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Qual o papel do Governo do Ceará no processo de demarcação de terras indígenas no Estado

Secretária que assumirá gestão de políticas para os povos indígenas do Ceará, Juliana Alves aponta projetos para o Governo Elmano

Escrito por Ingrid Campos , ingrid.campos@svm.com.br
Juliana Alves Cacika Irê Jenipapo-Kanindé
Legenda: Juliana Alves, a Cacika Irê do povo Jenipapo-Kanindé, é a secretária dos Povos Indígenas do Ceará.
Foto: Fabiane de Paula

Apesar de ser um direito garantido na Constituição de 1988, os 15 povos indígenas do Ceará residentes em 19 municípios ainda aguardam a regularização de suas terras. Alguns grupos, como os Tremembés e os Tapebas, por exemplo, têm processos bem encaminhados. Outros, contudo, ainda estão em fase de identificação pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ou sequer começaram essa etapa.

O Estado, que é um dos mais atrasados nesse quesito, pode ter a chance de reverter esse cenário e avançar na demarcação dos territórios originários. Com lideranças locais no alto escalão do Executivo Nacional e Estadual, indígenas do Ceará ganham espaço para estabelecer diálogo institucional com diversas frentes.

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No inédito Ministério dos Povos Indígenas, a Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena é gerenciada por Ceiça Pitaguary. Já no governo cearense, Juliana Alves – a Cacika Irê do povo Jenipapo-Kanindé – é quem está à frente da nova Secretaria dos Povos Indígenas. No Ministério da Saúde, Weibe Tapeba, que também é vereador licenciado de Caucaia, assume a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). 

Agora, a prioridade é atender a urgências dos povos originários a nível local e nacional e encaminhar os processos de demarcação de terras. “Foram quatro anos de desgoverno que não estava preocupado nem um pouco no que diz respeito a isso. Por mais que a Justiça obrigasse a Funai (a compor grupos de trabalho para realizar estudos sobre as terras e os povos), o presidente da Funai (Marcelo Xavier à época) fez pouco caso das situações”, aponta Juliana. 

Mas somente a regularização dos territórios não basta. Exemplo disso é o povo Yanomami, que mesmo com terras oficializadas há 30 anos, tenta se livrar, hoje, de uma grave crise sanitária e do garimpo ilegal. Weibe, inclusive, visitou a localidade (entre Roraima e Amazonas) no último fim de semana para sistematizar medidas de socorro. 

"A remoção dos mais de 20 mil garimpeiros precisa ocorrer urgentemente. Planos articulados para a recuperação dos rios e áreas desmatadas, plano de segurança alimentar e nutricional, plano de logística e infraestrutura, plano de segurança e proteção territorial, são medidas que estão sendo pensadas para solucionar essa crise humanitária", informou pelas redes sociais.

No âmbito do seu respectivo ministério, Ceiça também contribui com os dois gabinetes de crise instalados neste mês para tratar tanto da questão Yanomami quanto do assassinato de dois jovens indígenas Pataxós na Bahia. As crises mais recentes vividas pela população indígena devem ser foco da pasta nos próximos meses.

Ação estadual

O governador Elmano de Freitas (PT) vai trabalhar, junto à Assembleia Legislativa, em uma Reforma Administrativa para formalizar a criação da Secretaria Estadual dos Povos Indígenas e dar encaminhamento às pautas necessárias.

Assim, pode coordenar, junto à chefe da pasta e ao Ministério dos Povos Indígenas, um modelo de colaboração para regularizar as terras originárias. “Existe a boa vontade do governador para que esses processos avancem, mas vão ser feitas tratativas junto ao Governo Federal, que é sensível às causas dos povos originários”, afirma Juliana Alves.

Cerimônia simbólica de posse de Juliana Alves. Secretaria ainda será criada
Legenda: Cerimônia simbólica de posse de Juliana Alves. Secretaria ainda será criada
Foto: Fabiane de Paula

Apesar de ser um andamento guiado pelo Planalto, a gestão estadual também pode auxiliar nas fases que findarão na demarcação, cedendo equipes e materiais, entre outros atos. Em 2016, por exemplo, o Estado firmou Termo de Acordo com a União, a Funai e a Prefeitura de Caucaia para dar andamento ao reconhecimento do território Tapeba. 

