Sucessão dos pescadores é incerta

A despeito do menor número, os pescadores artesanais mantêm aquecido o mercado comprador

Escrito por Nícolas Paulino - Repórter ,
Legenda: Em alguns casos, os próprios pais não querem que os filhos sigam a dura rotina
Foto: Foto: Natinho Rodrigues

Pela manhã, a madeira está quente, temperada pelos grãos de areia e pelo sal que corre no vento. As cordas, porém, estão gastas. A ferrugem avança e consome a dureza do ferro. A tinta amolece e descasca, deixando nua a pele de Suzy. A jangada, agora, precisa de resina para se renovar e se sustentar. O homem que faz o serviço, porém, também precisa de cuidados. O bronze da pele é queimado de sol, os músculos já não têm o mesmo vigor da juventude, a coluna protesta pelo acúmulo de esforço ao longo dos anos. No fim, são sobreviventes, a embarcação e seu pescador.

O casamento de Suzy e Edson Ferreira de Souza, 50, tem um juiz, que nem sempre é de paz: o mar. Por vezes calmo, por vezes revolto, é ele que ainda proclama o veredito de milhares de pescadores cearenses, diariamente, desde que Edson iniciou a aventura de desbravá-lo, há 41 anos, na orla de Beberibe. Menino travesso, aprendeu a pescar sozinho contra a vontade do pai, também pescador. "Ele não queria isso pra mim e eu não entendia porquê", remonta.

Morando em Fortaleza há 33 anos, agora é ele quem não indica o trabalho para nenhum dos "quatro filhos, quatro netos e uma bisneta", como enumera. Afinal, um pescador sabe quando sai para o mar - às 3h da manhã, em alguns dias -, mas não quando volta. Na água, pode passar mais de 12h de pé, sem se abancar. Se houver tempo para dormir, a cama é uma tábua e, o travesseiro, uma bolsa com poucos pertences. Às vezes, dos cinco dias que passa no mar, talvez durma um.

Na lida, precisa ainda contar com o humor do juiz, porque tanto já pisou "no seco" com 200Kg de pescado como, em tempos mais duros, passou três dias sem botar as panelas no fogo porque a rede não "roeu" peixe para comer. Mas Edson cultiva ingratidão? Nem um pouco. "Sustentei minha família com a pesca. Sou um analfabeto que deu estudo aos filhos. Não que o estudo seja tudo, mas é uma parte importante da vida do homem", orgulha-se.

Legado

Se os olhos são a janela da alma, a de Edson resplandece ao falar dos filhos. Um deles nasceu pouco depois do retorno de uma das incursões marítimas diárias. Mesmo "morto de sono", correu com a mulher para o hospital. No entanto, a tradição da pesca na família, herança do avô, morre com ele. Assim como, talvez, também morra em outros ramos da árvore familiar, já que outros tios e primos pescadores compartilham de sua opinião.

"Os mais velhos não querem que os mais novos permaneçam porque as dificuldades não mudam", explica o homem. "Um dos meus filhos ainda me acompanhou por dois anos, mas eu mandei que fosse estudar". Para Edson, a perspectiva é uma: pôr a trouxa sobre os ombros, abrir a porta enquanto o céu ainda está escuro e dizer à filiação: "Eu vou, mas tal dia volto".

Noutro ponto do Mucuripe, vive um monarca. Osvaldo Alencar, prestes a completar 60 anos, se autointitula o "rei da piaba". Dos 30 anos mexendo com o mar, saiu da pesca da lagosta e passou às luzidias sardinhas, que hoje distribui para abastecer parte do mercado gastronômico da Capital, a R$ 10 o quilo. Ao contrário de Edson, é um fado que ele deseja aos herdeiros. "Você não tem patrão, trabalha a hora que quer e depois vai para casa descansar", descreve.

O príncipe das piabas, Vitor Alencar - aos 17 anos, ajuda o pai desde os 15 -, não maneja uma espada de esgrima, mas uma peixeira, que, conduzida pelas mãos habilidosas, rasga as vísceras das sardinhas e faz pular dezenas de escamas. "Aqui é arte", gaba-se. Para o mar mesmo, porém, ele nunca foi. "Eu já vi e meu pai me falou como é", diz, enquanto joga mais um pescado dentro do balde de sangue.

Recuo

A pesca artesanal vem encolhendo em Fortaleza. Segundo o presidente da Colônia de Pescadores Z-8, Possidônio Soares, o contingente de 2.500 profissionais do mar que hoje atua no litoral será menor no ano que vem. E no seguinte. E depois. "Com o passar dos anos, os mais velhos vão se aposentando e os mais novos não se interessam", avalia.

Os pescadores mais jovens na Colônia têm cerca de 25 anos. "Com a modernidade e mais escolaridade em terra, os filhos acham que não devem pescar. É uma realidade no Nordeste e em todo o Brasil", revela. Mesmo assim, a despeito do menor número, Soares explica que são os pescadores artesanais que mantêm aquecido o mercado de peixes e frutos do mar.

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