MPF acompanha 300 casos de violência política de gênero no Brasil; no Ceará, são pelo menos 7

Problemas como a falta de entendimento do que caracteriza essa violência e o receio de serem prejudicadas são apontadas como desafios para denúncia

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
Violência política de gênero
Legenda: Desqualificação de mulheres, com agressões verbais e xingamentos ligadas ao gênero, está entre tipo mais comum de violência política de gênero
Foto: Agência Brasil

O Ministério Público Federal (MPF) acompanha 300 casos de violência política de gênero em todo o Brasil. A conduta é tipificada desde 2021, tendo 8 sentenças condenatórias e 5 acórdãos condenatórios — quando o caso é julgado a partir da 2ª instância da Justiça Eleitoral, ou seja, em um dos 27 tribunais regionais eleitorais do País. 

Uma das condenações é do Ceará. Ex-vereador de Russas, Mauricio Martins, foi condenado após proferir ataques contra as deputadas estaduais do PT — Larissa Gaspar, Jô Farias e Juliana Lucena. O caso é listado pelo MPF como "em grau de recurso" no Tribunal Superior Eleitoral. 

Além desse, outros seis casos de violência política de gênero contra cearenses são acompanhados pelo órgão. O número de ocorrências, no entanto, pode ser maior. Coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero, vinculado ao MPF, a procuradora Raquel Branquinho, explica que estes dados não significam "a totalidade das situações". 

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Ela explica que o sistema ainda não é integrado e que alguns casos passam apenas pelas promotorias eleitorais, ligadas ao Ministério Público dos estados. "Não é um sistema simples, considerando que temos 27 estados. É difícil ter uma abrangência uniforme. Esses casos que a gente acompanha, na minha percepção, representa de fato a maior parte (dos casos). Pode ter algum outro que não tenha caído nessa rede de captura de dados que a gente tenta fazer", diz.

No Ceará, por exemplo, a Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) recebeu, entre março de 2023 e dezembro de 2024, nove denúncias — quatro delas foram encaminhadas ao MP. 

Também vinculada a Alece, a Frente Parlamentar de Combate à Violência Política de Gênero disse que, apenas em 2024, foram oito casos recebidos que se encaixavam no crime de violência política de gênero. Três deles foram formalizadas junto ao Ministério Público, enquanto outros cinco aguardam para realizar a denúncia, "seja por escolha das advogadas e/ou da vítima". 

O que é violência política de gênero?

Raquel Branquinho pontua que uma das primeiras dificuldades para a denúncia está no próprio "conhecimento da lei". A Lei 14.192 foi aprovada em agosto de 2021 e tipifica a violência política de gênero. 

Na legislação, essa categoria é assim definida:

"Considera-se violência política contra a mulher toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher. (...) Constituem igualmente atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo".
Lei 14.192

A punição estabelecida pode variar de 1 a 4 anos de reclusão, além de multa. A pena ainda aumenta se a mulher for gestante, maior de 60 anos ou com deficiência. 

Quais as dificuldades na hora da denúncia

"Primeiro, tem (a dificuldade) do próprio conhecimento da lei, da norma, de como aplicá-la. Tem a parte da própria dificuldade de compreensão das situações que caracterizam violência política de gênero, que não são só as situações concretas de agressão física, de agressão sexual", pontua Branquinho. 

"Tem muitas situações subliminares, tem muitas questões que são até normalizadas pelas instituições e que também caracterizam (essa violência)", completa. Ela cita, por exemplo, que a "desqualificação" é um dos tipos mais comuns dessa violência se apresentar. "Desqualificar o seu corpo, desqualificar a sua situação pessoal, desqualificar sua capacidade de trabalho, a sua sanidade mental", diz.

Os embates, inclusive com a desqualificação do adversário, não são incomuns na política. Mas a procuradora frisa que existe uma diferença quando os ataques têm como alvo um homem e quando o alvo é uma mulher.  

