Pescadoras: números revelam ficção

Raras mulheres atuam na pesca da lagosta no Ceará, mas dezenas de pagamentos são feitos onde elas não existem

Escrito por Redação ,
Legenda: Rede de fraudadores inclui nomes de marisqueiras e esposas de pescadores
Foto: FOTO: KLÉBER A. GONÇALVES

Se fossem verdadeiros, todos os dados fornecidos pelas colônias de pesca e, por sua vez, pela própria Secretaria Estadual de Pesca (Seape), o Ceará poderia ser considerado o paraíso das pescadoras do mar.

> Dinheiro na rede da pesca fantasma

Cerca de 300 mulheres passariam até 15 dias na pesca da lagosta em águas profundas. Somente em Fortim, estariam 97 delas, conforme o que foi pago no cadastro do seguro-desemprego em 2014. Nenhuma delas é de verdade.

Mulher pescadora de lagosta no Ceará, maior estado produtor desse crustáceo, é algo tão raro que a história de Sidneia Lusia da Silva, em Icapuí, virou filme. O título não poderia ser ainda mais enfático: "Uma pescadora rara no litoral do Ceará". Conta o cotidiano de Sidneia, ou apenas, Sid, na pesca em alto- mar com o pai e os irmãos a partir da Praia de Redonda, em Icapuí, no litoral leste do Ceará.

Enfrentando o preconceito de gênero, segue o pai desde os 10 anos de idade para onde "não é lugar de mulher", costuma ouvir. O documentário de 15 minutos foi lançado em 2011 e recebeu nove prêmios em festivais de cinema pelo Brasil.

Mas o que o cinema trouxe da realidade, o cadastro nacional de seguro desemprego traz da ficção. Não há, em Fortim, Daniele, Dalvilene, Elione, Denice, naci, Alzenilda e outras dezenas de nomes que, somente em 2014, receberam mais de R$ 60 mil em seguro-desemprego.

Direito ao cadastro

"Essa disparidade gritante é o que estamos tentando combater e dependemos do apoio das próprias entidades de pescadores e pescadoras", afirma Júlia Colares, coordenadora do seguro-desemprego do Sine/IDT no Ceará. A presidente da Colônia de Pescadores Z-21, em Fortim, Luzirene Gomes Ribeiro, reclama que não é possível ter controle dos nomes de pescadoras de lagosta. Isso porque esposas de pescadores podem ser cadastradas nas colônias, sendo ou não marisqueiras, a atividade mais comum realizada pelo sexo feminino no litoral cearense. "Elas têm o direito ao cadastro, não de pedir seguro".

Ana Amélia Rodrigues é marisqueira na Vila Viçosa, em Fortim, onde o Rio Jaguaribe deságua no mar. É mesmo ali na foz que ela e o esposo, Danilo Rodrigues, saem em uma pequena canoa para o meio do leito catar sururu e búzio, os principais mariscos da região. Passam até oito horas embarcados, sob o sol, e voltam com 20 kg, em média, de mariscos. Com uma pequena fogueira na beira do rio, colocam o pescado para ferver em uma grande panela. Quando esfria, descascam, peneiram e separam somente o 'miolo'.

Como a casca é o que mais pesa do marisco in natura, o que era uma grande carga se transforma apenas em pequenos pacotes vendidos a R$ 5 cada. Em Fortaleza, chega a ser comercializado por até R$ 30 o quilo.

"Eu sei que eu não posso ter o seguro, nem meu marido. Porque a gente pesca marisco e isso não dá auxílio". De acordo com o Ministério Público do Trabalho, parte das mulheres cadastradas como pescadoras de lagosta, quando não existem, são em verdade marisqueiras. Esposas ou não de pescadores, elas entregam os documentos para os agenciadores da fraude garantirem o benefício.

Superior ao Censo

O cruzamento de dados do Seguro Defeso da Pesca Artesanal (SDPA) com o censo do IBGE permite identificar uma grave disparidade entre a quantidade de mulheres que se declararam pescadoras e o número de beneficiárias do seguro.

