Entenda por que o Brasil adota “neutralidade” em conflitos internacionais
Especialistas em Relações Internacionais explicam o que significa, na prática, a postura da diplomacia brasileira
Após os primeiros dias da invasão da Rússia ao território ucraniano, o Brasil já tem firmada a sua posição de “neutralidade” diante do conflito. Historicamente, essa postura é assumida pela diplomacia brasileira diante de impasses internacionais, com raras – e discretas – exceções. O Diário do Nordeste ouviu especialistas em Relações Internacionais para entender os princípios seguidos pela diplomacia brasileira diante de conflitos.
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Diplomata de carreira entre 1996 e 2006, o professor Paulo Henrique Gonçalves Portela, da especialização em Direito Internacional da Universidade de Fortaleza (Unifor), explica que essa posição, assumida historicamente, faz da diplomacia brasileira uma das mais referenciadas mundialmente.
“A neutralidade é a situação de um Estado que, dentro de um conflito, não se envolve nas hostilidades e opta por não apoiar nenhum lado. É essa a ideia de neutralidade que corresponde à posição do Brasil nos últimos 200 anos”, explica.
“O Brasil tem uma postura equidistante, isso traz vantagens, como manter o fluxo comercial com as nações, além de uma visão positiva da promoção da paz no mundo. É uma postura que defende princípios fundamentais, busca entender todos os lados, mas, ao mesmo tempo, não se envolve”
Ucrânia x Rússia
Na última sexta-feira (25), durante a reunião do Conselho de Segurança da ONU, o embaixador Ronaldo Costa Filho, representante brasileiro, ressaltou que o uso da força contra a soberania de um país não é aceitável. Ele também defendeu uma ação urgente da ONU contra a invasão russa.
No domingo (27), o presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou a defender a neutralidade brasileira. “Agora, nós devemos entender o que está acontecendo. No meu entender, nós não vamos tomar partido, nós vamos continuar pela neutralidade e ajudar no que for possível na busca da solução”, disse.
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Nesta segunda-feira (28), durante sessão extraordinária da Assembleia Geral da ONU, Costa Filho reforçou o pedido por negociações diplomáticas. Ele afirmou que a comunidade internacional deve "fazer o que for preciso antes que seja tarde demais".
"Renovamos nosso apelo pela cessação total das hostilidades, pela retirada das tropas e pela retomada imediata do diálogo diplomático", disse. Ele também firmou a posição de equilíbrio da diplomacia brasileira.
"Procuramos manter o espaço de diálogo, mas ainda sinalizando que o uso da força contra a integridade territorial de um Estado-membro não é aceitável no mundo atual"
A “neutralidade” na prática
Conforme Sidney Leite, doutor em História Social e professor de Relações Internacionais das Faculdades Rio Branco, essa "neutralidade" brasileira se traduz, na prática, como uma defesa de princípios fundamentais do Direito Internacional.
“Segue rigidamente as etapas, que, neste caso, implica em exigir ou ponderar pela necessidade imperiosa de cessar-fogo, clamar por negociações diplomáticas e, em um terceiro momento, se posicionar diante da agressão contra a soberania”, aponta Leite.
Ele acrescenta ainda que a própria Constituição do Brasil orienta sobre isso.
“80% da política externa do Brasil é o Itamaraty, que é um órgão de Estado, então, em linhas gerais, é uma conduta formulada e executada pelo corpo diplomático, criado pelo Barão do Rio Branco. Além disso, esses princípios são regidos pelo artigo 4º da Constituição Federal”
Neste artigo, a Carta Magna define que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: “independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; concessão de asilo político”.
“Os governos não podem fugir disso, sob pena de contrariar a Constituição do Brasil”, conclui o professor.
Opção pela neutralidade
Seja em conflitos regionais ou em disputas globais, o Brasil tem um extenso histórico de neutralidade. Ainda que, em raras exceções, sinalize para um dos lados da disputa, esse envolvimento costuma ser tímido se comparado a outras nações.
Um dos exemplos é a Segunda Guerra Mundial, quando o País decidiu, já em 1942, após três anos de guerra, assumir aliança com o Eixo, se opondo à Alemanha, Itália e Japão. O Brasil, no entanto, só passou a enviar homens para a frente de combate em 1944, já no fim do confronto entre as nações.
Em conflitos mais recentes, como a Guerra do Iraque, a diplomacia brasileira se posicionou de forma contrária ao combate e o então presidente Lula (PT) condenou a escalada de violência.
Na Guerra do Golfo, a postura do Brasil também se manteve. Fernando Collor, que presidia o Brasil, concordou com as decisões da ONU, mas se manteve equidistante das nações envolvidas.
O historiador Sidney Leite relembra um episódio pouco conhecido da história brasileira que explica a opção pela diplomacia adotada no País. Em 1965, no Governo Castello Branco, o Brasil integrou um grupo de países que invadiu a República Dominicana. “É um ponto fora da curva em que o Brasil feriu o princípio da soberania e a autonomia dos povos enviando tropas para invadir outra nação (...) Essa é uma exceção que confirma a regra de que o Brasil defende a soberania dos povos”, argumenta.
Conflito x Diplomacia
Conforme o professor Paulo Henrique Portela, o Estado brasileiro fez uma opção histórica em reforçar sua diplomacia e, paralelamente, não aparecer como uma potência militar.
“O Brasil tem sua conduta baseada em alguns princípios internacionais, já que não tem forças armadas poderosas. Então, o País costuma recorrer aos foros internacionais, ao direito internacional, e ter protagonismo, sempre guiado por princípios da Constituição Brasileira e das Nações Unidas, que defendem a independência das nações, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação, a solução pacífica, a cooperação dos povos, entre outros”, afirma.
“Então, essa ideia de neutralidade é a adotada na maioria dos casos, na grande maioria. O Brasil só toma lado na Primeira e na Segunda Guerra e, informalmente, nas Maldivas”, aponta Portela.
O historiador Sidney Leite conclui afirmando que, no caso do conflito entre Ucrânia e Rússia, a diplomacia brasileira tem mantido a linha “técnica” e de “defesa de princípios fundamentais”.
“Os Estados Unidos, como superpotência, podem ter discursos mais incisivos, mas não é o caso do Brasil, uma potência média que não está envolvida diretamente. Uma vez cessada essa conjuntura, o Brasil vai retomar a vida normal de relações com as duas nações”, conclui.