"Ainda que um enfrentamento violento possa ser entre homens, o foco contra a mulher sempre é diferenciado. Não é aquele mesmo tratamento que é feito em uma disputa entre homens. Então, esse é um ponto bastante comum. É xingar, é ver a roupa, é chamar de nomes pejorativos". 
Raquel Branquinho
Procuradora e coordenadora do GT de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero

A tônica é comum entre candidatas e políticas que exercem mandato, "seja uma senadora, seja uma vereadora". "É óbvio que nos municípios, as vereadoras enfrentam uma violência ainda mais forte, porque elas têm menos visibilidade e estão em menor número, pouquíssimo número nas câmaras municipais", completa. 

Conforme o Diário do Nordeste mostrou, apenas no Ceará, 60% das vereadoras afirmam já terem sido vítimas de violência política de gênero. Além disso, mais da metade delas sentem que são excluídas dos espaços de decisão política apenas pelo fato de ser mulher. Os dados são do Observatório da Mulher Cearense. 

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'Será que vale a pena fazer a denúncia?'

A professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC), Raquel Machado, pontua que esse é o questionamento que pode passar pela mente de mulheres que são vítimas da violência política de gênero. 

"Primeiro, para algumas é difícil diagnosticar. Mas, quando elas diagnosticam, algumas pensam: 'será que vale a pena eu fazer alguma coisa por causa disso?' ou 'será que eu não vou me desgastar?'", cita a docente. 

Já Branquinho pontua que a continuidade do processo penal também pode ser um desafio para as mulheres que denunciam as violências. A maioria delas, por exemplo, é vítima de agressões vindas dos "pares", ou seja, quem está ao lado dela na casa legislativa ou também é candidato a um cargo eletivo. 

"Os investigados, os réus dessas ações penais são pessoas bastante articuladas, têm excelentes defesas, em regra são homens. São homens de estrutura de poder dos parlamentos ou de partidos políticos. Então, não é algo fácil", diz. "Os números (de denúncias) são até bons, se se considera o cenário em que a gente vive". 

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A procuradora aponta o avanço na tipificação da conduta, porque, antes dessa legislação, situações do tipo eram tratadas "como crime de menor potencial ofensivo, assim como contra honra, ameaça e não tinha um resultado". Hoje, como tipo penal, a violência política de gênero exige uma ação do Estado no combate e punição. 

Contudo, contrapõe Machado, o enquadramento jurídico da violência política de gênero pode acabar por adiar a penalidade em episódios de violências contra mulheres, o que pode ser um agravante em um problema tão recorrente na trajetória política de mulheres. 

"Já que a violência política é algo que acontece tão intensamente e tão corriqueiramente... Imagina se, na nossa legislação, pelo menos na parte de propaganda ou mesmo em relação ao exercício de mandato, tivesse algum tipo de sanção pecuniária. (...) Talvez a gente pudesse pensar em outras formas de transformar essa conduta em uma infração, não só através do tipo penal. 
Raquel Machado
Professora de Direito Eleitoral da UFC

Branquinho pontua ainda a necessidade de uma tomada de consciência da própria sociedade e, principalmente, das mulheres. "Porque, muitas vezes, as agressões podem ser reverberadas pelas próprias mulheres, que repetem essas estruturas", diz.

Machado acrescenta: "A gente tem que criar uma cultura em que fazer isso seja constrangedor, que ainda não tem".

O caminho, no entanto, pode acabar sendo inverso. "O que eu acho preocupante é que talvez, antes da gente ter chegado num ponto ótimo, em que é possível envergonhar essas pessoas, nós estamos num momento social de muitos entraves. Então, eu não sei se a gente vai continuar avançando (nessa pauta) ou se a gente vai paralisar ou até se a gente vai ter retrocesso", afirma.

"E o que acontece são danos muito severos. As mulheres que já enfrentaram situações sistemáticas de violência, elas tendem a desistir do espaço político", completa Branquinho. "Isso é uma perda para a nossa democracia, para a nossa cidadania".

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