presentes nas rugas dos rostos e na calma fulgente. Elas entoam rezas ancestrais que, para os sertanejos, curaram os malefícios físicos e espirituais.

Conhecida pela designação de “Rezadeiras”, elas realizam seu ritual a todo o momento e para quem precisar, inclusive, para pessoas de alto poder aquisitivo. Como que munidas de uma força numinosa, promovem ato de solenidade de mais alto valor, no qual, numa simbiose, a natureza terrestre se associa à celestial. Logo, perpassam em preces o alento necessário que sanará o doente. Com galho de peão-roxo ou de vassourinha, expurgam as enfermidades do corpo humano.

Segundo o escritor Eduardo Campos, a procura dessa prática pelos sertanejos e pessoas de classe baixa de Fortaleza acontece, em geral, pela negligência e a falta de recursos da saúde pública. Diante da dor e das dificuldades para receber tratamento, só resta recorrer à ajuda divina. Apesar da problemática em questão, as orações e as “meizinhas” das rezadeiras obtêm resultados satisfatórios junto aos seus seguidores. O trabalho delas é tão importante que até os profissionais mais letrados reconhecem seu ofício, utilizando-o nos postos de saúde. O poder de cura delas vai além do que é tido como racional. Simples frases proferidas com fé e esperança, atenuam os sofrimentos, aliviam as almas e reconstroem os ânimos.