O processo já havia sido paralisado duas vezes por ações impetradas por posseiros na Justiça e precisava de uma mediação mais incisiva. Mesmo se arrastando por mais alguns anos, o comitê formado com esse objetivo teve êxito, levando à declaração da terra em 2017. Os Tapebas aguardam, agora, a homologação.

“O Ceará tem uma prática avançada de firmar compromissos com o Governo Federal. Na Reserva Taba dos Anacé, o Estado comprou a terra, construiu residências e aldeias e repassou a terra para a Funai. Tem, também, o Idace (Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará), que pode auxiliar na demarcação de terra, foi feito com o povo Tremembé da Barra, em Mundaú”, discorre Ceiça sobre exemplos de colaboração Estado-União.

O fato de o Ceará ter, agora, Juliana no primeiro escalão do governo pode estreitar ainda mais a relação entre os dois entes em relação a esse tema. As duas secretárias já dialogam, no âmbito da gestão, sobre uma “agenda positiva dos povos indígenas”.
 

Criação de projeto no Ceará

As demarcações, contudo, podem esperar mais um pouco. O Ministério ainda é novo e inicia os trabalhos com grandes demandas paralisadas por, pelo menos, seis anos, como aponta Ceiça Pitaguary. Por isso, a maioria dos processos de reconhecimento de território no Ceará e no Brasil não devem ser abordados neste primeiro momento.  

Até agora, apenas a ministra Sonia Guajajara (Psol) e os secretários-executivos – entre eles, Ceiça – foram nomeados. Nos próximos meses, diz a representante Pitaguary, a equipe vai se debruçar sobre o relatório de transição e visitar as terras indígenas para conversar e colher demandas. 

Enquanto isso, Juliana adianta que o Executivo Estadual estuda como deixar as terras com seus respectivos povos. Ela afirma que é estruturado um projeto que rege sobre essa questão fundiária para envio à Assembleia Legislativa. 

Sem dar mais detalhes, a gestora explica somente que o texto pode viabilizar a aquisição e doação, por parte do governo local, desses territórios para os seus grupos originários.

Aliado a isso – além de questões mais basilares de saúde, meio ambiente, educação, juventude e mulheres, entre outros temas –, a secretaria deve trabalhar vinculada a outras pastas para levar às comunidades indígenas equipamentos que ajudam a compor a vida social nas comunidades. São eles: areninhas, praças, brinquedotecas, academias populares. 

São projetos que já existem, mas que, infelizmente, por conta, talvez, da mediação, da má articulação, não chegam aos territórios. Precisa existir, também, uma política de governança municipal, mas alguns gestores não têm um olhar sensível aos povos originários
Juliana Alves
Secretária dos Povos Indígenas do Ceará

Territórios dos povos indígenas

A situação fundiária dos 15 povos indígenas do Ceará é variada. Há, pelo menos, sete territórios nas últimas fases do processo de demarcação, de 24 no total. A grande maioria dos demais ainda está na etapa de elaboração de relatório de identificação pela Funai ou sequer iniciou os estudos devido a ações judiciais.

A única que está totalmente regularizada no Estado é do Córrego do João Pereira, entre Itarema e Acaraú, do povo Tremembé. 

povo Tremembé
Legenda: Fotografia produzida pelo pesquisador Philipi Bandeira durante a 2ª Marcha pela autonomia do povo Tremembé
Foto: Philipi Bandeira

Para a secretária Juliana, a dificuldade no andamento de alguns processos deve-se ao aparelhamento da Funai na última gestão federal e à própria condução do tema pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Ainda na campanha de 2018, ele prometeu não demarcar nenhuma terra indígena e cumpriu. 

Por isso, a terra Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca, ainda não foi homologada, mesmo com todos os demais processos burocráticos cumpridos. Esse território e outros 12 Brasil afora foram adicionados ao relatório de transição, em novembro último, como prioridades demarcatórias para o governo Lula (PT). 