A discrepância fica melhor verificada entre os anos de 2008 e 2012, período em que houve um grande aumento nos cadastros de pescadores. Se o caso citado do Ceará já parece exorbitante, é quase nada entre as unidades mais pagadoras. No Estado, pelo menos, o número de mulheres que declararam-se pescadoras no Censo de 2010 (712) não é menor do que o das beneficiadas no mesmo ano (436).

Em todo o Estado do Pará, segundo o mesmo levantamento do IBGE, 9.934 mulheres se declararam pescadoras. No mesmo ano, nada menos que 70.779 foram atendidas no seguro-defeso por estarem exercendo a mesma atividade. Na Bahia, a disparidade prossegue: enquanto 6.092 mulheres se declararam pescadoras, em igual período, 47.089 receberam o seguro. No Maranhão, enquanto o IBGE registra que as mulheres representam 12,3% do total de pescadores artesanais, elas respondem por 53,5% dos beneficiados.

"Dá a ideia de uma atividade eminentemente feminina, embora saibamos que é o contrário, diferentemente de Icapuí, onde as cadastradas, atualmente, são reais", diz Amaurílio Júnior, do Ministério Público Estadual no município. Tempos atrás, a realidade local era outra: havia requisições de seguro por suposta mulheres pescadoras. É como se Sidneia Lusia, da Praia de Redonda, aquela cuja vida virou filme, não fosse tão sozinha no enfrentamento do preconceito de gênero, nem 'rara' no mar.

Seguro não contempla seca prolongada no Sertão

Com três anos de seca prolongada, entre 2012 e 2014, os estados do Nordeste viram os seus reservatórios esvaziarem. A água que some é a que leva o peixe e a renda de milhares de pescadores artesanais. Mesmo assim, muitos não têm conseguido o seguro, embora sejam pescadores reais regulamentados nos órgãos de pesca.

Em Canindé, no Sertão Central do Ceará, 50 pescadores realizaram protesto no dia 22 deste mês em frente à prefeitura municipal. Queriam pedir ao prefeito Celso Crisóstomo que buscasse uma reunião com o governador Camilo Santana para resolver o problema.

Em encontro com o governador dois dias depois, a coordenadora do seguro-desemprego no Sine-IDT, Júlia Colares, explicou por que não é possível liberar a maior parte dos requerimentos de seguro-defeso. "Até mesmo para garantir a sustentabilidade ambiental, a lei dá um limite para a pesca em reservatórios. Um açude que tinha 50% da capacidade não pode comportar o mesmo número de pescadores quando tem 20% do volume, a própria pesca não é tão possível, mas todos esses requerentes tentam o benefício".

Nem todo peixe

O peixe de água doce mais comum no Ceará é a tilápia, mas esse não entra no cadastro do seguro, por não haver um período em que a pesca deva ser interrompida para a reprodução da espécie. Esse desconhecimento por parte de muitos pescadores faz com que requisitem o seguro. Para Júlia Colares, é o caso de esses trabalhadores buscarem assistência em outras políticas públicas de auxílio.

Para as espécies contempladas na legislação, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e Pesca, sancionada em junho de 2009, considera direito o defeso com base na lei específica de 2003. Em casos de "paralisação temporária da pesca para a preservação da espécie tendo como motivação a reprodução e/ou recrutamento, bem como paralisações causadas por fenômenos naturais ou acidentes". Foi esse o dispositivo acionado nos Estados de Rondônia e Acre durante cheias ocorridas entre os anos de 2009 e 2011.

Para o procurador regional do trabalho, Nicodemos Maia, ainda falta tratar da seca prolongada como um justificador do acesso legal ao seguro-desemprego para a pesca. Conforme Júlia Colares, a proposta ideal, nesse caso, seria uma extensão do bolsa estiagem, dado a agricultores, contemplando também os pescadores, uma vez que todos são atingidos pelo mesmo fenômeno de que todos dependem, a água da chuva.

Melquíades Júnior
Repórter