Crianças querem brinquedo e ‘tempo’ dos pais para brincarem junto
Fazer uma criança feliz e fortalecer o vínculo dos afetos familiares vão muito além da entrega de brinquedos no Dia das Crianças, alertam especialistas
É preciso pouco para deixar uma criança feliz. Um quase nada: se juntam duas, só com as mãos já dá para brincar de par ou ímpar, pega-pega, esconde-esconde ou pedra-papel-tesoura. Mas como o Dia das Crianças já está consolidado comercialmente, brinquedo não se rejeita.
É de pequeno que se aprende a gostar de presentes e a lista é grande: “boneca que faz xixi”, “carrinho”, “carrinho que sai com controle”, “pop it”, “videogame”, “jogo da memória”, “bicicleta”, “jogo de mágica” (“roupa, não”), “brincar com meus amigos”, “brincar com meu pai e minha mãe”...
Não dá para resumir o que seria um ‘presente do dia das crianças’, mas para qualquer um deles é melhor ter com quem brincar, uma demanda que, num país tão desigual, iguala ‘carentes’ de ‘privilegiados’.
A ‘brincadeira’ foi esta: identificar alguns desejos para o tão aguardado 12 de outubro fazendo chamadas para o telefone dos pais. Perguntamos a algumas crianças o que não pode faltar neste dia e as respostas foram desejos muito mais do que pontuais.
João Filho, 8, quer aumentar a coleção de quebra-cabeças. “Eu já faço sem olhar pra figura. Tem um segredo: é ir juntando as peças de cor parecida”, confessa.
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Camila Moreira, 7, quer uma “Lol”, famosa boneca com a cabeça do tamanho do resto do corpo. Está na televisão, na mochila, nos bonés e álbuns de figurinhas. A mãe, Patrícia, já disse que ia dar uma “imitação”(entenda-se: brinquedo-pirata, falsificado) com preço cinco vezes menor porque “ela nem percebe”.
“Os brinquedos custam os olhos da cara. A criança rica e a criança pobre querem a mesma coisa porque a propaganda é para todas, mas só uma tem condições de pagar”, lamenta a mãe e professora. Depois que há muitos anos comprou uma boneca “da moda” e a filha preferiu brincar com a caixa, descobriu que brinquedo é muito além do que se oferece.
Sofia Nunes, 10, quer “um celular” e “qualquer coisa do BTS”, referência à banda sul-coreana de K-Pop que é sucesso mundial. Maria Helena, 10, só disse “ainda não sei”, enquanto passeia os olhos nos pensamentos das muitas opções indecifradas.
Mariana Carvalho, 9, quer estar com a família, ganhar muitos presentes, e lembrou-se de acrescentar à resposta para resumir uma verdade: “criança gosta de brinquedo”.
Deu para entender, pais, que deixem as roupas novas para outro dia!
"Eu ganho o que me dão”
Tentando furar a bolha dos “com acesso a celular”, este repórter indagou a uma menina em situação de mendicância (portanto com acessos mínimos aos direitos essenciais) no cruzamento da rua Jaime Benévolo com avenida 13 de maio, em Fortaleza, se sabia quando era o dia das crianças e se ganha alguma coisa nesse dia.
“Tá perto, né? Eu ganho o que me dão”. O doador é qualquer passante e o presente é qualquer coisa para quem não foi dado o direito de escolher.
"Ter com quem brincar"
Antes de qualquer conclusão precipitada de que as crianças ouvidas estão “muito materialistas” - afinal as propagandas tanto sugerem presentes - há em comum o desejo “ter com quem brincar” e “estar com minha família”.
O feriado nacional (Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil) ajuda nos encontros e coloca lado a lado “presente” de “presença”.
Lívia Carvalho, mãe de Mariana, lembra que no seu tempo de criança brincava muito com as irmãs. “Os pais participavam menos, a gente brincava sozinha. Mas essa nova geração, muita de filhos únicos, os pais acabam brincando mais, tendo que brincar mais”. A “Mari” é filha única, e assim inventam, pais e filha, brincadeiras em casa.
A pandemia e o necessário isolamento social, sem acesso aos avós, colegas de escola e outros amigos, demandaram maior presença dos pais, nem sempre alcançados pelos filhos, que por vezes se encontram longamente com os eletrônicos.
Os decretos sanitários afrouxaram, os reencontros voltaram, as distâncias diminuíram, mas como está dentro de casa? Com ou sem pandemia, independentemente da condição financeira, a participação da família no brincar é essencial para todas as crianças, como reforça a psicóloga infantil Karine Martins.
Se os pais se permitem entrar na brincadeira com a criança, eles se aproximam do que há de mais genuíno dela, formando vínculos e sentimentos mais profundos com essa criança”
A psicóloga contextualiza pontuando que “através do brincar se consegue trabalhar o simbólico das coisas, a ludicidade, as emoções e os sentimentos das crianças. É brincando que consegue lidar com sentimentos de angústia, de tristeza, de felicidade. É a forma com que a criança se coloca no mundo, externalizando seus sentimentos e emoções, sejam agradáveis ou desagradáveis para ela”.
O brinquedo pode ser parte da brincadeira. “Quando acontece de a família participar da construção do brinquedo com a criança, e o limite é a imaginação, a essência do ser social está ali. Isto é tão importante, que todas as escolas e famílias deveriam incentivar as crianças a construírem brinquedos ou outras coisas coletivamente, reforçando que todos nós somos apenas parte do processo de existir”, explica a psicopedagoga Rafaela Gurgel.
O desafio para pais e crianças é, para qualquer período, construir a rotina do brincar e fazer até as propagandas seduzirem menos, pois são as presenças, e não os presentes, que garantem o afeto.