Etapas para demarcação

O Estatuto do Índio e o Decreto nº 1.775/96 ditam as etapas dos processos de demarcação. Primeiro, essas áreas devem passar por estudos de identificação pela Funai, que elaborará um relatório sobre o povo e o território em questão.

Depois disso, inicia-se a fase de contraditório administrativo, em que ocorre a contestação da posse do território por ocupantes não-indígenas, que pode ser contra o relatório integral ou pontos específicos. Isso é analisado pelos técnicos, que podem até fazer um novo estudo da área.

Finalizada essa etapa, o processo administrativo é encaminhado ao Ministério da Justiça para análise. A pasta, assim, vai declarar a posse ao povo que a reivindica, encaminhando a sua demarcação.

Dessa forma, resta apenas a homologação mediante decreto da Presidência da República e registro oficial da regularização. Mas para alguns povos, isso está longe de acontecer.

Legenda: Por isso, o momento é de aproveitar o espaço conquistado por lideranças cearenses no Ministério dos Povos Indígenas e no primeiro escalão do governo local para facilitar o estabelecimento de políticas basilares.
Foto: Thiara Montefusco/Governo do Ceará

Em Itarema (Almofala), a identificação e demarcação foi expedida pela Funai. Já em Acaraú (Queimadas), a portaria declaratória já foi publicada pela fundação.

Para o povo Pitaguary, a demarcação ainda é incerta, dado que há ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que visa garantir a integridade do território ao mesmo tempo em que os posseiros também judicializam a questão.

Os Jenipapo-Kanindé já têm portaria declaratória, mas a terra ainda está sem placas para delimitar o espaço.

O povo Kanindé, de Canindé e de Aratuba, por sua vez, ainda aguarda a constituição de um grupo de trabalho na Funai para poder começar os trâmites de estudo antropológico-territorial.

Os Karão Jaguaribara (também de Aratuba), os Tapuia-Kariri (de São Benedito e Carnaubal) e os povos de Crateús e Poranga (Tabajara, Kariri, Tupinambá, Kalabaça e Potiguara) estão na mesma situação.

Já os grupos da Serra das Matas (Monsenhor Tabosa, Tamboril e Boa Viagem) têm estudos de identificação em curso.

A secretária Juliana Alves espera pela “descontaminação, a retirada dos posseiros” das terras indígenas cearenses e brasileiras. 

Marco temporal e outros riscos

Apesar de todos os esforços, há uma discussão em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o chamado “marco temporal”. A tese prevê a demarcação de somente terras ocupadas pelos povos indígenas até a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

A medida gera temor nos povos originários do Ceará. Um decreto de 1863 que afirmava a ausência de grupos indígenas no Estado só perdeu validade com a Constituição Cidadã, fechando mais de um século de invisibilidade oficializada. Mesmo com a derrubada do texto colonial, a etnia de vários grupos continuou sendo questionada posteriormente, acentuando o clima de insegurança em relação à terra.

Esse e outros fatores podem pesar no reconhecimento desses povos, fazendo com que os direitos garantidos na Constituição não sejam cumpridos. Mais de 300 processos de demarcação abertos em todo o País – incluindo o Ceará – podem ser afetados caso a tese seja aceita pelo Supremo. 

Se a Corte avalizar a medida, há risco, inclusive, de demarcações já feitas serem revertidas, expulsando indígenas de suas terras.

Em 23 de junho do ano passado, o julgamento seria retomado pelo STF. A agenda, contudo, foi adiada. Até o momento, não há previsão de quando a ação deve ser analisada novamente pelos membros da Corte.

Enquanto se aguardam desdobramentos sobre o caso na Justiça, o Legislativo acomoda investidas anti-indígenas do gênero. Exemplo disso é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que dá ao Congresso Nacional competência exclusiva sobre a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas.

Assim, a responsabilidade sairia das mãos do Governo Federal e de órgãos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). 

Nesse mesmo caminho, o Projeto de Lei 490/2007 também busca demarcar terras indígenas por lei, e não por procedimentos administrativos no Executivo. Em um Congresso com uma bancada ruralista, entre outros blocos, fortalecida, indígenas temem que seus direitos não sejam respeitados caso as matérias ganhem aval de deputados e senadores.

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